terça-feira, 22 de março de 2016

Breve inventário de memórias das últimas décadas do século XX


1984
Recém-formada no curso de graduação, comecei a dar aulas numa escola particular, para ganhar um salário que era quase nada. Minha irmã foi internada com um quadro de apendicite supurada. Ficou na UTI por vários dias. Transcorria o mês de abril. Foi bem por esses dias que a população ocupou as ruas, no movimento pelas Diretas Já. Queríamos que o presidente da República fosse eleito pelo nosso voto, e não pelo voto dos parlamentares. Houve panelaço, e usamos roupas amarelas. Pelo menos uma fita amarela presa à lapela. Eu transitava entre a escola e o hospital, trajando amarelo, vibrando com o que estava acontecendo.

O Congresso, a essa época, era formado por parlamentares de dois partidos: o ARENA, que apoiava o governo militar, e o MDB, que ensaiava alguma forma de oposição. As mobilizações que aconteceram durante o ano acabaram fazendo emergir um nome que conseguia negociar tanto com o Parlamento quanto com a população. Tancredo Neves, em meados dos anos 60, fora responsável pelo batismo do partido ao qual se vinculava: Movimento Democrático Brasileiro. Ali, em meados dos anos 80, se iniciavam as negociações que o levariam a aceitar candidatar-se à presidência, trazendo José Sarney como seu vice, e assumindo o papel daquele que, atendendo os anseios da população, faria a transição do país de volta ao regime democrático, instalando uma nova Constituinte, e restaurando as eleições diretas.

1985
Em 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral se reuniu, e elegeu Tancredo Neves para um mandato de seis anos. Concorreu com ele Paulo Maluf, pelo ARENA. Mas já se sabia que a companhia de José Sarney, ali, representava a presença do segmento político que apoiara a instalação da ditadura. Os avanços aconteciam acompanhados pelas sombras.

Eu estava dando aulas numa escola localizada entre o Guará I e o Guará II. Saí às 9h30 da noite, e fui para a parada de ônibus, para retornar ao Plano Piloto. Havia outras pessoas por ali. No dia seguinte, Tancredo tomaria posse. Um rapaz chegou, com um radinho, ouvindo o noticiário. Tancredo tinha sido internado no Hospital de Base, em quadro grave. Um silêncio se instalou entre os que estavam ali. Havia uma perplexidade no ar. Tive a impressão de que todas as multidões em todas as ruas em todas as cidades que reivindicavam as diretas já desde o ano anterior de repente tinham silenciado.

No dia seguinte, José Sarney tomou posse, com Tancredo internado. O ato, que não tinha amparo legal, resultou de negociações diversas dentro do MDB, com os militares e o Parlamento. Tancredo veio a morrer em abril. Diz-se que, de fato, em 20 de abril. Mas oficialmente em 21, em razão da data simbólica. A música Coração de Estudante, cantada por Milton Nascimento, que fora entoada durante as Diretas Já, foi a trilha sonora que acompanhou os funerais de Tancredo.

O país teria, pela frente, 6 anos com Sarney na presidência, e uma crise econômica sem precedentes, com inflação galopante. Ao final do seu mandato, a inflação chegara aos 84% mensais.

1987/1988
Em 1987, também em torno a mobilizações populares, foi instalada a Assembleia Constituinte. Houve debates e participação dos segmentos sociais em várias instâncias. Em 5 de outubro, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Nesse ínterim, eu, professora da rede pública de ensino do Distrito Federal, participava intensamente do movimento sindical, em greves e mobilizações que enfrentavam as políticas locais, comandadas por governadores indicados pela Presidência da República. Os chamados governadores biônicos. O último deles, Joaquim Roriz, tomou posse em setembro de 1988.

1989
À saída do Supermercado Panelão, um mercado popular no início da Asa Norte, encontrei um menino que vigiava carros. Trocamos algumas palavras. Elas vibravam certa expectativa que nos rondava. Aproximava-se o dia quando, depois de duas décadas e meia, haveria eleições diretas para escolhermos o Presidente da República. Na campanha eleitoral, de um lado, Fernando Collor de Melo assumia o papel de “caçador de marajás”, e de outro, Luiz Inácio Lula da Silva, líder sindical, assumia as vozes dos segmentos mais pobres, dos trabalhadores, dos assalariados. Em Brasília, Collor era antigo conhecido. Por isso mesmo, seria destinatário de poucos dos votos distritais. Os eleitores brasilienses votariam, majoritariamente, em Lula. O menino, no estacionamento do supermercado, sabia disso. Abraçou-me. Havia esperança entre nós. Havia esperança no ar.

O menino, aluno de escola pública, eu, professora na rede pública de ensino, acreditávamos ser possível instaurar novos tempos, com nossas vozes representadas, final.

Em Brasília, as eleições para a presidência ganhavam um sentido ainda mais forte, pois representavam a instauração de um tempo quando o Distrito Federal passaria não só a eleger seu próprio governador, como ter sua Assembleia Legislativa. Havia, sim, uma esperança vibrando no ar.

Contrariando nossos sonhos, Fernando Collor de Melo venceu aquelas eleições, e tomou posse em 1990. Joaquim Roriz, o último governador biônico do Distrito Federal, foi também o primeiro governador eleito, depois de um breve afastamento do cargo, enquanto assumiu a pasta de Ministro da Agricultura, no quadro de ministros do Presidente Collor. Assim, começávamos os novos tempos...

1990
Para combater a inflação de quase 3 dígitos ao mês, herdada de José Sarney, Fernando Collor de Melo confiscou as poupanças de toda a população, logo que assumiu o cargo de Presidente da República. Foi um desastre. Talvez não seja possível relatar a sensação que foi, pela manhã, descobrir que cada cidadão só teria acesso, de todas as economias depositadas nas agências bancárias, a 50 mil cruzeiros, o que corresponderia a algo pouco mais que 6 mil reais, hoje. Houve toda sorte de desespero e tragédias. Um senhor, no dia anterior, vendeu sua fazenda e todos os pertences, para, no dia seguinte, fechar negócio em outro lugar, comprando sua nova morada. O dinheiro, depositado em sua conta no dia anterior, foi sequestrado durante a noite, e ele amanheceu sem nada. Inumeráveis suicídios foram computados em razão de situações como essa.

1991
A popularidade de Collor caia na mesma velocidade em que a inflação continuava subindo. Em 1991, estava na casa dos 400% ao ano. A Casa da Dinda, residência oficial do Presidente, foi nome que passou a ocupar as conversas em todos os momentos. Novamente a população começou a se mobilizar. A insatisfação grassou o país nos quatro pontos cardeais. Ao mesmo tempo, pipocavam notícias de fraudes financeiras, escândalos familiares, embates e bate-bocas de toda sorte entre o Presidente, seus aliados, a base governista no Parlamento, o Legislativo, etc.

Em abril, Collor voltou a Juazeiro, a terra do Padre Cícero, um dos pontos fortes de sua campanha eleitoral, quando venceu Lula no segundo turno. No entanto, nesse retorno, já não gozava de tanta força e felicidade. Ao contrário. A população estava já insatisfeita com a atuação do Presidente que prometera caçar os marajás e atender às necessidades dos pobres. Havia contestação no ar. A população se preparara para manifestar-se sob a palavra de ordem do “Fora Collor”. Houve repressão policial e pancadarias. O Presidente pronunciou, então, um discurso inflamado que reverberou pela República afora. Ele dizia não ter medo de nada. E bradou que tinha nascido com “aquilo roxo”, fazendo referência à expressão popular que liga a ideia de “saco roxo” à ideia de masculinidade e coragem. Assim, encarava a população insatisfeita, afirmando que enfrentaria todos aqueles que conspirassem contra o processo democrático.

Juazeiro foi o marco inicial das manifestações contrárias ao seu governo. A partir dali sua popularidade viveu uma queda livre, na mesma proporção em que cresciam as crises e escândalos.

1992
Collor estava pressionado pela instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava um esquema de corrupção em seu governo. Como estratégia desesperada, convocou a população para que ocupasse as ruas, vestindo verde e amarelo, em defesa da estabilidade política da nação. No dia 16 de agosto, multidões saíram às ruas, em todo o país, vestindo preto, com os rostos pintados com verde e amarelo, bradando pela saída do Presidente. Era o domingo negro, como ficou sendo conhecido, protagonizado pelos cara-pintadas.

Em 29 de dezembro, apesar de ter apresentado o pedido de renúncia para evitar ser impedido pelo Parlamento, Collor teve seu processo de impeachment votado e aprovado. Ficaria impedido de se candidatar novamente a qualquer cargo público por 8 anos. Itamar Franco assumiria a Presidência da República no período de 29 de dezembro de 1992 a 1º de janeiro de 1995, quando passou a faixa presidencial para seu sucessor.

1994/1998
Em 3 de outubro, Fernando Henrique Cardoso venceu, no primeiro turno, Luiz Inácio Lula da Silva, na corrida presidencial. O sociólogo teve, em seu favor, o fato de ter sido o responsável pelo Plano Real, durante o governo Itamar. Foi o Ministro da Fazenda que contabilizou o feito de controlar a inflação. Em 1998, foi reeleito, também no primeiro turno.

Já o Distrito Federal não viveu esse período com muita tranquilidade. Em 1994, elegeu um professor para assumir o papel de Governador: Cristovam Buarque, que tomou posse em 1995. Apesar de todo o investimento em projetos educacionais que protagonizou, em 1998, o governador enfrentou uma greve de professores forte. Uma crise de identidade se instalara então: um professor alçado ao cargo de governador, assessorado por antigos líderes do Sindicato dos Professores, via-se no embate com a categoria docente, liderada agora por representantes que, outrora, combatiam o movimento sindical... 

Essa parte da lição acho que ainda não conseguimos compreender em sua complexidade e trama de contrações...

No segundo semestre de 1998, Cristovam Buarque não foi reeleito, tendo perdido o pleito para dar espaço ao já velho conhecido Joaquim Roriz, que voltaria para conduzir o GDF por mais dois mandatos consecutivos, a despeito de todas as polêmicas em torno de suas gestões.

Ao todo, Joaquim Roriz governou o Distrito Federal por quatro mandatos.

2000
No primeiro semestre de 2000, iniciei meu curso de Doutorado em Sociologia. A turma era grande, marcada pela presença de intelectuais e militantes políticos, orientados por convicções marxistas. Meus colegas não descansavam no enfrentamento ao professor de Teoria Sociológica, defensor entusiasta de ideias neoliberais, e crítico feroz ao velho Marx, cuja obra lera, completa, em alemão.

As posições do sociólogo que ascendera ao posto de Presidente da República eram sempre evocadas, em discussões inflamadas. Aquelas discussões sinalizavam que talvez já se aproximassem os tempos quando o líder sindicalista já teria barganhado o suficiente com os segmentos econômicos e políticos que definem os rumos do país, para, finalmente, se eleger pelo voto direto e ser conduzido ao cargo máximo do Poder Executivo. O que viria a acontecer em 1º de janeiro de 2003, depois de ter vencido José Serra, candidato apoiado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que fora também seu Ministro.

Em sua campanha, Lula apresentou um discurso menos inflamado, mais aberto a negociações. Parecia ter amadurecido a capacidade para conquistar a confiança tanto da população quanto dos poderes econômicos.

2003
As árvores ao lado do prédio onde eu morava ainda eram jovens, e não tinham alcançado o quarto andar. Por isso, da janela da sala era possível avistar o movimento do Eixão, o Eixo Rodoviário que corta a cidade correndo de Norte a Sul. No dia 1º de janeiro, ficamos no plantão, aguardando o momento quando passaria por ali a comitiva conduzindo Luiz Inácio Lula da Silva para tomar posse como Presidente eleito pelo voto popular. Havia movimentação em toda a cidade. Uma comoção pairava no ar, semelhante à que levou o menino a me abraçar longamente no estacionamento do Supermercado Panelão, nos idos de 1989. O líder sindical, finalmente, tornara-se Presidente da República.









quinta-feira, 10 de março de 2016

Sobre inutilidades e também sobre apagamentos de vozes femininas...


Recebi, hoje, o livro A utilidade do inútil, um manifesto, de Nuccio Ordine, lançado em 2016, pela Editora Zahar. Fiquei feliz com o pequeno livro entre os dedos.

Quando o encomendei, movia-me a lembrança de quando decidi fazer aulas de esperanto, e alguém me questionou qual a utilidade. Entre risos respondi que era exatamente pela aparente falta de aplicabilidade instrumental que me interessava aprender aquela língua. Em outras palavras: entre tantas coisas úteis a que me via compulsoriamente empurrada, buscava uma coisa inútil para fazer. Talvez nem tanto... Ao fim, não consegui estudar todo o semestre, acabei abandonando as aulas. Meses depois soube que meu professor falecera. Esse é ainda um projeto a ser realizado. De alguma forma, comprar esse livro talvez fizesse parte do complemento à minha resposta sobre a possível inutilidade de estudar esperanto...

Sim. O livro traz uma compilação de pensadores desde Platão até os contemporâneos, em defesa da necessidade inquestionável de atividades inúteis para o crescimento da humanidade. Ou seja: mesmo em tempos de crise, não são só as atividades utilitárias, instrumentais que devem ser asseguradas. Uma lista infindável de atividades inúteis têm sido condição sem a qual a humanidade definha.

Mas confesso que fui impactada por um dado que me bateu à face, logo ao primeiro olhar: todos, absolutamente os autores reportados são homens. Nem uma voz feminina teria sido convocada para a defesa do inútil.

Estariam, todas, no decurso da história ocidental, muito ocupadas com atividades úteis, a ponto de não poderem nem usufruir do inútil, nem pensar sobre ele? Suas vozes teriam sido silenciadas, ou não ouvidas, em razão de que os papéis a elas atribuídos sejam, sobretudo, o de atender às necessidades de que se ressintam os homens, ou seja, cuidar do que seja útil, para que eles tenham condições de argumentar em favor do inútil?

Sim, é bem provável que a todos estes homens, e aos outros quantos não incluídos no manifesto, tenha sido possível dedicar-se à defesa das atividades inúteis, gastando tempo a toa nos espaços públicos, tão somente pelo fato de que mulheres estariam garantindo que as atividades úteis fossem executadas, e assim seu bem-estar estivesse assegurado... E como as atividades úteis não são inúteis, e portanto não são portadoras de glamour, sequer merecem registro na história, ou na filosofia... São apenas úteis... Fim.

Minha leitura desse livro será pautada por ponto de vista muito diverso do que supunha, a princípio. Cada página no papel de gramatura 80 vibrará com o impulso pela defesa do direito das mulheres de se ocuparem, também, das inutilidades e, mais que isso, falarem sobre, e terem suas vozes reverberadas.