segunda-feira, 11 de outubro de 2021

No dia de meu aniversário


Fiz aniversário. O dia de meus anos, desta vez, caiu num domingo chuvoso, depois de longo período muito quente e com baixos índices de umidade, numa estiagem que maltrata a paisagem e seus habitantes. A trilha sonora ficou por conta das cigarras e sabiás, que celebram a chegada das chuvas. Estou em casa de minha mãe por estes dias. Ela cumprirá, em pouco tempo, seu 94º aniversário. A estas alturas da vida, a memória se atrapalha, mistura informações, não consegue confirmar dados. Que dia é hoje? Que horas são? Qualquer resposta provoca admiração. Então minha irmã lhe contou que era meu aniversário. Ela se espantou. Não lembrava ao certo que dia era. Confirmou. Fez festa, desejou alegrias, me abençoou. Algum tempo depois, já não se lembrava nem do meu aniversário, nem que já comemorara comigo. E já se ia, novamente, me felicitando pelo dia natalício. Mais uns instantes, e ela própria indagou sobre a data, e confirmou que era meu aniversário. Mais uma pequena festa. E muitas outras que se sucederam no decurso daquelas 24 horas.


E transcorreu o domingo chuvoso cheio de frescor, entre pequenas festas a cada instante que resultavam em muitos beijos e bênçãos com votos de felicidades. Sempre entre espanto e alegria pela constatação do dia que merecia celebração.


Ah, a vida! Ah, os ciclos!

 

 

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Filhotinho de rolinha



Desde ontem, algumas emoções e sustos emergiram aqui em casa. O filhotinho da Paloma, a rolinha que fez casa na varanda do apartamento, saiu muito cedo do ninho. Não está emplumado o bastante para ensaiar voos. Passou a noite no chão, entre as plantas, sob o olhar dela, atento, desde o alto das instalações colombinas. Ficamos sem saber o que fazer. Decidimos não interferir, com medo de assustar ainda mais tanto ele quanto ela. Hoje, mais ao final da manhã, o filhote ainda estava no chão, tremendo. As penas já estão mais abertas e, por incrível que pareça, o papinho estava bem cheio. Ou seja, a mãe tem alimentado ele mesmo fora do habitat. 

Foi então que eu notei: a Paloma não estava no ninho. Num ímpeto, catei o pequeno, subi numa escada, e coloquei a criatura de volta ao berço de onde não deveria ainda ter saído. O coração na mão, fechei a porta da sala, e a cortina, na esperança de que a mãe não o rejeitasse, por estar com o meu cheiro. 

Instantes depois, a Paloma voltou. 

Está tudo bem. Ela está cantando, no ninho. O pequeno está lá, com ela, se mexendo, agitando as asas. Recobrado do susto, no mínimo já ensaia saltar fora do ninho novamente. A mãe o observa, paciente. Esse menino não aquieta! 

 

 


sábado, 24 de abril de 2021

O sapo


Quem venha das bandas do poente caminha pouco mais que meia légua depois da ponte, e já se depara com a entrada para a casa da minha tia, numa curva da estrada. Ali, ela vive com o marido, as plantas e os animais domésticos. E outros que se agregam às instalações residenciais, sem necessariamente terem sido convidados, por assim dizer.

Tem já algum tempo, ela começou a se deparar com o aumento da população de sapos. Quando menos espera, tropeça num. Uns mirrados, outros bem grandes... Sapo é bicho que não se pode matar. Toda vez que encontra um, com todo o cuidado, ela coloca o animal num saco, e o deixa no outro lado do rio. 

Andava cansada de tanto atravessar o rio para levá-los à outra margem. Coisa trabalhosa. Também começou a ter dúvidas a respeito da quantidade efetiva de sapos, especialmente os maiores. Por isso, resolveu tomar uma providência. Munida com um vidro de esmalte vermelho, pegou um dos sapos, dos grandes, e pintou-lhe as unhas. O bicho, imobilizado dentro do saco, não teve como escapar. Ela ainda esperou, pacientemente, até ter certeza de que a tinta estava seca, antes de deixá-lo, como de rotina, do outro lado do rio. Voltou para casa, entre expectativas.

Não demorou nem uma semana, e ela já pôde fazer a verificação de que precisava: lá estava o sapo, nas cercanias da casa, senhor de si e das unhas pintadas com seu esmalte vermelho. Havia outros. Mas aquele, especificamente, passou a ser referência para ela. 

É de se supor, também, que ela tenha sido adotada pelo sapo, e não o contrário. Talvez fosse ele quem andasse às voltas, tentando entender as motivações dela para leva-lo, tão insistentemente, para o outro lado do rio...




domingo, 21 de fevereiro de 2021

Sobre um encontro com Lisístrata

 

Lisístrata, a greve do sexo é uma comédia grega escrita pelo grego ateniense Aristófanes, que teria vivido por volta dos anos 445 e 385 antes da era cristã. Ela conta a história do levante de mulheres de Atenas, com a parceria das espartanas, lideradas por Lisístrata, contra a guerra interminável entre soldados atenienses e espartanos. A guerra ceifa a vida dos homens e dos filhos dessas mulheres, além de esvaziar os cofres públicos. Elas, então, decidem deflagrar uma greve de sexo, que só é interrompida quando seus maridos assinam o acordo de paz. O acordo, personificado pela própria figura da Paz corporificada, é a condição para que se inicie uma orgia. Fecha-se o pano. Fim de espetáculo.

Em meados dos anos 1980, uma amiga integrou o elenco que estava trabalhando na montagem do espetáculo. Ela faria exatamente a personagem Paz. Eu comecei a ajuda-la na na composição da personagem. Para tanto passei a comparecer aos ensaios. Ela desistiu de participar, e eu acabei assumindo o papel. Tinha me afeiçoado. Ao longo das demais cenas, eu participava do côro feminino. A certa altura, deixava o côro, indo preparar a personagem final, com maquiagem intensa, apliques que alongavam os cabelos até à altura das pernas, um véu muito transparente e o corpo nu.

O elenco era numeroso. No decurso dos trabalhos, delineou-se uma divergência entre o grupo dos homens, autorreferidos como mais profissionais, exigentes no tocante aos rigores da produção, e o grupo das mulheres, por eles apontadas como amadoras, pouco profissionais. As tensões decorrentes dessa situação intensificaram-se desde circunstâncias pontuais até uma predisposição quase permanente para a discussão.

Se o elenco feminino, em geral, era considerado amador, especialmente eu era destinatária de piadas recorrentes. A personagem Paz não tinha fala, e a mulher do côro se manifestava poucas vezes, no coletivo, sem destaque. Amiúde, eu ouvia por parte de alguns dos atores a pergunta: “Vocês já ouviram a fala dela? Gente, prestem atenção, senão não ouvimos sua voz!”

A atriz que interpretava Lampito, a espartana que participava na assembleia de mulheres atenienses, na primeira cena, começou a cobrar do diretor uma tomada de posição em relação às provocações recorrentes do elenco masculino. O diretor tentava contornar a situação, sem confrontos.

Havia, sim, uma cisão claramente marcada entre homens e mulheres na montagem daquele espetáculo que tratava exatamente de uma greve deflagrada por mulheres ante o comportamento competitivo e belicoso dos homens... curiosa situação...

A pré-estreia do espetáculo estava agendada para um sábado, numa cidade satélite. Funcionaria como um ensaio geral com público. Na quinta-feira da semana seguinte ocorreria a estreia para temporada de várias semanas no teatro onde tudo já estava devidamente montado: cenário, iluminação, sonorização, etc. Na quinta feira de véspera, a atriz que interpretava Lampito, depois do ensaio e de alguns confrontos com o elenco masculino, anunciou sua saída do espetáculo. Não se sujeitaria mais àquela situação. Antes de se retirar, desafiou o diretor: “Quero ver você estrear essa peça”.

Lisístrata andava com a popularidade em alta, por aqueles tempos. Numa faculdade de artes cênicas, um professor acabara de montar a cena da assembleia, fazendo alguns experimentos de atuação, cenário e figurino. Alguém sugeriu convidar a atriz que interpretava Lampito dessa outra montagem, e assim se fez: a pré-estreia, na cidade satélite, contou com a atriz que fazia parte do outro projeto. Embora tudo tenha transcorrido bem, ela comunicou que não poderia permanecer no espetáculo, por uma questão ética. Sua atuação fora dirigida pelo outro diretor, e estava articulada a uma concepção de cena diversa daquela da qual fazíamos parte. Desse modo, voltávamos à estaca zero. E na segunda feira nos reunimos no teatro, para buscar alguma solução.

Entre as poucas saídas disponíveis, considerou-se a possibilidade de que eu assumisse a personagem em questão. Essa solução, contudo, apresentava um problema. A ideia inicial era preservar a imagem final da Paz. Assim, para assumir Lampito, foi necessário construir um perfil com traços muito distintos e próprios também. Enquanto a Paz era sensual, sinuosa, cabelos longos e esvoaçantes, cercada de tecidos leves em tons de branco e azul claro, Lampito era uma guerreira, portando capa e armadura, botas, cabelos presos, roupas de couro em tons de marrom escuro e preto, gestos duros e decididos, voz grave e firme, com espaços para algumas doses de humor. Assim, os homens do elenco passaram a ter oportunidades multiplicadas para ouvir a minha voz, desde a primeira cena...

Os ensaios aconteceram em apenas dois dias, terça e quarta feiras, com estreia já na quinta-feira, entre sustos, mas sem comprometer o espetáculo.

O elenco masculino recuou da postura mais agressiva, tendo passado a ter mais cuidado em relação à linguagem. Ainda e assim, seu perfil se manteve marcadamente arrogante, com necessidade de se impor, em relações de poder assimétricas.

A temporada naquele teatro seguiu-se a uma série de temporadas curtas em outras cidades satélites, com uma diversidade de situações que, de diferentes formas, replicaram para os contextos da produção e das relações com os públicos as questões tratadas pelo texto teatral. Sua atualidade chama a atenção.

Do mesmo modo, merece destaque o elenco personificando a tensão desenhada pelo espetáculo, explicitando o quanto essas são questões que pulsam, movendo nossa sociedade marcadamente patriarcal, machista e belicosa. Mesmo quando se trata do campo da arte, cujos agentes reivindicam para si comportamentos capazes de criticar o status quo...

 

 

 

sábado, 30 de janeiro de 2021

Sobre a volta ou não às aulas presenciais em todos os níveis de ensino, em plena pandemia

 

O Corona Vírus avança, a passos largos e com sucesso crescente, em seu projeto de contaminar a humanidade. Para tanto, tem, em seu favor, o comportamento humano em coletivo, quando se constata uma diminuição de sua capacidade racional, e as tomadas de decisão por impulso, quase sempre motivadas por lideranças oportunistas. Penso nas cidades, no mercado capitalista neoliberal. Uma espécie de anomia se faz cada vez mais presente nas várias instâncias da organização social e suas instituições.

O homem é o lobo do homem. Para Thomas Hobbes, o ser humano é, por natureza, egoísta e mau. Cabe à sociedade estabelecer o que foi chamado de “contrato social”, ou seja, as condições para que sobrevivamos em comunidade, apesar dos monstros que nos habitam. Hobbes defendia a figura do Estado como instância indispensável para assegurar a superação da condição de anomia. Esse é um ponto a ser colocado em questão, conquanto a figura do Estado tenha se tornado, no mais das vezes, opressora, mais servil às grandes fortunas e seus proprietários do que às populações que constituem sua malha social. Mas esse tema constitui, aqui, um desvio do assunto nuclear, já difícil e complexo o bastante: pandemia, educação, encenações, arenas de combates...

A situação da pandemia aprofundou aspectos perversos da sociedade brasileira, de modo a tornar impossível dissimulá-los. Dentre eles, estão as desigualdades sociais, em que se entrecruzam questões de gênero, raça, econômica, violência, e outros vetores.

Na primeira etapa da pandemia, estabeleceu-se, por pouco tempo, um pacto social mais ou menos forte, de suspensão de atividades, de distanciamento social, para que se mantivesse sob algum controle os processos de disseminação do vírus. Esse pacto perdeu força numa curva de desaceleração mais ou menos rápida. Na segunda etapa, em curso, os cenários de contaminação e morte que se desenham são muito mais devastadores. A morte grassa, em festa. Mas boa parte da população sente-se autorizada às festas, aos encontros em bares, às viagens, aos seus cultos. São instituições sociais, sim, em seu sentido mais lato, que não respondem pelos ritos de formação, do âmbito da educação formal. As escolas, a propósito, estão fechadas, desde o início da pandemia. E este é o ponto que, agora, começa a gerar tensão e conflitos. É preciso considerar muitos vetores, pois não se trata de uma questão maniqueísta. Não é possível tomar qualquer posição mais radical, sem tem em conta a complexidade da situação.

A palavra educação está sempre na ordem do dia dos discursos de candidatos em campanha para cargos públicos, seja do poder Executivo, seja do Legislativo. Contudo, na gestão efetiva dos recursos públicos, a Educação está sempre vendo as suas parcelas definharem. Também sem entrar em detalhamentos a respeito das questões relativas às políticas públicas para a Educação, é preciso notar que, dentre as quantas repercussões de médio e longo prazo desse fato, está a desvalorização profunda e radical da carreira de magistério. Particularmente na Educação Básica, a categoria formada em sua maioria por professoras, a profissão perdeu, desde há muito, fontes de motivação, razão de inspiração, lastro de respeito.

Falta, sim, respeito por parte de toda a sociedade à carreira de magistério, seja no âmbito das redes públicas de ensino, seja nas instituições da iniciativa privada: respeito à figura de professores e professoras. E sobre isso quase não se fala.

Eu, que fui professora na Educação Básica, rede pública de ensino, durante mais de uma década, passando a atuar no ensino superior posteriormente, na formação de professores, convivo diuturnamente com o dilema: como preparar e motivar futuros professores para atuarem num cenário que eu sei ser adverso, inóspito, cruel muitas vezes? Só se eu fosse cínica eu poderia falar de projetos pedagógicos transformadores sem considerar que há uma infinidade de fatores a interferir nas políticas públicas de educação que massacram professores e professoras atuando no chão da escola!

Só quem não conhece o quotidiano de uma escola pode passar ao largo desse fato.

Neste cenário de pandemia, como seria possível retornar a atuar presencialmente nessa instituição que não hesita em desrespeitar a figura de professores e professoras, sem sentir um medo muito maior do que qualquer outra categoria profissional sentiria?

Por outro lado, vejo as filhas e os filhos de mães pobres, pretas, de periferia, perdendo o já frágil vínculo com a vida escolar, tratando de inventar modos de sobreviver. Acompanho de perto muitos jovens nessa situação. E entendo que a responsabilidade não está na figura dos professores que, em última instância, são também a parte frágil dessa malha. Professores e populações pobres fazem parte do mesmo cenário de desamparo social. Quantas são professoras pretas, pobres, que vivem nas periferias?...

Então eu sonho com um país onde, nas escolas, todas públicas, professores com boa formação, salários que lhes assegurem qualidade de vida, e com condições de trabalho asseguradas, possam tomar parte de frentes de atuação junto a estudantes e suas comunidades, inclusive durante a pandemia. A condição para se assegurar um Estado efetivamente democrático, nas palavras de Anísio Teixeira. Mas esse sonho está longe, miríades de anos-luz, daquilo que vivemos nas nossas escolas. Em nosso país. Infelizmente.

Colocar professores e, sobretudo, professoras como vilãs neste momento, na questão da retomada presencial das aulas nas escolas da educação básica, é apenas aprofundar o quadro de desmotivação para a carreira do magistério. Isso explica, por exemplo, os altos índices de evasão nos cursos de licenciatura, nos anos mais recentes.

No que me toca, como professora formadora de professores e professoras, me vejo na obrigação ética de elucidar essas questões aos e às estudantes em interlocução comigo.

Devo, ainda, notar que, neste texto, escolhi não me referir ao que tem sido a atuação de professores e professoras nas instituições de ensino superior, públicas e privadas... e de como a pandemia vem repercutindo para essa categoria profissional...

A única certeza que tenho: atribuir a vilania a professores e professoras faz parte das estratégias nefastas da necropolítica em curso. Nada mais que isso. Não sejamos ingênuas ao cair nessa falsa polêmica. Os inimigos são outros. Sigamos.