quinta-feira, 14 de março de 2024

Um livro de anatomia para a moça que faz a faxina. Ou, sobre a desesperança na poesia de Drumond.

  

Ela é jovem, pele negra, e trabalha como faxineira do prédio de 8 andares. Limpa o que os moradores sujam, recolhe o lixo dos apartamentos, molha as plantas do jardim.

Numa dessas idas e vindas, ela, que me descobriu professora, quis conversar um pouco. Falou-me, entre receios, “estou cometendo uma loucura: comecei a fazer o curso de Nutrição”. Aquela cumplicidade dela comigo me encheu de alegrias. Conversamos sobre o curso, sobre suas expectativas. Depois, me coloquei à sua disposição para contribuir no que ela necessitasse.

Dias depois, ela perguntou se por acaso nós teríamos algum livro de anatomia. Ela queria emprestado, para estudar.

Minha área de pesquisa é bem distante da área de nutrição. Então fizemos, eu e meu marido, uma rápida pesquisa de títulos, e encomendei um tratado de anatomia considerado bom mas não tão caro. Demorou umas duas semanas para que ele chegasse.

Ela, à porta de casa, recebeu o livro de muitas páginas. Passou a mão por algumas delas. Depois o abraçou. Ficou ali, abraçada com o livro de anatomia. Os olhos brilhavam. Foi contando sobre o quanto ela gostava de estudar, e de ler. Ela entendeu que o livro era emprestado. Disse-lhe que não, que era dela. Ela perguntou como iria pagar. Respondi que pagaria sendo uma ótima nutricionista. Ela sorriu e me disse que me traria as notas do semestre para eu ver.

No dia seguinte, retomamos a conversa. Ela já tinha lido parte do livro, estava feliz. E reiterou seu gosto pela leitura. “De que tipo de leitura você gosta mais?”, perguntei. Ela pensou... “Não gosto de romance... nem de poesia...” Fiquei surpresa. Ela achou por bem explicar “gosto da Clarice Lispector... e da poesia de Drummond...”. Que eu também gostava, comentei. Ela continuou “do Drummond eu gosto da melancolia...”. Aquela conversa ia me encantando cada vez mais. Então ela corrigiu “não é bem da melancolia... eu gosto é da falta de esperança... também não é isso, é da desesperança de Drummond que eu gosto”. E seus olhos brilhavam, apoiada no rodo, ao lado do balde com água suja.

Contou-me, então, que, depois de ter deixado a escola por alguns anos, voltou a estudar com o filho já adolescente. Terminaram o ensino médio juntos e entraram para a faculdade também ao mesmo tempo. Só que ele faz outro curso. Perguntei se ela já tinha lido Carolina de Jesus, ou Conceição Evaristo. Não tinha lido, mas conhecia, e sabia do teor de suas produções. Tinha interesse nesses escritos também. Mas gostava de livros que falassem sobre ciência, cientistas, e seu sonho foi alçando voo. Se ela gostava de ficção científica, perguntei. Que sim, respondeu, muito! Rimos juntas: "eu também gosto muito!"

Falou ainda um pouco sobre os filmes de que gosta. Citou alguns filmes sobre a vida de mulheres que a inspiram, referindo-se, sobretudo, a algumas mulheres cientistas.

Eu a abracei devagar, querendo voltar a sentir esperança. A esperança cuja falta era o que lhe causava encanto na poesia de Drummond.