domingo, 28 de julho de 2013

Notícias tristes sobre o Morro do Além


Mês de julho, a umidade em queda, clima frio, folhas e galhos secos: fatores que favorecem a combustão. Em meio à tarde, o Morro do Além ardia em chamas. 

Aos gritos, as corujas resistiam em afastar-se, enquanto a árvore retorcida enfrentava a queimada anual a que é submetida, no cerrado. Voando nas cercanias, uma delas machucou-se. Mesmo que retornem quando se sintam em segurança novamente, a área atravessará um período de escassez para sua alimentação.

A árvore com o oco onde vivia o coelho branco transformou-se num monte de cinzas. O coelho encontrou-se cercado pelo fogo, e chamuscou os pelos brancos em fuga.

O Menino correu para um lado e outro. Perdeu o fôlego. Nada pôde fazer por seus amigos. Prostrou-se, inconsolável. O domingo findou.



sábado, 27 de julho de 2013

Habitantes do Morro do Além

ou
Exercícios de alteridade

Para Cleomar,
Menino do Castelo, que fez aniversário.

Com os três filhotes já crescidos, o casal de suindaras deixou o quinto andar do Castelo do Menino, para se instalar nas árvores retorcidas no alto do Morro do Além, de onde observam o movimento, a cidade, e rastreiam, sem margem de erro, presas para seu jantar.

Nas cercanias, no oco de uma árvore caída, vive um coelho branco. À noite, passeia nos arredores, deslocando-se rapidamente entre os arbustos rasteiros. Durante o dia, recolhe-se para longe dos perigos de se tornar um apetitoso assado, ou dos raios de sol a ameaçar o pêlo albino. Por vezes, chega a passar três dias sem ser avistado. Estará do outro lado, no Mundo de Alice, ou nalgum outro de que ainda não se tenham notícias?

O Menino (que diz ter completado 38 anos, mesmo sob os protestos veementes das corujas ante tal informação...) saltita de alegria ao vê-lo. Quando tem tempo, deixa maçãs e torradas à porta do oco da árvore, sob os olhares atentos das suindaras. Depois volta para seu Castelo, de onde se vêm as luzes da cidade cintilando, e se ouve o eco dos gritos da família notívaga.


sexta-feira, 26 de julho de 2013

cheiro e gosto de vergamota


À noite, no céu sem nuvens, as estrelas brilhavam sem pulsar: pareciam economizar energias para atravessar a temperatura em queda. Esse era um dos sinais legíveis a anunciar a geada.

Pela manhã, o sereno congelado cobria as plantas e outras superfícies com uma camada branca translúcida. E o frio penetrava todos os vãos. Apenas dois lugares eram guardiões de algum calor acolhedor: as cercanias do fogão a lenha, e a água do poço. 

Para quem não sabe, o poço mantém a água sempre numa temperatura estável. Quando do lado de fora fica frio, a água parece aquecida. O contrário também acontece: no calor, a água é deliciosamente fresca.

Por isso, no inverno, o balde trazia, da profundeza, uma água fumacenta, deliciosamente morna. Depois de usada, quando jogada no chão, ainda pela manhã, logo se transformava numa placa de gelo.

Só perto do meio dia é que os raios do sol começavam a nos aquecer. Então eu subia a escada estrategicamente apoiada nos galhos de um pé de vergamotas. Por aqueles dias, elas estavam já bem maduras, a cor alaranjada da casca fofa, o perfume impregnando as mãos, o doce da fruta madura. Eu ficava lá em cima, misturada às folhas da árvore, degustando os gomos, sem pressa. De lá, eu podia ver o gelo do telhado derretendo, também sem pressa, e gotejando na beira da casa.

Inverno é assim, tem cheiro e gosto de vergamota, e na pele o calor morno dos raios do sol.





quarta-feira, 24 de julho de 2013

nuvens...


Embarquei, e acomodei-me numa poltrona no corredor. Ao meu lado, duas senhorinhas cujas feições não pareciam ser de pessoas que habitualmente viajem de avião. A do meio, mais forte e tagarela, logo me contou que estava aflita para chegar em casa. A outra, sentada à janela, era mirradinha, caladinha, os olhos fixos no chão. 

Comecei a ler o trabalho de um aluno, e a senhora ficou olhando meus gestos. Percebi o brilho nos seus olhos. Sorri para ela, que me confessou: Esse sempre foi meu maior sonho! E apontou para o texto, onde eu fazia anotações: Saber ler... meu pai não conseguiu me mandar para a escola... eu sou analfabeta! Não sei ler nadinha! O moço mandou ler este cartão aqui, se precisar, eu não consegui ler nada! Referia-se às instruções do Comissário de bordo, para os casos de emergência. Disse-lhe que ficasse tranquila, pois não aconteceria nada; mas, se ela precisasse de alguma coisa, eu a ajudaria.

Fiz uma pausa para ouvi-la, quando acrescentou ser aquela sua primeira viagem de avião. Passear é bom, mas eu quero é voltar prá casa... E continuou: Já tenho tanto neto, e é a primeira vez que ando de avião?!!!

Retomei minha leitura, enquanto ela observava tudo à volta. Findava a tarde, e o sol se pondo dourava o céu. Ela olhou longamente pela janela, e me perguntou: Isso aí fora, o que é? Não compreendi ao que ela se referia. Então ela acenou com a mão, fazendo uma ondulação com o gesto. São as nuvens... Ante minha resposta, foi ela que me olhou sem compreender. Nuvens? Percebi que tinha a oportunidade de vivenciar um momento especial, de espanto e sensibilidade, de experimentação do novo: Quando estamos no chão, em casa, a gente olha para cima, e vê as nuvens, não é? Pois então, agora estamos dentro do avião, e o avião voa muito alto, e passa para cima das nuvens. Por isso a gente vê as nuvens olhando para baixo...

Ela continuou a olhar pela janela, e chamou a atenção de sua companheira, que continuava mirando o chão da aeronave: Olhe, as nuvens... Depois de uma breve pausa, completou: Olha como elas parecem fumaça...

Não consegui retomar a leitura, embevecida com o que acontecia em seus olhos. Logo iniciaram-se os procedimentos de pouso.



sábado, 20 de julho de 2013

Maquiagens


Nunca fui de gastar tempo com maquiagem, cuidados com os cabelos, unhas, etc. Sempre me pareceu ter coisas mais importantes e urgentes a fazer. No entanto, pensando a coisa por outra via, nunca me recusei a brincar com o rosto, com o corpo, experimentando pinturas, cores e outras intervenções. Mais ainda, muitas vezes mantive as intervenções, pouco usuais, enquanto tratava das providências quotidianas, usuais. Interessam-me as situações provocadas a partir daí.

Foi assim, por exemplo, que, depois de tomar chuva, e ter encharcadas todas as células, dirigi-me para uma aula, na graduação, sem deter-me para enxugar, ou trocar de roupas. Ou depois de ter pintado o rosto e os braços com cores vivas, durante uma experimentação teatral, no horário do almoço, segui para uma aula de evolução do teatro e da dança, na qual estudávamos alguns dramaturgos considerados importantes na História do Ocidente. Quando cheguei à porta, a professora olhou-me, um pouco assustada. Reconhecendo-me, sorriu. Assentiu minha presença colorida durante a aula. No fim do dia, voltei para casa, de ônibus. Iniciava-se a noite, já, quando retirei as pinturas.

Ao final dos espetáculos, durante as temporadas, também relutava em desfazer a maquiagem, adiando a providência. Não raro, preferia cumprir esse ritual em casa. Muitas das vezes, me detinha num bar ou lanchonete, para conversar um pouco. Variavam as personagens, as feições construídas. Eu me protegia nelas, brincando de me esconder.

Já havia muito tempo, não brincava com o rosto e suas máscaras possíveis. Até que, noutro dia, Dona Maria chegou-se, com uma bola de massa de urucum. Traçou uma marca horizontal na minha testa, e outra vertical, seguindo o nariz. O cheiro do urucum me envolveu, respirei o gesto carinhoso dela, naquela manhã luminosa. Segui, pelo dia afora, por vezes lembrando-me da pintura, por vezes me esquecendo. Reuniões, aulas, encontros, jantar, negociações... que efeitos a pintura no rosto teria produzido sobre a audiência? Em que medida suas reações e posicionamentos teriam refletido, ao menos em parte, os dois traços vermelhos sobre a pele quase branca?






quinta-feira, 18 de julho de 2013

Memória de uma situação adversa: para lembrar que não estamos sós…


Um casal de professores que trabalhava com psicopedagogia, e tinha uma clínica de acompanhamento de alunos com dificuldade de aprendizagem, se entusiasmou com minhas ideias. Ambos decidiram me indicar para um evento programado para Uberlândia, cuja temática era alguma coisa como ludopedagogia, ou ludoterapia. Tomavam como referência o trabalho que eu desenvolvera em contexto hospitalar, envolvendo ensino de arte.

Indicação feita e aprovada, entrei em contato com a equipe responsável pela organização, que passou a me dar as diretrizes. Pediram-me que eu planejasse uma oficina para acontecer em 4 encontros, e uma fala. Seguindo as orientações, preparei todo o material, e segui viagem.

Instalada no hotel, descobri que se tratava de um evento realizado por um grupo de pessoas mais ou menos estável, que viajava de cidade em cidade, pela América do Sul, liderados por um professor argentino, que assumia o papel de uma espécie de guru. Esqueci seu nome, e agradeço à minha memória pela providência de apagamento dessa informação...

Dividi o apartamento onde fiquei hospedada com outras três moças, duas das quais argentinas, e outra brasileira, todas companheiras de muitos eventos. Todos eram remunerados, e o guru não exercia outra atividade além daquela: pregando lições sobre ludoterapia, ludopedagogia, ludotecas, etc, vendendo seus livros, e emitindo pareceres – mesmo quando não eram solicitados, ou requeridos.

O guru não gostou de mim. Essa foi uma das situações que eu experimentei de rejeição, reprovação, discriminação. Nada que eu fizesse o satisfaria. Acusou-me de fazer atividades estereotipadas. Desqualificou minha oficina. Desautorizou minha fala aos professores. Desqualificou-me como profissional.

O que me parecia mais estranho era a relação quase religiosa das pessoas, em sua maioria mulheres, em torno dele, sustentando uma atividade que pretendia fornecer formação a professoras do ensino fundamental. Aquela sujeição pareceu-me algo lastimável. Os quatro dias pareceram não ter fim, duraram uma eternidade. Tantos anos depois, ainda me pergunto por que eu não deixei tudo para trás, voltando para casa antes de finda a atividade? Por que insisti, ficando até o último dia? Talvez pelo vínculo estabelecido com o grupo de professores que escolheram fazer a oficina... Eu não queria deixa-los a meio caminho, frustrados com a interrupção da atividade. Ou eu teria teimado em cumprir um compromisso, porque assumido, mesmo quando o suposto líder do evento-movimento desqualificava minha atuação?

Voltei para casa sentindo um alívio, e tentando entender o que acontecera.

Duas décadas depois, constato que o assunto já não é domínio de uma só pessoa, ou de poucas pessoas, ou grupos: diluiu-se em grupos de estudo, pesquisadores, com ideias diversas, assentadas em diferentes países. Que bom!

Lembro esse fato pensando em outros grupos que, ainda hoje, resistem ao contato comigo, aos trânsitos de minhas idéias, tão indisciplinadas, tão predispostas a redes, tramas, nós... tão curiosas, tão auto-inquiridoras... Integrar algumas comunidades supõe, em tese, o compartilhamento de convicções, bandeiras, palavras de ordem. Linhas devidamente enoveladas, organizadas para não fazer emaranhados. No entanto, é cada vez mais improvável que eu escolha bandeiras e palavras de ordem a guiarem meus passos, em relações de fidelidade, em votos de defesa territorial inconteste. A dúvida me habita e me move.

Se a lembrança do episódio envolvendo o guru argentino me faz pensar sobre grupos e suas crenças, é a música de um uruguaio que me alenta, mostrando-me que não estou só nesse sentimento:

Yo soy um moro judio
Que vive con los cristianos
No sé que dios es el mio
Ni quales son mis Hermanos...

(Milonga del moro judio. Jorge Drexler)


quarta-feira, 17 de julho de 2013

domingo, 14 de julho de 2013

ilustre habitante da biblioteca


Poderia até ser chamado de Voltaire...
Frequenta a biblioteca com mais assiduidade do que muitos estudantes e professores da universidade.
Além do mais, é elegante, discreto, atento. Um gato!






sábado, 13 de julho de 2013

visitantes especiais participam da intervenção Tramas no Jardim de Inverno da Biblioteca Central/UFG

O Seminário Pensamento Indígena trouxe muitas famílias para o campus Samambaia, da UFG. Durante uma semana, houve muitos encontros: cantos, danças, conversas, negociações. Todas as manhãs, um grupo se reunia no gramado para tecer cestos e outros objetos.


No dia 12 de julho, o grupo aceitou o convite para conhecer a Biblioteca Central, e intervenção artística realizada pelos estudantes do Núcleo Livre Oficina dos Fios, que denominamos Tramas no Jardim de Inverno.

Ali, foram tecidas delicadezas, durante toda a manhã. Cada um encontrou uma maneira de deixar sua marca, interagir, conhecer, ensinar.














Tempos de aprender, com sensibilidade.


Mirna, obrigada pela mediação!







quinta-feira, 11 de julho de 2013

Abertura do Seminário Pensamento Indígena: Educação, Arte e Comunicação

Na semana de 7 a 12 de julho de 2013, tivemos a alegria de realizar o Seminário Pensamento Indígena: Educação, Arte e Cultura.
Momentos sensíveis, discussões relevantes, conversas profícuas, filmes, fotografias, cantos, danças, artesanatos, tramas, cestas, homens, mulheres, crianças, gente que ensina, gente que aprende, gente que exercita alteridade como condição de existir.
Que, pela porta aberta, muitos projetos e experiências ganhem passagem.
Obrigada Rafael, Vandimar e Mirna, pela iniciativa!





segunda-feira, 8 de julho de 2013

uma abelhinha entre a vida e a morte


Depois do almoço, a Menina lavava a louça numa bacia apoiada num jirau, na varanda. Depois enxaguava noutra bacia com água limpa e morna. Eventualmente, abelhas e borboletas gostam de ficar bebericando da água da bacia com sabão.

Naquele dia, uma abelhinha ficou ali, passeando na beira da bacia, até que, numa manobra descuidada, caiu na água. Agitou as asinhas com força. Mas o movimento a afastou ainda mais da borda. 

A Menina ficou observando a pequena abelha, e aos poucos foi tomada por um sentimento de compaixão. Decidiu ajudá-la, para que não sucumbisse ao mar de água com sabão. Estendeu o dedo próximo à abelha que aceitou a oferta. Ela subiu para o porto seguro, agitou as asas molhadas, sacudiu as pernas, moveu o pequeno corpo, e enterrou o ferrão no dedo salvador. A Menina sacudiu o dedo, num grito de dor. Atirou a abelha longe. Foi em sua busca, pisando com força, para que não ferroasse mais ninguém... Voltou aos seus afazeres com o dedo inchado e dolorido...

O cabo de um talher, uma palha, uma tampa teria evitado o desastre da salvação. Quem haveria de lembrar-se do detalhe?




domingo, 7 de julho de 2013

açúcar e formigas: foram feitos um para o outro


A Menina morava com uma tia, que tinha uma pequena pensão. Para pagar a hospedagem, ela ajudava em todos os afazeres: Menina, leve isto para Fulano! Menina, traga aquilo para mim! Menina, arrume todos os quartos! Lave a louça! Já lavou os penicos?

A Menina, guriazota, obediente, tinha créditos na casa. Todos entendiam que ela era a mais correta, que não fazia artes, nem mentia, além de estar sempre pronta para o serviço, qualquer um que fosse. Por isso mesmo, era a única digna de fazer a tarefa, talvez, mais doce: buscar no depósito o açúcar para encher o açucareiro. 

Toda vez que seguia para buscar o açúcar, saía, da cozinha, cantarolando uma música qualquer. O depósito era pouco iluminado. Não importava. Ela conhecia bem a disposição da mobília, e podia localizar o açúcar de olhos fechados. Seguia com a música, agora emitida pelo nariz. Pegava um punhado de açúcar e enchia a boca. Ia degustando os grãos doces, enquanto ainda emitia a música anasalada, e enchia a vasilha para a tia. 

Atenta, na cozinha, a tia ouvia a música, e pensava que esse sinal era a garantia de que a menina não comia do açúcar. Por isso confiava nela.

Num desses dias, ela entrou no depósito, encheu a boca com o punhado de açúcar, para depois encher a vasilha. Mas foi surpreendida com formigas cabeçudas que também visitavam o depósito. Muitas. Algumas delas vieram no punhado que gulosamente atirara à boca, e grudaram-se picando seus lábios e língua. Ela saiu cuspindo açúcar pela casa afora, gemendo de dor.

Perdeu créditos, perdeu a função... além de levar uma surra...


sexta-feira, 5 de julho de 2013

sinais da estação


os primeiros sinais do estio prolongado já se fazem sentir:

folhas secas cobrem as calçadas e gramados
algumas árvores colocam à mostra seus galhos nus
ipês rosa cobrem-se de flores
sibipirunas também começam a vestir-se de amarelo
os fins de tarde colocam-se, a cada dia, mais amarelos
as noites frias também são secas e longas

ao longe, discreta nuvem escura começa a enovelar a cidade

chegarão os dias quando ela parecerá densa e pesada sobre os edifícios
a respiração será difícil
e os olhos buscarão, no horizonte, algum sinal de chuva


quarta-feira, 3 de julho de 2013

Elena...


Ontem fui assistir ao filme Elena, de Petra Costa, trabalho que recebeu vários prêmios, na categoria documentário.

A voz de Petra, que narra, falando diretamente à irmã, é melancólica, quase monótona. Aí reside uma das fontes de sua força. É preciso força para trazer à tela imagens, sons, frases que dão feições a uma experiência traumática. É preciso coragem. É preciso sensibilidade para transmutar a experiência sofrida em obra sensível, e encontrar, nela, a humanidade que pode ser partilhada com os demais.

Não, não consigo pensar o filme como um documentário. É certo que o mercado precisa encaixa-lo nalguma categoria para enfia-lo nas prateleiras diversas, à disposição do público. E como se trata de uma narrativa sobre percursos vividos por pessoas que têm certidão de nascimento, endereço, carteira de identidade, e traz depoimentos, fotografias, documentos, então é, automaticamente, conduzido a essa categoria.

Mas o filme é muito mais que isso. Trata-se de um poema autoetnográfico, de caráter existencial. Um ato de maturidade e sensibilidade. Um mergulho em dores que latejam, que latejarão sempre, como possibilidade de que sejam lavadas, e assim alentadas. Afinal, mesmo as memórias mais difíceis, a água pode dissolver...

Elena: poema audiovisual sobre memórias de dor



segunda-feira, 1 de julho de 2013

Cinema Tupiniquim no TEDxUFG


Vou contar uma história para vocês. Mas antes, vou lembrar outra história, mais antiga, que começa lá pelo século 19, quando várias pessoas, em distintos países da Europa e da América andavam às voltas tentando inventar alguma maneira de gravar e projetar imagens em movimento. Esse era um sonho tão antigo quanto a própria humanidade. Pois bem: alguns aparatos foram inventados, mas foi no final do século 19 que dois irmãos, na França, conhecidos como Irmãos Lumière, inventaram uma engenhoca que ficou conhecida como cinematógrafo. Essa engenhoca registrava e projetava imagens em movimento. Um outro francês, Georges Méliès, viu no cinematógrafo a possibilidade de fazer mágica! Ele era ilusionista, especializado em encantar os públicos enganando a percepção. E compreendeu que o cinematógrafo seria um instrumento importantíssimo para criar ilusões. Mais que isso: com aquele cinematógrafo nas mãos, Méliès começou a contar histórias, mostrando lugares que não existiam, que nunca ninguém vira antes. Méliès passou a experimentar, criar, inventar, tendo às mãos quase nada além da engenhoca inventada pelos irmãos Lumière. Além de ilusionista e encantador, ele era um contador de histórias, e instaurou o que passamos a chamar de linguagem do cinema.
Já no final do século 20, a revolução digital para a produção de imagens popularizou o acesso aos equipamentos. As pessoas passaram a produzir fotografias, vídeos, filmes, coisa que antes seria impossível. Muitas pessoas, apaixonadas pelo cinema, começaram a contar suas próprias histórias. Eu tenho tido a oportunidade de conhecer algumas pessoas muito especiais, que se dedicam a essa paixão. Conheci o Seu Zagati, um catador de sucatas que construiu um cinema na periferia de Taboão da Serra, o Seu Manoel Loreno, o ex-servente de pedreiro que produz filmes no interior do Espírito Santo, Seu Simião Martiniano, o camelô que produz filmes em Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife. E assim eu retorno à história que vim contar a vocês.

Ela pode começar assim: Era uma vez, no coração de Goiás
Um grupo de pessoas muito diferentes entre si, ocupadas com afazeres muito distintos, que têm uma paixão em comum: o cinema. Por isso, essas pessoas reúnem-se, periodicamente para realizar filmes.

Essa trupe se chama Sistema CooperAção Amigos do Cinema. Uma trupe aberta aos sonhadores, sempre tem gente entrando, tem aqueles que já estiveram, e por alguma razão não podem estar mais. Mas serão sempre membros do grupo. E um dia poderão ser convocados novamente! E tem aqueles que sempre estiveram lá, dando sustentação ao projeto.
O princípio da cooperação é a marca do trabalho dessa trupe. Ou seja: os filmes são feitos com orçamento quase zero. A solidariedade, a colaboração são a garantia da realização. Cada um traz o que de melhor tem a oferecer. Cada qual busca uma roupa, uma ferramenta, uma ideia, uma solução para um desafio. Quando tudo é reunido, é sempre muito mais do que se poderia imaginar.
O coletivo é liderado por uma pessoa muito singular, muito especial



Esse é o cara! Não se assustem: esse cartaz foi feito para integrar o cenário de um dos filmes. Ele constava entre os procurados, numa delegacia. Procurado, por ser um encantador, um ilusionista dos pássaros selváticos que somos todos nós. Ele nos encanta, contando histórias, fazendo uso dos recursos do cinema. Ele reinventa os modos de contar as histórias, não importam as condições adversas. Diante de cada dificuldade, ele cria uma nova solução.
Esse é Martins Muniz, diretor de cinema, líder do Sistema CooperAção Amigos do cinema.


Se ele é procurado, eu fui encontra-lo aqui: num galpão entulhado de quinquilharias, onde ele transforma sucatas em sonhos. Martins Muniz já trabalhou confeccionando cenários para teatro, vitrines, carros alegóricos de carnaval e outros eventos. Suas mãos são capazes de recriar, do inimaginável, formas que encantam. Como esse tubarão flutuando perto do teto, por exemplo.


Ou com uma única câmera, um argumento na cabeça, e um grupo de pessoas dispostas a compartilhar com ele o seu sonho, é capaz de reinventar histórias que articulam questões sociais, humor, ação, diversão. Eu fui convidada a conhecê-lo o set de filmagem em 2011, e a partir de então integrei sua trupe, como aprendiz e apaixonada pelo trabalho do Sistema Cooperação amigos do cinema. Desde o primeiro dia, ele sempre me repreende quando eu me refiro a ele, individualmente. Sua resposta é: eu sozinho não faço nada. Somos nós, é o coletivo, é o grupo quem faz. Essa, uma de suas maiores lições. Embora eu sempre ressalte que sua liderança é fundamental nesse processo, como aquele que mantém o espírito colaborativo do grupo, e que sabe, como poucos, contar histórias.


O contador de histórias prepara o roteiro, verifica o melhor lugar onde as gravações podem ser realizadas, marca dia e hora, convoca a trupe. Mas o roteiro previamente preparado vai sendo modificado, de acordo com as condições que o grupo vai encontrando, com as pessoas que puderam comparecer, as ideias que vão surgindo. Corta, recorta, parte, reparte: uma parte do texto, outra. Um quebra-cabeças, um jogo de armar, em que prevalece a invenção e a alegria de brincar. Um cinema tupiniquim, como Martins Muniz mesmo qualifica. Um cinema que não pretende ser cult, ou intelectual, um cinema despretensioso, cujo projeto é contar histórias que dão testemunhos autorais de seu tempo, de suas visões de mundo. E fazer isso com o espírito lúdico, divertido, experimental.


É assim que cada um inventa uma solução para o que seja necessário: a imitação de uma tatuagem, um microfone de papel, uma roupa improvisada, um balaio, uma sombra, um reflexo, um muro, uma luz vermelha...


Uma sala qualquer transforma-se numa boate


O estacionamento ao lado vira ringue onde o bandido e o mocinho travam uma luta brutal 


A pastagem verde de alguma fazenda se torna floresta a ser desbravada, onde escravos lutam pela liberdade, num tempo indeterminado.


Tudo diante da lente de uma única câmera. Por isso, é preciso que se façam muitas tomadas da mesma cena. Repetem-se várias vezes, de vários ângulos, para que depois seja possível montar o quebra-cabeças da história.
Aqui, não importa o que falta, mas aquilo que dispomos para, a partir dali, dar forma ao que desejamos realizar. Ninguém espera que sejam dadas as condições: a gente inventa essas condições, e faz!
Motivados por esta criatura que, a despeito dos problemas de saúde, que não são poucos, mantém o espírito jovem, a vontade de realizar, de criar, o ânimo para desbravar imaginários, e reinventar os dias.  


Depois de gravadas todas as tomadas, Martins Muniz trabalha com a edição neste cantinho de sua casa: uma ilha de edição formada por um computador quase obsoleto, programas antigos, condições que continuam precárias. Algum impedimento em função disso? De modo algum! É exatamente aí que ele vai costurando sequência a sequência, resolvendo questões de continuidade, articulando falas, gestos, imagens de modo que a história faça sentido. Reinventando a própria história, seus ambientes, seu contexto.


Algum tempo depois, a trupe reúne-se, com seus convidados, outros curiosos, quem queira tomar parte, para degustar o trabalho realizado, numa celebração.Quando observo todas essas pessoas, dou-me conta de sua diversidade: são advogados, administradores, professores, artistas, atores, fotógrafos, músicos, curiosos, reunidos em torno do Muniz, para jogar, para contar histórias, para reinventar modos de ser e estar no mundo. Com pouco, com tão pouco. Olhando para essas pessoas, e olhando os trabalhos já realizados, posso afirmar que não há poder transformador maior do que a solidariedade, o espírito de colaboração, a amizade. O sentido de fraternidade.
Talvez o Sistema de CooperAção Amigos do Cinema não chegue a transformar o mundo, mas com certeza tem contado histórias de transformação do mundo, pelo sonho de um mundo melhor!

Filmes mais recentes
Em 2012, foi realizado o filme Fora de Padrão, o filme, cujo tema central é a homofobia.
Em 2013, foi realizado o filme Capitão do Mato, que trata da luta de escravos pela liberdade, e da instalação de quilombos no interior de Goiás.


Fecho minha fala, ao modo como Martins Muniz costuma encerrar seus filmes:

Esta é a história que eu trouxe para contar para vocês.
 Quem quiser, que conte outra!