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domingo, 4 de março de 2018

Exercícios de alteridade: abelhas e pessoas


Para Rutinha, meu amor


Abelhinha, o que você está fazendo aqui?

Abelhinha, sai daí! Me deixe trabalhar!

Abelhinha, abelhinha, você está arriscando sua pele... tô avisando... tô com vontade de lhe dar uma panada...

Abelhinha! Eu vou encerrar você dentro do armário! Sai daí!

Ai, ai... ela é completamente surda!

Você voltou? Rapaz! Bichinho teimoso!

Oh, minha filha, eu tô armada! Se eu fosse você, tomava cuidado comigo! (com uma faca na mão, enquanto cortava legumes...)

Ah, então você vai sentar na panela quente? Senta! Problema seu. Eu não tenho nada com isso...

Acho que ela ouviu...



Conversas matinais da minha irmã, nas lidas na cozinha, enquanto umas três abelhas voejam, procurando alguma matéria prima para fazer mel...






domingo, 12 de março de 2017

Dos que se olham e se veem


Eu a vejo
Ela me vê
Eu empunho a câmera
Ela me observa
Eu ajusto a lente, abertura, velocidade, faço fotos
Ela me olha com firmeza
Sinto-me indagada
Ela agita as asas, e alça voo

Agora observo as fotos
Nelas, ela persiste em me olhar
E eu a ela




segunda-feira, 15 de junho de 2015

quando um trabalho vai ao encontro do outro


Já foi relatado aqui. Depois de muito tempo sem notícias, reencontramos Seu José Zagati. Desde então, com alguma regularidade, temos conversado ao telefone. Sua saúde não está bem. Há poucas semanas foi submetido a uma cirurgia muito agressiva, que durou 12h. Está se recuperando, na casa da filha.

Ontem, enquanto conversávamos, ele se manifestou em relação ao meu livro que tem alguns capítulos dedicados ao seu trabalho com cinema, e ao desfeito Mini Cine Tupi, em Taboão da Serra. Confesso que estava ansiosa por ouvi-lo, depois de, finalmente, ter conseguido lhe enviar o exemplar.

Contou-me que ficou impressionado com tudo que escrevi sobre o Brazza e os outros cineastas (Seu Manoelzinho e Seu Simião Martiniano). Mas, principalmente, disse ter ficado emocionado com o que eu escrevi sobre ele. Estava ali, tudo, tudo, conforme me contara nas entrevistas, nas quantas vezes quando estivemos juntos. Desse modo, chancelou minha escrita sobre ele. 

Ao final de seu parecer, proferiu a sentença que ainda está reverberando em mim, como um prêmio, mas também iluminando o modo como tenho desenvolvido o trabalho de campo, nas relações de aprendizagem que tenho tido o privilégio de estabelecer com pessoas tão especiais, agentes de cultura, atuantes em seus tempos e contextos:

"Professora, como o meu trabalho se encaixou com o seu trabalho, não é? O meu trabalho e o seu se encontraram direitinho!"

É, meu senhor, parece que esse caminho tem um coração...






sábado, 2 de novembro de 2013

Tessituras no Ensino de Artes Visuais - Teias e tramas em Montes Claros

A todos quantos se deixaram ser criança,
 para brincar e tramar desenhos aéreos com fios,
 retalhos, cordões, gestos, risos e imaginação!


Pela manhã, o primeiro grupo se organizou, pegou os materiais, munido das instruções e motivações, saiu para o jardim. Todos estavam dispostos a fazer tramas entre as árvores, os gradis, e demais estruturas arquitetônicas com que pudessem interagir.

Curiosos começaram a chegar para ver o que estava acontecendo. Alguns professores de artes plásticas olhavam de modo enviesado. Professores e alunos de teatro animaram-se com a novidade, e integraram o grupo, ampliando possibilidades para a enorme teia que foi se estendendo. Os retalhos de malha e outros tecidos, amarrados entre si, entrelaçados, flexíveis, aceitavam formas, demarcando desenhos aéreos, pendendo do alto, deixando-se balançar com o vento, caindo ao chão para formar mosaicos coloridos e brincantes.

Entre os que estavam imersos na teia e os que observavam desde a área externa havia uma enorme distância no tocante à experiência. De fora, parecia impossível compreender o que acontecia ali dentro, embora estivessem a poucos metros, ou menos ainda, uns dos outros.

Na teia, todos estavam absortos, e movidos por uma disposição lúdica, prazerosa. Uns trabalhavam mais sós. Outros, em duplas, desenvolviam pequenos projetos que se integravam ao todo. Outros interagiam com todos, trançando de todos os lados.

Na rampa e no estacionamento, transitavam olhares de estranhamento, outros instigados. Uns faziam de conta que estavam participando, ali, na borda, sem se arriscar muito, dando um e outro nó no corrimão, enquanto tentavam entender. As conversas iam se desenrolando... “A reitoria vai pensar que é uma manifestação dos grevistas, que amanhã farão paralisação na universidade...” “Qual a mensagem? Os trapos representam os salários dos professores?” “Eu me identifiquei totalmente com esse trabalho! Estou comovida! É a condição da educação no país: um lixo!”

Duas senhoras que trabalham no setor de limpeza da faculdade chegaram à porta, para ver o movimento. Uma se assustou “Xiiiiiiiiii!” A outra, adiantando-se na explicação, para evitar que a colega cometesse alguma gafe, cochichou “É arte!” Ficaram ali, por algum tempo, provavelmente pensando que teriam serviço extra pela frente, para limpar aquela sujeira toda...

À tarde, enquanto o segundo grupo dava prosseguimento à intervenção, um rapaz, que tinha observado tudo no turno da manhã, intrigado, veio perguntar o que aquilo significava. "Qual o sentido?" Devolvi-lhe a pergunta, e ele fez um longo discurso falando sobre a paralisação dos professores no dia seguinte, sobre o sucateamento da universidade pública, sobre as péssimas condições da educação, etc. 

Fiquei em dúvida: seria o caso de falar sobre estética relacional, sobre instalação relacional, sobre fenomenologia?... Achei melhor não. Apenas lhe contei que aquela intervenção tinha sido agendada antes de se marcar a paralisação. Ele sorriu. Fiz-lhe, então, a provocação: “Para entender, você vai precisar entrar na teia”. Puxei-o pela mão, e fomos nos enredando pelo espaço tramado. Desvia de uma tira, de um cordão, abaixa, sobe, desvia. Paramos lá no meio. Olhamos à volta. Peguei a ponta de um retalho, e convidei: “Pode amarrar”. “Mas... assim? Posso?” “Claro! Qualquer um pode entrar aqui e tomar parte. Esse é o trabalho. Pense que o que você está vendo é uma espécie de materialização de um pouco das relações entre as pessoas que aqui estiveram, enquanto aqui estiveram... faça sua marca também!” Saí, e deixei que ele sozinho brincasse um pouco.

Entreti-me com os demais participantes. Até que o rapaz me chamou, para mostrar o que fizera. Montara uma espécie de S sobre uma base feita por outra pessoa. Disse-me que era um cifrão. Pesavam-lhe as inquietações com as questões políticas e econômicas do país, entre elas as referentes aos salários dos professores. Sorriu, meio tímido, defendendo-se: “Não sei se as pessoas vão entender o que eu tentei fazer”. Então pude comentar sobre o que ocorrera com a interpretação feita por ele, no primeiro momento, sobre a instalação: “As pessoas poderão ver a partir dos repertórios de cada um, do mesmo modo que você fez quando chegou aqui: preocupado com a paralisação, criou uma narrativa para a instalação a partir dessa motivação. O que motivará cada pessoa, quando vir esse S? Será que as pessoas verão um S aí?”

Sorrindo, me disse que precisava voltar para a aula. “Você está matando aula?!” Estava. Saiu correndo, o gesto alegre.

Do outro lado do estacionamento, grupos adornavam palmeiras, envolviam troncos com cascas ásperas, enovelavam galhos, faziam redes e tranças, e se debatiam com abelhinhas arapuá, que insistiam em se enredar nos cabelos dos participantes... o que não deixava de ser outra modalidade de tramas e nós...





quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

um pequeno funeral



Continuo observando o casal de quero-queros. Não chega a ser uma observação sistemática, mas tem alguma regularidade. E por isso mesmo, já pude testemunhar momentos inusitados na vida das duas criaturinhas.

Da última ninhada, nasceram 3 filhotes. Mal nasceram, e andavam correndo pelo asfalto do estacionamento. Quase fiquei aflita com a visão. Já no dia seguinte, as crias estavam subtraídas em um. Os outros dois andaram, por vários dias, correndo entre a grama: pequenas bolinhas de penugem equilibrando-se sobre pernas muito longas e ágeis. Mas logo encontrei apenas um ainda vivo - era o mais forte, mais resistente. O pequeno sobreviveu a um evento, na universidade, que ocupou todo o estacionamento ao lado de onde eles vivem. Resistiu à chuvarada, e ao calor. Suas penugens estavam já mais escurecidas, e cheguei a pensar que ele conseguiria atravessar o período mais crítico para os filhotes, e colocar-se adolescente. Enganei-me.

Ontem, no final da tarde, presenciei cena que me comoveu. Próxima ao poste de luz, a fêmea emitia sons que chamavam o pintinho, e andava em círculos, com as penas um pouco arrepiadas. Inicialmente, não pude ver o filhote. Mas ouvi-lhe o piado muito fraco, agudo, como gemidos quase sussurrados. Então avistei, entre a grama, o pequeno corpo vacilante, já sem conseguir se por em pé. A cabeça mal erguia-se, no piado, e o bichinho sumia, caído no chão. O macho voava a pequena distância, em fúria, afastando qualquer outra ave que se aproximasse - pombos, almas de gato, bem te vis - exceto as vizinhas corujas buraqueiras, testemunhas instaladas em seus observatórios. Algumas vezes, a fêmea deitou-se sobre a cria, pipilando para ela, chamando para si a fagulha de vida que ainda parecia queimar, ali.

Hoje, pela manhã, encontrei os dois andando, ali perto do poste de luz. Piavam ainda como a chamar a cria. Estavam mais irritados do que de costume. À tarde, um deles bebia água numa possa distante, e o outro andava no extremo oposto ao gramado. Fui até as proximidades do poste, e pude ver o pequeno cadáver. Logo o casal percebeu-me. Ambos vieram em ataque em minha direção. Retirei-me, enquanto eles gritavam, nas cercanias do corpo. Depois, a fêmea emitiu um piado que eu ainda não ouvira, e ofereceu-se à cópula.

Não quero incorrer no equívoco de antropomorfizar o comportamento das aves. Não vou imaginar o sentimento de perda que pudesse ter se abatido sobre eles. Tampouco pensarei nas relações paternais e maternais com suas crias, os vínculos de afeto, etc., atribuindo-lhes alguma humanidade nos modos de instalar-se no mundo. O que a observação dessas aves em sua labuta tem me ensinado é que, na arrogância humana, interpretamos e atribuímos explicações às coisas do mundo, sem sequer nos darmos conta do que se passa ao nosso lado. Sem termos competência de compreender a exata dimensão de eventos fortes como esse, ali, ao alcance da vista e da mão, mas que me escapa: escapa como se escapa o último rebrilho de vida ao corpo do último filhote da ninhada mais recente daquele casal de quero-quero.

Toda vez que me ponho a observá-los, penso no mistério de sermos e estarmos aqui: nós, eles, e todas as demais formas de vida, sabidas (em bem menor número) e não sabidas (estas, em número não sabido, sequer imaginado...)



segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Marque a alternativa de sua preferência: ( ) “Boa tarde!”; ( ) “Eu quero!”



p/ o pequeno Igor, quem, provavelmente,
 não voltarei a encontrar por aí,
 em saguões de embarque de aeroportos...

Pouco antes do embarque, no saguão de espera, sentaram-se, à minha frente, uma jovem senhora com seu filhinho. Ele acomodou-se e desfechou um sonoro “Boa tarde!”, olhando para mim, num sorriso gentil e sincero. Correspondi ao seu cumprimento, achando graça, e logo estávamos conversando sobre muitos temas. Ele contou-me sobre ele, quis saber sobre mim. Igor tinha apenas 4 anos, mas conversava com desenvoltura e clareza no pensamento, e cheirava a ternura e alegria. A mãe sentia-se agraciada pela sua companhia. Naquele momento, também me senti assim.

Despedi-me dos dois, para embarcar na aeronave, quando chegou o horário do meu voo.

Acomodada na primeira fileira, à janela, observei as crianças sem acompanhantes serem trazidas até o avião por um funcionário da empresa aérea. Duas meninas, amigas, no alto de seus 9,10 anos, aproximadamente, e um pequeno rapazinho portando uma mochila do homem aranha e não mais que 5 anos. Rapidamente, as meninas se ajeitaram nas cadeiras mais próximas. O menino parou no meio do corredor, apontou em minha direção, informando, com segurança, à comissária: “Eu quero sentar ali!”. E ficou me olhando, como a perguntar por que cargas d’água eu não tomava nenhuma providência para atender imediatamente o seu desejo. Fui surpreendida pelo gesto do menino. E antes que eu esboçasse qualquer reação, a comissária de voo o conduziu para a poltrona ao lado das meninas, à janela, do lado oposto ao meu. Instalado, o pequeno tentou chamar a atenção das meninas, mas elas estavam muito envolvidas brincando com duas bonecas, e não deram moral ao seu vizinhozinho de viagem.

O pequeno fechou as janelas, e adormeceu. Nem viu as luzes da cidade, antes do avião pousar, quando chegamos ao destino.




segunda-feira, 30 de julho de 2012

A quem interessar possa: não guardo lugar na fila, nem vigio carros na rua...




Entramos na fila para atendimento no balcão de uma empresa aérea. Enquanto a funcionária atendia um grupo de pessoas, duas pessoas esperavam antes de nós. Um bom tempo depois, uma senhora muito vaidosa, bem maquiada, chegou-se, como quem não quer nada, e se posicionou à nossa frente. Ante nosso olhar de indagação, explicou: “Eu já estava aqui. Algum problema?” Todos os problemas, minha senhora! Praticava, ela, o velho hábito de “guardar lugar na fila” enquanto vai ali, dar uma voltinha... Problema de quem dá a bobeira de ficar na fila...

Noutro dia, no supermercado, entrei na fila do caixa rápido. À minha frente, uma senhora empurrava um carrinho. Suas compras ultrapassavam, em muito, os 15 itens configurados para aquele tipo de atendimento. Algum dia eu também entraria naquela fila com mais que 15 itens no carrinho, pensei. Logo ela me olhou, e pediu-me, com desenvoltura: “Eu me esqueci de pegar uma coisa. Você olha o meu carrinho, enquanto eu vou buscar?”. Naquele dia, em especial, eu queria voltar em paz, para casa. Então assenti com um gesto mínimo, e fiquei ali, empurrando o carrinho dela com o meu próprio carrinho, meio a contragosto. Mas a dona demorou-se bem mais do que o tempo necessário para ir até a prateleira e retornar. Aliás, cheguei até à metade do percurso, quando a fila entrava por um corredor estreito, antes de desembocar na área dos caixas. Ali, acomodei seu carrinho fora da fila, e segui, só com o meu. Já chegada a minha vez de ser atendida, ela apareceu, sorridente. “Cadê?”, perguntou-me. Eu ri. “A senhora não achou, mesmo, que eu iria trazer o seu carrinho até aqui, não é?”. E lhe apontei onde estava, devidamente estacionado entre algumas gôndolas de promoções. Claro está que fui qualificada como mal educada...

No estacionamento de outro supermercado, depois de colocar as compras no meu carro, fui devolver o carrinho ao lugar devido. Enquanto isso, uma senhora, que tentava estacionar numa vaga ao lado do meu, retirara dois carrinhos dali, e os posicionara impedindo a saída do meu carro. Retornei nesse exato momento. Sem acreditar na cena que eu testemunhava, a adverti: “Muito obrigada pelo favor de trancar o meu carro, enquanto abre a vaga para estacionar o seu!”. Ao que ela, prontamente respondeu: “Por nada”, com um breve sorriso. Eu devolvi os dois carrinhos à vaga pleiteada por ela, e desafiei: “Quero ver você estacionar, agora!”. “Se eu soubesse que o carro era seu, não teria feito isso!” Justificou, enquanto providenciava a retirada dos carrinhos, novamente. Para posicioná-los trancando outro carro...

Situação mais divertida que essa aconteceu numa esquina da Rua 3, no centro. Enquanto aguardava o taxista, eu observava o movimento das pessoas. Minha atenção voltou-se para uma jovem senhora estacionando seu veículo bem na esquina, formando uma diagonal. Sem se importar por estar importunando o fluxo dos demais veículos, manobrou para lá, para cá, várias vezes. E eu ali, ponderando a situação. Quando se deu por satisfeita, desligou o carro, e saiu. Observou-o, quase no meio da rua. Olhou-me e desfechou a pérola: “Oi, você vigia meu carro enquanto eu vou ali, e já volto, rapidinho?” Está bem, eu reconheço ter perdido a melhor oportunidade que já tive de ganhar um trocado enquanto esperava o táxi. Claro, com minhas qualificações, teria de cobrar um pouco mais caro do que a tabela geral do mercado... Mas não, não pude deixar de manifestar com ênfase minha indignação – nem tanto com o pedido para eu vigiar, mas com o carro deixado no meio da rua, atrapalhando os demais. Ela me olhou com quase candura. E seguiu seu caminho. Para ela, minha reação é que estava fora do esquadro...

Y así pasan los dias en Goiás...



domingo, 29 de julho de 2012

de afetos e saudades


p/ Nhá Delu, in memoriam
 e J. Bamberg 


Em 2010, quando voltava de Cachoeira, passei por Salvador. Fomos visitar Nhá Delu, que eu ainda não conhecia. Linda, vaidosa, aguardava-nos bem acomodada a uma poltrona, na sala ampla de seu apartamento voltado para o mar. Sentei-me ao seu lado. Cercados dos demais familiares, o burburinho da conversa tinha tonalidades de alegria, saudades, encantamentos. Não demorou muito para que eu conhecesse outra habitante do lugar, uma calopsita branca, por quem fui adotada, e veio cochichar arrulhos ao meu ouvido, enredando-se nos meus cabelos. Fiquei ali, sentindo-me abraçada pelo afago da mão de Nhá Delu, segurando firmemente a minha, e a calopsita instalada em meu ombro.

Memória de afeto e acolhimento.

Ontem, Nhá Delu nos deixou, seguindo a viagem solitária que todos faremos, mais dia, menos dia...

Saudades.

Em tempo: os ipês brancos cobriram-se de flores. Delicada florada, não dura mais que uns poucos dias. Mal nos surpreendemos com sua beleza, já não está lá... assim...





domingo, 8 de abril de 2012

Um é dois, faço três por sete




Enquanto eu observava os pacotinhos com couve picada bem miudinha, o senhorzinho se aproximou, sorridente, antecipando-se à minha pergunta: “Cada um custa dois reais”. Peguei um pacotinho, meio distraída, olhando o verde escuro das folhas cortadas. Ele prosseguiu: “Um é dois, faço três por sete”. Sem lhe notar a intenção, respondi, ainda distanciada: “Eu vou levar só um, mesmo”. Ele insistiu: “Mas eu faço três por sete!”, e riu-se, um riso debochado. Só então me dei conta da brincadeira proposta. Ri-me também. “Eu tenho que levar alguma vantagem, ué!”, ele completou. Paguei pelo pacotinho, e levei de gorjeta o riso solto do senhorzinho vendedor de couve picada.

O bom dia começava ali.



sexta-feira, 2 de março de 2012

Lobo solitário



Para Seu Waltercílio,
e seus animais de estimação.


Estava atrasada. Seguia, esbaforida, no meu carro cor prata - dessas cores neutras com que a indústria pinta a maior parte dos carros, cor noturna, sem vivacidade... Avistei o lobo solitário a alguma distância, com seu veículo vermelho vivo, estacionado ao lado de uma plantação de sorgo. Os alto-falantes emitiam boleros antigos, cujos acordes dissipavam-se no azul intenso do céu, e no sol calorento do final da manhã. Passei por ele, me encantei com a cena. Quase ia me distanciando, deixando-o para trás, quando decidi voltar. Pensei em fotografar o veículo, conhecer seu proprietário. No retorno, pedi licença para fazer as fotos. Seu Waltercílio animou-se com meu interesse, e se aproximou, conversando. Era de estatura média, elegante. Contou da preocupação com sua cadela que, atropelada por um carro, quebrou uma perna. Foi encaminhada à Faculdade de Veterinária da UFG, onde queriam lhe fazer uma amputação. Mostrou-me as radiografias da perna quebrada, e a fotografia do animalzinho. Ele discordava da conduta dos veterinários, e decidira ir buscá-la, para cuidar dela em casa: colocaria uma tala, lhe daria arnica, e com certeza se recuperaria.

Na carroça, outra cadela, a Daiane, observava seu movimento; e a égua aguardava pacientemente. Ele contou que a cadelinha acidentada o ajudou a adquirir a carroça, companheira em seu trabalho de catador de papel. E enfatizou a gratidão pelo animal.

Despedi-me dele, que ficou me advertindo para ter muito cuidado na travessia da rua, pois os carros passam correndo muito - quase sempre mais apressados do que eu ia, antes de retornar para conversar com ele. Retomei meu caminho, e ele seguiu, calmamente, compondo o contraste do vermelho de sua carroça com o verde do sorgo muito alto e o azul do céu. A música seguia, em ritmo de bolero.

Um lobo, nem tão solitário: em boa companhia de seus animais de estimação, companheiros de trabalho.





quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

aquela que tem nome de flor



Ela tem nome de flor. Depois dos filhos criados, os netos nascidos, chegou a pensar que poderia dedicar mais tempo a passear com o marido, mais velho e cada vez mais dependente dos cuidados dela. Mas um dia descobriu um caroço num dos seios. A biópsia não deixou dúvidas, e começou a longa peregrinação terapêutica para os casos de câncer.

Logo na primeira série de sessões de quimioterapia, o braço inchou, e tanto, que foi preciso enfaixá-lo para conter a expansão. O líquido retido exudava, então, pelos poros. Nas pausas entre as séries, o braço mostrava pequenos sinais de melhora. Mas logo se inchava novamente, retomada a quimioterapia. Como passaram a alternar os braços, os dois ganharam as faixas, uma espécie de nova pele contentora, da qual já não conseguia libertar-se.

Algum tempo depois, foram detectados novos nódulos no cérebro. As sessões de quimioterapia começaram a ser alternadas com sessões de radioterapia. Uma primeira bateria diária. Pausa. Nova bateria. A pele se ressentindo. O cabelo caído, substituído por um chapéu. O corpo franzino da que tem nome de flor ficou ainda mais franzino, foi perdendo o brilho, o viço foi lhe vazando pelos poros. Mas não perdeu o ânimo para prosseguir, cumprindo cada etapa do proposto para recuperar a integridade de sua saúde.

O marido, cada vez mais queixoso, não aceita os cuidados de outra pessoa. Por isso, além de tudo, àquela que tem nome de flor ainda cabe as tarefas de lhe preparar as refeições, acompanhar as atividades do dia, ajudá-lo na higiene. Os filhos já não sabem como preservá-la, protegê-la em percurso tão difícil. O filho mais velho divide-se entre acompanhá-la, atender às lamúrias do pai, cuidar de seus filhos e mulher, trabalhar.

Há coisa de um mês, foram descobertos alguns novos caroços no outro seio, e vários nos dois braços, próximos à axila. Ela estremeceu. O filho suspirou fundo. Colheram material que foi enviado para a biópsia. O médico sugere que sejam extirpados os dois seios, e feita uma espécie de raspagem nos dois braços. Em conversa com minha irmã, o filho mais velho disse que, caso se confirme o prognóstico, está pensando em interromper o tratamento. Quer poupá-la de tanto sofrimento. Acha, mesmo, que vai propor a ela viajarem juntos, de férias, como não fazem desde que ele era criança.

No último domingo, no fim da tarde, chegando em casa minha irmã encontrou um vazo florido deixado de presente para ela. Entre os botões em flor, um bilhete, cuja mensagem dizia mais ou menos o seguinte: “Querida amiga, passamos aqui para lhe dar um abraço, e dizer o quanto sua amizade é importante para nós. Na próxima semana, eu e minha mãe seguiremos para Natal. Vamos passar um tempo na praia. Papai fica aos cuidados do meu irmão mais novo. Um abraço. Filho Mais Velho daquela que Tem Nome de Flor”.



quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

As panelinhas da minha avó



A casa de minha avó materna ficava no mesmo quintal da casa de um dos filhos. Assim, ele podia ter-lhe atenção no que fosse preciso, ao mesmo tempo em que ela tinha seu espaço preservado, para conduzir as coisas ao jeito dela.

Ela sempre recebia mais visitas do que o filho. Na sala, netos, filhos, sobrinhos, afilhados, vizinhos entretiam-se em animadas conversas. Uns iam a cavalo, outros de bicicleta, bem poucos de carro. Havia os que passavam só para pedir a benção, outros iam para fazer um serviço, ou pedir alguma coisa, levar recado, trazer notícias. Alguns ficavam um pouco mais, tomavam chimarrão, esticavam a prosa até a hora do almoço.

Miúda, ligeira, os cabelos grisalhos presos numa trança eram enovelados num coque fixado por um grampo na parte alta da cabeça. Na cozinha, picava um punhadinho de charque, lavava um punhadinho de arroz, pegava uns pedaços de carne de porco guardados numa vasilha com banha, descascava uma raiz de mandioca pequena que logo lavava na bacia, deixando esbranquiçada a água. O punhado de arroz, refogado com o charque, era preparado numa panelinha de ferro, a mandioca ferventada noutra, o feijão já estava cozido desde cedo. A carne de porco era refogada numa frigideira. Só para esquentar, pois já era guardada pronta, imersa na banha.

Eu recontava, na sala, o número de pessoas que iriam ficar para o almoço. Olhava as panelas e tinha certeza de que a comida seria pouca.

Fia, me ajuda a pôr a mesa? Enquanto isso, ia até a horta, pegava um pezinho de alface, separava as folhas, e ia lavando, enquanto conversava com as mulheres que a acompanhavam.

Eu estendia a toalha sobre a mesa, dispunha os pratos brancos esmaltados, um a um, com os respectivos talheres. Na hora do almoço, ela punha o feijão numa travessa também esmaltada (algumas tinham uma estampa discreta com flor já meio desbotada), o arroz com charque na outra, as mandiocas macias numa terceira, e num prato redondo vinham as folhas de alface. A carne de porco era acomodada numa tigela de vidro de cor fumê. Às vezes, preparava uma limonada fresca, feita com limão caipira, bem vermelho, colhido na hora.

Todos se sentavam. Sem interromper a conversa, iam se servindo. Gente que trabalha no campo capricha na hora de fazer seu prato. Eu observava, enquanto a comida se multiplicava, como num milagre, ali, diante dos meus olhos. Todos ficavam saciados, nunca faltava. Também, nunca sobrava. Numa dessas vezes, minha mãe, às escondidas, acrescentou um punhado de arroz ao que ela já havia separado para ser preparado. Foi exatamente a quantia que sobrou, ao final do almoço. Para espanto da minha avó. Por que será que eu errei a quantia hoje?

Na sobremesa, todos tomavam leite no prato fundo. Leite cru, com espuma, acompanhado por banana picada em rodelas, ou por pedaços da mandioca cozida. À vezes, tinha angu de milho, docinho, para mistura. Ao gosto de cada um.

Depois cada qual seguia, cuidar da vida. Sua benção, Dinha Véia! Até mais ver, D. Ernestina! Deus te abençoe! Um abraço prá comadre! Lembrança pros demais! Casa vazia, louça lavada, apagado o tição no fogão a lenha, cozinha varrida, minha avó ia sestear no quarto ventilado, cheio de janelas abertas na parede de madeira. As panelinhas de ferro também repousavam na prateleira, bem areadas, brilhando tanto que pareciam fazer inveja ao alumínio. Ficavam ali, à espera da próxima sessão de milagres.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Uma fornada de chipa, uma manhã chuvosa, e o primo que veio de longe.



Para Nezinho, que não vejo há tanto tempo...
 E para Mara e Chico, com carinho.


Certas impressões ganham registro tão intenso na memória, que vez ou outra se mostram entre nossos pensamentos quotidianos, disparadas sabe-se lá porque, tão vivas quanto ao momento que as tenhamos vivido, não importa há quanto tempo.

Eu estaria por fazer 10 anos. Tínhamos nos mudado para a cidade para que eu ingressasse na vida escolar regular. E a cidade fervilhava com novidades, portas abrindo frestas para um mundo imenso e desconhecido, a instigar minha imaginação.

De algum lugar desse mundo chegou, para visitar os parentes, um primo que nascera e vivia muito distante, no Rio de Janeiro. Eu o conhecia de algumas fotos num velho álbum de família, sobre as quais minha mãe contava histórias e fazia descrições. Mas nas fotos, ele era sempre menino. Quando chegou, era um rapaz, querido, gentil com as curiosidades dos parentes, curioso para saber mais de nós.

Ficou hospedado na casa de uma irmã de meu pai. Fiz, a pé, o percurso entre a nossa casa e a dela algumas vezes, para vê-lo. Saía pela Rua Tiradentes até a Avenida Brasil, o que dava duas quadras, e então seguia mais quatro quadras até chegar ao endereço. Numa dessas visitas, levei-lhe meu álbum de recordações, e pedi que escrevesse alguma coisa para mim. Era um pequeno álbum, com um botão de rosa estampado na capa, e folhas com margens desenhadas. Minha mãe e meu pai haviam escrito poesias para mim, nas primeiras páginas. Meus irmãos formularam votos de alegria, sorte, sucesso. Colegas de escola prometiam amizade, sempre. No dia seguinte, recebi o álbum de volta. Suas palavras, escritas com letras muito miúdas, vieram carregadas de carinho, que quase me tiraram o sono, tamanha a alegria.

Na véspera de sua partida, minha mãe fez uma fornada de chipas para que ele levasse consigo, de volta para casa. Mas o dia amanheceu chuvoso, e lá pelo meio da manhã ela concluiu que não seria possível entregar-lhe o presente. Uma conclusão que me pareceu sem o menor sentido: desde quando chuva poderia ser impedimento para que se entregasse um pacote com chipas para uma pessoa querida em partida? Chuva nunca fora impedimento para nada, também não seria naquele momento. Eu cresci testemunhando meu pai sair para fazer pequenas viagens, ou visitas, mesmo quando estava chovendo: encilhava o cavalo, cobria-se com a capa a lhe dar um ar mais sóbrio do que o comum, o chapéu lhe protegia a cabeça, e seguiam, cavalo e cavaleiro, em passos seguros, perdendo-se no cinza da paisagem molhada. Do mesmo modo, minha mãe cuidava dos animais, atendia todas as demandas domésticas, a despeito de estar chovendo ou não. Não haveria de ser sempre assim?


Calcei meu par de galochas, empunhei o guarda-chuvas, segurei o pacote com firmeza, e segui, entre poças, enxurradas, lamas e barrancos, pelas seis quadras do percurso. Num instante estava lá, para espanto de todos, que admiraram minha coragem para enfrentar toda aquela chuva!

O sentimento mais sincero a pulsar me dizia que o desafio da chuva era de pouca valia diante do desejo de me despedir do primo que conquistara meu coração. Aliás, a chuva nem chegava a ser um desafio, para quem, aos 10 anos, tem o mundo para desvendar. A chuva pode ser, mesmo, um estímulo a mais, uma motivação.

Ou essa seria apenas uma percepção de alguém com não mais que 10 anos? Quantos projetos terão sido adiados por mentes e corações adultos com a desculpa de estarem as manhãs chuvosas e as ruas alagadas?

Aquela manhã, aquela chuva, minha determinação em ir vê-lo, a despedida, são imagens fortes que não se desfazem no tempo. Saudades, Nezinho!



segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Casos de amor, sobressaltos, e outras revelações...

ou 
Pequeno conto no qual a personagem principal não comparece à cena...

No início dos anos 80, nossas vidas andavam em ebulição. Meu Amigo (que aqui chamarei apenas assim: Meu Amigo, para preservar-lhe a identidade) chegara do exterior, onde, longe das garras repressoras da ditadura militar, vivera as mais diferentes experiências, em intensidade e multiplicidade. De volta, dedicava-se ao trabalho com muito envolvimento. Ali, conheceu nossa Amiga Arte-Educadora (que também será assim referida neste texto), com quem estabeleceu vínculos fraternos afetuosos.

Chegou um tempo quando Meu Amigo começou a mostrar-se ansioso, tenso, angustiado. Num final de tarde tomou-se de coragem e falou-me do seu medo: andava observando o aparecimento, em seu corpo, de alguns sintomas desconfortáveis, que poderiam ser indicadores de AIDS. A síndrome pairava sobre as cabeças como possibilidade de degredo. No entanto o dado a angustiá-lo de modo mais pungente ainda estava por me ser contado. Logo de seu retorno ao Brasil, conhecera um médico, professor universitário, com quem se envolveu, mantendo uma relação afetivo-íntima durante mais de ano. Mais recentemente, descobrira que o médico era casado com a nossa Amiga Arte-Educadora.

Com tantas novidades, ele andava com os nervos à flor da pele. A razão lhe apontava a primeira providência a ser tomada, para só então tomar decisões, verificar encaminhamentos, etc. Não foi sem pânico que fez o exame, e foi entre comemorações que viu o resultado negativo. Pronto, refeitas as forças, tocou a vida. Já não precisava mais fazer grandes revelações, expor-se, tornar-se vulnerável. Cuidaria de se preservar, e cultivar seus afetos.

A vida é assim: quantas pessoas queridas, com quem convivemos durante períodos importantes, acabam encaminhando-se por veredas diferentes das nossas, e as vemos cada vez menos. Eu me mudei, transferi meu trabalho para outra região, envolvi-me com outros projetos. Eles também. Não encontrei mais Meu Amigo. Muitos anos depois, ao acaso, reencontrei nossa Amiga Arte-Educadora. Estava bem. Contou-me que os filhos estavam crescidos, cheios de novidades a cada dia. E, mostrando-se forte, arrematou com a nova: separara-se do marido. - "Você não pode imaginar o que eu descobri!" Levei um quase susto. Aguardei pelo desfecho da narração iniciada: - "A gente vive tanto tempo com uma pessoa, e não conhece nada dela! Aquele safado! Você acredita que ele tinha outra família? Mulher, filhos da idade dos meus, e tudo o mais!"



quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Hortelã graúda da folha gorda



Dia de feira. De sacola em punho, fui comprar café moído na hora, radiche, milho verde... Hoje acrescentei à minha pequena lista um maço de hortelã graúda, boa e cheirosa, para colocar na salada. As folhas são aveludadas, grossas. Ao toque, liberam perfume.
- Só tem desta aqui; a que a senhora quer, a hortelã da folha gorda, não tem não.
São conhecidos, para começo de conversa, três tipos: hortelã miúda, hortelã graúda, e esta, a hortelã graúda da folha gorda.
- Essa, onde eu posso encontrar?
- Ah, aqui vai ser difícil. Não vende em feira não. Só tem quem planta em casa...
Uma das feirantes comentou que a avó tem no quintal.
- Traga um maço para mim, então!
- Se eu lembrar... mas eu não vou lá por agora...
Adiante, uma mocinha falou que já viu uma touceira numa casa de sua rua.
- Então, você pode conseguir para mim!
- Mas eu não conheço a dona... A senhora tinha era que plantar para a senhora!
- Como posso plantar se não consigo quem arrume a muda?
Rimos. Voltei sem as folhas de hortelã graúda gorda. Chegando em casa, comentei com minha vizinha o insucesso do meu intento. Ela riu-se:
- Ah, hortelã da folha gorda, só tem quem planta em casa...
Quanto a isso, não há dúvida, é consenso: só tem quem planta em casa.
Agora procuro quem tenha do tempero plantado em casa, para conseguir umas folhas, um galhinho, quem sabe, e plantar num vaso, aqui na varanda.

                                           Encontrei esta foto  aqui






sábado, 7 de janeiro de 2012

O novo cardiologista da minha mãe



Com frequência, quando fica absorta nalgum afazer, escrevendo ou costurando, por exemplo, a certa altura é tomada por intenso mal estar: as batidas cardíacas se alteram, sente tontura, se banha de suor, uma angústia no peito. Então se dá conta de que há algum tempo parou de respirar. A apneia em estado desperto associada à arritmia cardíaca e um desequilíbrio na pressão arterial acabaram levando-a a vários cardiologistas que se tornaram grandes amigos seus. E as consultas ganharam feições de visitas afetuosas. O cardiologista mais antigo tem várias coisas em comum com ela: também escreve, e enfrenta quadro semelhante de apneia e arritmia cardíaca. Então os dois divertem-se trocando livros e elogios, e conversando sobre suas idiossincrasias. O segundo cardiologista tem com ela uma ligação filial, o que faz da consulta um encontro em que são tratados assuntos de família, quando se falam de filhos, educação, projetos pessoais. O terceiro cardiologista é seu vizinho, já leu todos os seus livros de poesias, e a conhece o bastante para saber que ela não tomará os remédios receitados, tampouco fará os exames solicitados. Talvez até os faça, mas entre muitos queixumes. Então conversam sobre o condomínio, suas plantas, projetos para novos livros. Ela argumenta em favor dos chás e suas propriedades medicinais superiores aos remédios em geral, no que ele acaba assentindo. Por isso minha irmã pensou que talvez fosse melhor buscar um cardiologista que não fizesse parte de suas relações de afeto, para estabelecer uma relação estritamente profissional. Assim fez. No dia marcado, ficou aguardando na antessala, enquanto ela entrou para a consulta. Poucos minutos transcorridos, e já ouviu suas risadas vindas de dentro do consultório. Os risos se estenderam, e outras senhorinhas que também aguardavam riram-se com ela. Findo o tempo da consulta, o médico a trouxe até à porta, para despedir-se, tranquilizar minha irmã, e chamar a próxima cliente. Os dois estavam alegres. Tinham trocado receitas de pão, falado sobre poesia, conversado sobre a vida no campo. Mais tarde, minha irmã lhe perguntou sobre a opinião do médico a respeito da apneia e da arritmia cardíaca. Ela respondeu que não tinha dado tempo de conversar sobre isso...


sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Boas vindas, com uma pitada de saudade e cheiro de esperança.



p/ Felipe e Nana.

Embarquei no final da tarde, num ônibus que seguiu em direção a São João d’El Rei. Pouco depois das 3h da manhã, desembarquei em Divinópolis. Aguardei na rodoviária pelo ônibus que saiu, às 5h, rumo a Bom Despacho. Eram 7h da manhã quando desembarquei na praça do centro, em Araújos. O sol ainda estava baixo, e sua luz atravessava as folhagens das árvores e outros arbustos, com raios doces em tom amarelado. A temperatura amena, confortável, motivava os transeuntes já em atividade. Na calçada, ele me aguardava. Sapatos pretos, bem engraxados, bermuda e camisa de algodão, bem passados, os cabelos molhados penteados para trás, perfume de banho recém-tomado. Uma rosa vermelha nas mãos. Estava compenetrado no cumprimento do ritual de espera. Senti o coração bater forte, e uma onda de ternura me inundar. Meu amigo querido me recebia, elegante, amoroso. Felipe não tinha mais que 7 anos, à época. Sorriu-me, entregou-me a flor. Eu desejei fixar o instante em minha memória, para não me perder daquele sentido de afeto e amizade. Depois seguimos para a casa da sua tia, onde eu ficaria hospedada. Conversamos, brincamos, não percebemos o passar das horas. Hoje, moço feito, está por concluir o curso superior. Há alguns anos não o encontro. Mas aprendi, com ele, que podemos acolher quem chega com afeto, com cuidado, e isso é pouco, e isso vale tanto, e esse amor marca para sempre...

Que possamos desembarcar em 2012 assim, numa praça inundada pela luz da manhã, e encontrá-lo cheio de frescor, perfumado, pronto para nos acolher. E que possamos também acolhê-lo, brincar com ele, ouvir-lhe as histórias, aprender caminhos para construir o futuro, juntos.


segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Um ingresso por uma casa para Néia



Sempre achei muito caros os ingressos cobrados pelo Cirque Du Soleil. Mas nunca tive dúvidas quanto ao potencial de encantamento dos seus espetáculos, quantos deles marcando de modo indelével nossos imaginários. Tudo fruto de trabalho primoroso e exaustivo desenvolvido a longo prazo, envolvendo doses equilibradas de técnica, tecnologia e paixão. Por isso, naquele ano decidi que iria ao Cirque, e essa seria a celebração do meu aniversário.

Foi por aqueles dias, também, que encontrei a Néia cheia de angústia. Estava morando com os dois filhos pequenos e o marido numa casa alugada, localizada num bairro distante, sem água, nem segurança. Acabava passando os dias com a mãe, e temia que lhe roubassem suas poucas coisas, enquanto estava ausente. Precisavam decidir se valia a pena cavar um poço, ou investir o dinheiro – de que não dispunham – para arrumar um barraco nos fundos da casa de sua mãe, dando condições mínimas de habitação. O que falta? Portas e janelas, e fiação para puxar a luz. Assim, já seria possível a família ocupar o espaço da casa. Tudo o mais poderia ser ajeitado depois aos poucos. De quanto precisariam para essa primeira etapa? Pouco mais do que o valor de um ingresso para o espetáculo do Cirque Du Soleil...

Naquele ano, pedi ao meu marido, como presente de aniversário, que se juntasse a mim para participar do trabalho que asseguraria condições à nova morada da Néia e sua família. Não fomos ao Cirque. O valor dos dois ingressos foram convertidos em material de construção. Depois confessamos, um ao outro, a alegria em estado puro que nos assaltou, tomada a decisão.

Um ano e meio depois, as paredes já estão todas rebocadas e pintadas, o piso com cerâmica, água nas pias, no tanque, no sanitário. No mês vindouro, começarão a construir mais um cômodo, para desmembrar a área da sala de estar da cozinha.

O Cirque está em mais uma tournê pelo Brasil.


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Para cultivar seu amor pela vida toda...



P/ Miriam e Luiz, mestres também no amor

Aguardava à porta de saída da faculdade, quando ela passou por mim. Pequena estatura, elegantemente simples, cabelo bem cuidado, acenou-me finda a jornada do dia. Parou a meio caminho e voltou para perguntar se eu esperava pelo meu marido. Confirmei. Ela se entusiasmou: "Faça isso sempre, mesmo quando não precisar. Eu faço isso com o meu. Às vezes, eu preciso até arrumar uma desculpa, para que ele venha me pegar. Ele fica feliz com isso, e eu também. É uma forma de ficarmos juntos um pouco mais, de compartilharmos mais uma parte do dia, e também um modo de eu mostrar que ele é importante para mim, que eu preciso dele, que esse sentimento é mútuo...". A essas alturas, seu esposo já a aguardava no estacionamento. Enquanto ela se despedia de mim, ele conversava com o guarda de segurança, velho conhecido seu. Ela o encontrou com um beijo, embarcou no lado do passageiro, ele fechou a porta dela num gesto cavalheiro. Seguiram, contentes.

Nestes dias que antecedem o Natal, a cidade anda mais nervosa do que o normal. E embora o verão se inicie hoje, o dia amanheceu muito chuvoso. A temperatura não passou dos 20ºC. Seu velho companheiro partiu pela manhã, sozinho. Ela aguardou por esse momento em prantos quase silentes que se prolongaram por meses, em pausas entre os cuidados que lhe dedicou nesses dias sofridos.



sexta-feira, 11 de novembro de 2011

filhotes de quero-quero

No gramado em frente à casa, alguns casais de quero-queros fiziam ninhos onde chocavam os ovos, gestando suas crias.

Nesse mesmo gramado, meu pai reunia o gado periodicamente, para que comessem sal mineral enriquecido, depositado em cochos de madeira preparados para isso, e dispostos espaçadamente em toda a área.

Muitas vezes, o gado pisoteava os ninhos, esmagando os ovos, ou mesmo os filhotes recém-nascidos. Os quero-queros adultos lutavam contra os animais desproporcionalmente maiores que eles. Depois nos atacavam, aos moradores da casa, quando cruzávamos o gramado.

Tanto tempo depois, num recanto da metrópole, acompanho uma família de quero-queros cuja luta cotidiana não é menos desafiadora. Encontrei uma fêmea em choco, num ponto próximoi à toca de outra família de aves, no caso, corujas buraqueiras. Depois de tê-la observado por alguns dias, fui surpreendida pelo movimento tímido de quatro filhotes (os que consegui avistar) sob os cuidados da mãe e o olhar severo do pai, pronto a atacar qualquer visitante indesejado, inclusive outros quero-queros não pertencentes àquele núcleo familiar.

Pouco tempo depois, os reencontrei com a ninhada reduzida a um único filhote. Assisti aos adultos nervosos com as movimentações em torno, e no ataque declarado a outras aves a pequena e mesmo grande distância, enquanto a cria se esconde entre a grama alta, à espera dos piados maternos que acalmam e chamam de volta para o gramado mais raso, passados os perigos.

O que terá ocorrido aos demais filhotes? Que predadores terão vencido o cerco de cuidados do casal de quero-queros?

Nutro a esperança de que o filhote sobrevivente atravesse o período crítico, e se imponha aos riscos. E vou acompanhando seu desenvolvimento, observando-o cada vez mais esperto tanto para catar bichinhos com que se alimentar, como para se esconder rapidamente entre as folhagens. Escapando-me à visão. E à dos inimigos outros...