sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Estado Paralelo


Paralelo é um adjetivo ao qual podem ser atribuídas, dentre outras, duas acepções. Na primeira, refere-se a duas linhas coplanares, ou seja, fazem parte de um mesmo plano, que não se cruzam, nunca. Encontram-se apenas num ponto imaginário, localizado no infinito. Na segunda acepção, refere-se àquilo que opera, milita, funciona, trabalha colateralmente a outra atividade ou instituição de mesma natureza.

Para começar alguma reflexão sobre a noção de Estado Paralelo, é necessário notar que este está associado ao mesmo tempo que se contrapõe ao Estado de Direito, cujas funções são mais facilmente reconhecíveis, ao menos do ponto de vista discursivo: assegurar paz social, segurança e desenvolvimento aos cidadãos, habitantes que ocupam um território determinado. Não é por acaso que as variáveis saúde, educação e segurança são convocadas a participar dos comícios e planos de gestão de todos os políticos sedentos de alguma credibilidade e, principalmente, votos, não importando o que entendam por isso, ou o que pretendam fazer com isso. 

Defendemos o Estado de Direito, é nele que depositamos nossas esperanças, é para ele que empenhamos partes significativas de nossos salários e ganhos diversos, na forma de impostos e outros tributos, como condição de financiamento das políticas públicas que façam jus às suas palavras de ordem.

Quando um cidadão vai até às urnas, e nelas deposita seu voto, supõe-se que o faça dentro dos princípios do Estado de Direito.

O Estado Paralelo se estabelece no mesmo plano/território que o Estado de Direito. Ali, institui-se e opera de maneira colateral, tomando para si atribuições negligenciadas pelo Estado de Direito. Ou seja, a ausência ou a omissão do Estado de Direito abre lacunas que são, rapidamente ocupadas por instituições organizadas à margem da legalidade, com capacidade para constituir-se Estado dada a abrangência e complexidade de sua inserção social, bem como as territorialidades que demarcam suas ações.

Em um nível mais complexo de sua consolidação, que se sucede aos momentos iniciais de sua instalação institucional e territorial, começa a estabelecer laços cada vez mais estreitos (e promíscuos) com os poderes oficiais do Estado de Direito. Assim, o Estado Paralelo encontra-se cada vez mais imbrincado nele, até com ele confundir-se. Assim, ele passa a jogar com os próprios ritos e legislações vigentes no sentido de ter asseguradas suas ações que, embora ilegítimas à luz dos princípios do Estado de Direito, mostram-se invulneráveis aos processos jurídicos e condenatórios. Apoiam-se em princípios de uma pretendida legalidade...

A essas alturas, o Estado de Direito ganha feições de uma raiz carcomida por dentro, ou um ovo cuja gema tenha sido sugada. Apresenta-se casca sem conteúdo, ou com conteúdo precário, prestes a se partir. Contudo, é bom lembrar: a falência e quebra total do Estado de Direito não interessa ao Estado Paralelo, pois este precisa da máscara daquele, com a qual pode travestir seus projetos, dissimular suas redes, justificar suas ações, confundir os cidadãos que ainda creem na democracia. Assim, votam-se em candidatos que, embora falem de educação, saúde e segurança, atendem a interesses outros evocados pelo Estado Paralelo. Prisões de segurança máxima são transformadas em verdadeiros fortes de onde se planejam e administram redes nacionais e internacionais de crimes de toda sorte. Fações criminosas diversificam as atividades comerciais, para otimizar os lucros. Moradores de favelas não se negam a pagar taxas aos donos dos morros para garantir sua integridade, sempre por um fio. 

Cidadãos esgarçados entre os dois Estados, dissimulados num só...






terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Imblino é um sucesso


No supermercado, enquanto passava as frutas e verduras para serem registradas no caixa, conversava amenidades com a moça que ia lançando, item por item, na minha conta a pagar... A certa altura, ela fez uma pausa, encheu-se de coragem, disse “posso lhe fazer uma pergunta?”. Que sim, respondi, tentando imaginar que pergunta seria, cuja formulação implicava num pedido de permissão, numa pausa preliminar... Então ela prosseguiu “por um acaso você já fez algum filme?” Ri-me. Qual das minhas estripulias ela já teria visto? Seria algum filme do Martins Muniz disponível na internet? Achei improvável. Seria o filme do Imbilino? Sim, era o filme Imbilino: Uma linda assombração, o sexto realizado pelo Hugo Caiapônia. Seus olhos brilharam. Ela não sabia se acabava de passar minhas frutas, ou se segurava minha mão, exultante de alegria. “Você fez a juíza, eu vi! Eu vi várias vezes!”. Perguntei onde ela tinha visto. Supunha que ela não teria visto no Cine Ouro, onde foi projetado durante uma semana, no final do ano passado. Não poderia deixar de considerar que o Hugo Caiapônia não lançou o filme em DVD, nem disponibilizou na internet, exatamente para evitar as cópias clandestinas. Apesar do seu esforço, eu constataria que já existem cópias circulando entre os fãs do Imbilino. Ao que me contou a moça do caixa do supermercado, ela tem um amigo que lhe deu um pendrive com a cópia do filme. Acha que ele conseguiu no Youtube. Depois a moça fez declarações de amor intermináveis ao Imblino. E agradeceu pelo belo trabalho que traz alegria às pessoas. 

Na verdade, o agradecimento não vinha endereçado para mim, mas sim para Hugo Caiapônia, que tem o mérito de dar vida ao Imbilino, personagem notável, cheio de carisma, capaz de falar diretamente ao coração de um público tão numeroso e diversificado!





domingo, 1 de janeiro de 2017

Cu de petiço


Meu tio querido nos ligou, antes de acabar o ano. É sempre uma alegria falar com ele, e ouvir-lhe as palavras de afeto. Queixei-me que sentia saudades. Para ele, a solução era simples: por que eu não ia até lá, para vê-lo? Você não tem férias? Mais ou menos, lhe respondi, tentando explicar o imbróglio do calendário da universidade... Pensei na complicação de explicar sobre as ocupações, preferi falar que tinha havido greve, que eu teria de repor aulas em janeiro, assim eu teria férias, mas não seriam férias como deveriam ser... e já ia achando aquela conversa imprópria para aquele momento, para aquela alegria, então fui encerrando as explicações. Ele ouviu tudo e, quando eu calei, ele me perguntou: Você sabe o que é mais ou menos? Pressenti que me aguardava, à frente, alguma piada, e decidi me entregar a ela. Não, tio, o que é? Você não sabe o que é mais ou menos? A repetição da pergunta já tinha uma pitada de deboche, uma provocação. Ele não deixaria por menos: como eu, professora universitária, não sabia o que era mais ou menos? Insisti que não sabia. O que é mais ou menos, tio? Ele fez uma pausa performática, criando algum suspense, dominando a cena. E disse, inicialmente muito sério: Mais ou menos é... cu de petiço (1). E desatou a rir. E eu também. Sempre acontece assim: ele começa a contar uma piada, e então começa a rir, e ri tanto, que muitas vezes nem consegue contar a piada direito. Mas seu riso é contagiante, e a gente ri junto, mesmo sem entender a piada. Não foi esse o caso. Eu entendi o cu de petiço. E por isso mesmo ria mais ainda, com ele. Mas ele avançou e, numa pausa entre-risos, decidiu explicar: é que o cu de petiço não é nem muito alto nem muito baixo, é mais ou menos. E caiu na gargalhada de novo. A estas alturas, eu já ria solto dele e da explicação dada. Então ele me perguntou: Você está em Brasília? Como está o presidente? Como é mesmo o nome dele? Esqueci... Ah, aquele cu de petiço! E desatou a rir de novo. Depois de mais algumas tentativas de emplacar alguns outros assuntos, voltando sempre às gargalhadas, começamos a nos despedir. Então ele desejou um feliz 2017. Que o ano novo não seja... um cu de petiço!

Ele se ria tanto, que quase não conseguiu desligar o telefone. Nem eu.

Que 2017 não seja um cu de petiço. E se for, que nós possamos debochar e rir, rir tanto a ponto de ficarmos frouxos de riso.




(1)   Petiço: diz-se de ou cavalo ou muar de pequeno tamanho ou de pernas curtas.