O Corona Vírus avança, a passos largos e com sucesso
crescente, em seu projeto de contaminar a humanidade. Para tanto, tem, em seu
favor, o comportamento humano em coletivo, quando se constata uma diminuição de
sua capacidade racional, e as tomadas de decisão por impulso, quase sempre motivadas
por lideranças oportunistas. Penso nas cidades, no mercado capitalista neoliberal. Uma espécie de anomia se faz cada vez mais
presente nas várias instâncias da organização social e suas instituições.
O homem é o lobo do homem. Para Thomas
Hobbes, o ser humano é, por natureza, egoísta e mau. Cabe à sociedade
estabelecer o que foi chamado de “contrato social”, ou seja, as condições para
que sobrevivamos em comunidade, apesar dos monstros que nos habitam. Hobbes
defendia a figura do Estado como instância indispensável para assegurar a
superação da condição de anomia. Esse é um ponto a ser colocado em questão, conquanto
a figura do Estado tenha se tornado, no mais das vezes, opressora, mais servil às
grandes fortunas e seus proprietários do que às populações que constituem sua
malha social. Mas esse tema constitui, aqui, um desvio do assunto nuclear, já difícil e complexo o bastante:
pandemia, educação, encenações, arenas de combates...
A situação da pandemia aprofundou aspectos perversos da sociedade
brasileira, de modo a tornar impossível dissimulá-los. Dentre eles, estão as desigualdades sociais,
em que se entrecruzam questões de gênero, raça, econômica, violência, e outros vetores.
Na primeira etapa da pandemia, estabeleceu-se, por pouco tempo, um pacto
social mais ou menos forte, de suspensão de atividades, de distanciamento social,
para que se mantivesse sob algum controle os processos de disseminação do
vírus. Esse pacto perdeu força numa curva de desaceleração mais ou menos rápida. Na segunda
etapa, em curso, os cenários de contaminação e morte que se desenham são muito mais
devastadores. A morte grassa, em festa. Mas boa parte da população sente-se
autorizada às festas, aos encontros em bares, às viagens, aos seus cultos. São instituições
sociais, sim, em seu sentido mais lato, que não respondem pelos ritos de
formação, do âmbito da educação formal. As escolas, a propósito, estão
fechadas, desde o início da pandemia. E este é o ponto que, agora, começa a
gerar tensão e conflitos. É preciso considerar muitos vetores, pois não se
trata de uma questão maniqueísta. Não é possível tomar qualquer posição mais radical,
sem tem em conta a complexidade da situação.
A palavra educação está sempre na ordem do dia dos discursos
de candidatos em campanha para cargos públicos, seja do poder Executivo, seja
do Legislativo. Contudo, na gestão efetiva dos recursos públicos, a Educação
está sempre vendo as suas parcelas definharem. Também sem entrar em
detalhamentos a respeito das questões relativas às políticas públicas para a
Educação, é preciso notar que, dentre as quantas repercussões de médio e longo
prazo desse fato, está a desvalorização profunda e radical da carreira de
magistério. Particularmente na Educação Básica, a categoria formada em sua
maioria por professoras, a profissão perdeu, desde há muito, fontes de
motivação, razão de inspiração, lastro de respeito.
Falta, sim, respeito por parte de toda a sociedade à carreira de magistério, seja no âmbito das
redes públicas de ensino, seja nas instituições da iniciativa privada: respeito
à figura de professores e professoras. E sobre isso quase não se fala.
Eu, que fui professora na Educação Básica, rede
pública de ensino, durante mais de uma década, passando a atuar no ensino
superior posteriormente, na formação de professores, convivo diuturnamente com o dilema: como preparar e motivar futuros professores para atuarem num cenário que eu
sei ser adverso, inóspito, cruel muitas vezes? Só se eu fosse cínica eu poderia
falar de projetos pedagógicos transformadores sem considerar que há uma
infinidade de fatores a interferir nas políticas públicas de educação que
massacram professores e professoras atuando no chão da escola!
Só quem não conhece o quotidiano de uma escola pode passar
ao largo desse fato.
Neste cenário de pandemia, como seria possível retornar a
atuar presencialmente nessa instituição que não hesita em desrespeitar a figura
de professores e professoras, sem sentir um medo muito maior do que qualquer
outra categoria profissional sentiria?
Por outro lado, vejo as filhas e os filhos de mães pobres,
pretas, de periferia, perdendo o já frágil vínculo com a vida escolar, tratando
de inventar modos de sobreviver. Acompanho de perto muitos jovens nessa
situação. E entendo que a responsabilidade não está na figura dos professores
que, em última instância, são também a parte frágil dessa malha. Professores e
populações pobres fazem parte do mesmo cenário de desamparo social. Quantas são professoras pretas, pobres, que vivem nas periferias?...
Então eu sonho com um país onde, nas escolas, todas
públicas, professores com boa formação, salários que lhes assegurem qualidade
de vida, e com condições de trabalho asseguradas, possam tomar parte de frentes
de atuação junto a estudantes e suas comunidades, inclusive durante a pandemia.
A condição para se assegurar um Estado efetivamente democrático, nas palavras
de Anísio Teixeira. Mas esse sonho está longe, miríades de anos-luz, daquilo que
vivemos nas nossas escolas. Em nosso país. Infelizmente.
Colocar professores e, sobretudo, professoras como vilãs neste
momento, na questão da retomada presencial das aulas nas escolas da educação
básica, é apenas aprofundar o quadro de desmotivação para a carreira do magistério.
Isso explica, por exemplo, os altos índices de evasão nos cursos de
licenciatura, nos anos mais recentes.
No que me toca, como professora formadora de professores e
professoras, me vejo na obrigação ética de elucidar essas questões aos e às
estudantes em interlocução comigo.
Devo, ainda, notar que, neste texto, escolhi não me referir ao que tem sido a atuação de professores e professoras nas instituições de ensino superior, públicas e privadas... e de como a pandemia vem repercutindo para essa categoria profissional...
A única certeza que tenho: atribuir a vilania a professores
e professoras faz parte das estratégias nefastas da necropolítica em curso. Nada
mais que isso. Não sejamos ingênuas ao cair nessa falsa polêmica. Os inimigos são outros. Sigamos.