segunda-feira, 29 de junho de 2015

De músicas e compaixões



Na terça feira pela manhã, precisei ir de táxi ao trabalho. Às 8h, o motorista me aguardava à porta do prédio onde moro. Muito gentil, identificou-se, nos cumprimentamos, informei o endereço para onde pretendia seguir, combinamos o trajeto. Houve uma pausa nos encaminhamentos, enquanto o carro era conduzido pelas ruas cheias de movimentos os mais diversos. Havia uma espécie de tristeza naquele silêncio. Então o rapaz comentou, num tom entre desconsolado e perplexo: ouvi pela emissora da rádio que o Cristiano Araújo morreu, nesta madrugada, num acidente de carro. Aquela informação provocava, nele, um sofrimento que não podia permanecer calado. O nome Cristiano Araújo soava com familiaridade em sua fala. E reivindicava minha cumplicidade.

Naquele momento, pesou sobre mim um sentimento de incompetência e ignorância. Como eu não sabia quem era Cristiano Araújo, nem o que fazia? Seria algum político local? Algum empresário muito conhecido? Um artista? Como eu desconhecia essa pessoa, eu, senhora de discursos que pretendem colocar na berlinda relações de poder, estruturas hierárquicas que segregam alguns segmentos da cultura em nome de outros, estes elitizados, excludentes? Como eu sequer sabia o que fizesse o referido rapaz morto no acidente, enquanto aquele motorista se sentia profundamente comovido com o ocorrido?

Senti-me incapaz de compartilhar daquela comoção. Portanto, incapaz de lhe compreender não só o sentimento experimentado por ele, mas boa parte do contexto em que se insere. Fui lhe ouvindo os comentários, até compreender que se tratava de um jovem cantor, com rápida ascensão, da chamada música sertaneja universitária. Provavelmente um cantor presente na festa da exposição agropecuária, pensei (eu, que nunca vou à feira, e ainda desvio percursos para evitar suas cercanias, e os excessos de carros, pessoas, bebidas, barulho...).

Pensei, também, nos quantos adolescentes pobres que, em lugar de sonhar em ser jogador de futebol, preferem o sonho de ser estrela do estilo musical sertanejo universitário. Nos quantos irmãos que treinam, desde muito cedo, suas vozes para o canto em duplas, e animam festas de amigos, imaginando, algum dia, ocupar palcos iluminados ante plateias emocionadas. O motorista do táxi poderia estar numa delas, com sua namorada, família, filhos.

Carreira musical inconsistente? Promovida às custas de jabás? Talvez. Quantos artistas pagam volumosos jabás, sem conseguir ter seus trabalhos reverberando no peito de sua audiência? Que lugar eu poderia ocupar que me autorizaria a desqualificar o sentimento pulsante no peito do motorista do táxi, naquela manhã de terça feira? Nenhum, além do lugar da arrogância e da prepotência.

Na volta para casa no dia seguinte, final da tarde, tive o percurso interceptado por algum evento que, em meio ao tumulto de carros, viaturas, transeuntes, não conseguia identificar. Parada, esperando a liberação do trânsito de automóveis, chamou-se a atenção o número de pessoas fotografando alguma coisa que minha visão não conseguia alcançar. Até que uma senhora de meia idade me explicou: eram os corpos do Cristiano Araújo e sua namorada (cujo nome só depois fui saber: Allana) sendo liberados para os funerais. Mais uma vez meu caminho se deparava com o do jovem cantor, em sua morte. Mais uma vez, eu me via pensando a respeito da vida, da arte, das reverberações de trabalhos, da produção de sentidos...

Nesse episódio, uma carreira foi interrompida abruptamente. Seus fãs, assustados, lembraram-se quão finita e breve é nossa vida. Dessa finitude, nem nossos ídolos estão livres. Mas eles permanecem, em alguma medida, vibrando nos trabalhos que realizaram. Em suas músicas.

Não, ainda não sei que músicas esse menino gravou. Mas lhe tenho o mais profundo respeito. E compartilho o sentimento de perda com o motorista do táxi, e com todos os demais que lhe sentem a falta. A isso, dá-se o nome de compaixão. Por minha história, por minha estrada, experimento do mesmo sentimento quando, por exemplo, ouço a voz da querida Inezita Barroso nalguma gravação, ou vejo seus programas dominicais sendo reprisados na TV Cultura.

Não, a música de Inezita não morreu. Nem a de Cristiano. Vida longa à música de ambos! Às gentes deste Brasil de dentro e sua cultura! E à compaixão!






terça-feira, 23 de junho de 2015

Sobre jardins e petréias...


Quando cheguei àquele lugar, encantei-me com o jardim interno. Dele vinha um frescor em tons de verde, misturados a tons de terra. As árvores portavam flores, macacos, pássaros. E o chão se deixava cobrir pelas folhas caídas. Uma lindeza.

Houve um dia quando, fazendo um atalho entre as plantas, deparei-me com o chão coberto por pequeninas estrelas lilases. Suspirei ante o inesperado. Fui levantando os olhos, e encontrei lá acima, muito acima, pendões com as florinhas ondulando ao vento. A trepadeira agarrava-se a um dos pilares, e esparramava-se no alto, espargindo flores.

Demorei algum tempo até descobrir-lhe o nome. Petréia. Também conhecida como viuvinha. Em cor lilás ou branca. Encantamento do começo ao fim. Todos os anos, eu esperava pela época quando ela nos presentearia com sua floração.

Afinal, nossa faculdade mudou-se para um novo prédio, e aquele começou a ser reformado. Hoje, caminhando pelas rampas, fui avistando o chão coberto por uma camada de brita, e as plantas tentando alongar-se acima dela, de sua hostilidade, de sua rispidez. Senti falta do limo, das formigas, das folhas desfazendo-se. Segui um pouco mais, observando a convivência pouco confortável dos troncos com a brita, até chegar ao pilar vazio. Um vazio que se alongou até o alto, sem uma tênue lembrança, sequer, das estrelas lilases pendendo ao vento. 

A petréia foi arrancada do jardim. Em alguma medida, foi poupada do convívio com a rispidez da brita. O jardim não perdeu só o brilho: teve subtraídas suas estrelas lilases...





segunda-feira, 15 de junho de 2015

quando um trabalho vai ao encontro do outro


Já foi relatado aqui. Depois de muito tempo sem notícias, reencontramos Seu José Zagati. Desde então, com alguma regularidade, temos conversado ao telefone. Sua saúde não está bem. Há poucas semanas foi submetido a uma cirurgia muito agressiva, que durou 12h. Está se recuperando, na casa da filha.

Ontem, enquanto conversávamos, ele se manifestou em relação ao meu livro que tem alguns capítulos dedicados ao seu trabalho com cinema, e ao desfeito Mini Cine Tupi, em Taboão da Serra. Confesso que estava ansiosa por ouvi-lo, depois de, finalmente, ter conseguido lhe enviar o exemplar.

Contou-me que ficou impressionado com tudo que escrevi sobre o Brazza e os outros cineastas (Seu Manoelzinho e Seu Simião Martiniano). Mas, principalmente, disse ter ficado emocionado com o que eu escrevi sobre ele. Estava ali, tudo, tudo, conforme me contara nas entrevistas, nas quantas vezes quando estivemos juntos. Desse modo, chancelou minha escrita sobre ele. 

Ao final de seu parecer, proferiu a sentença que ainda está reverberando em mim, como um prêmio, mas também iluminando o modo como tenho desenvolvido o trabalho de campo, nas relações de aprendizagem que tenho tido o privilégio de estabelecer com pessoas tão especiais, agentes de cultura, atuantes em seus tempos e contextos:

"Professora, como o meu trabalho se encaixou com o seu trabalho, não é? O meu trabalho e o seu se encontraram direitinho!"

É, meu senhor, parece que esse caminho tem um coração...






domingo, 14 de junho de 2015

futuros...


Devo confessar que temo ao pensar como será a vida daqui alguns anos, quando tiverem chegado à vida adulta as gerações de crianças criadas tendo seus desejos prontamente atendidos, suas vontades não só realizadas, como estimuladas, experimentando de modo muito escasso situações de frustração, impotência, negação...

Quem viver, viverá...



terça-feira, 2 de junho de 2015

Tempo livre, ciência e existência


Em 1980 estudei, no curso de graduação, o livro Ciência e Existência, do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto. Nalgum momento do texto, ele compartilhava a ideia de que o desenvolvimento da ciência deixaria mais tempo livre para as pessoas. Assim, elas poderiam usufruir desse tempo com sua família, fazendo coisas que lhes agradassem, desincumbidas dos afazeres do trabalho.

Essa ideia me pareceu, desde a primeira leitura, um equívoco. Afinal, a substituição da atividade humana pelos recursos tecnológicos significaria, antes de qualquer coisa, desemprego. Ou seja, eu via naquilo uma relação matemática simples e direta, sem cálculos intermediários: tempo livre = desemprego = problema.

35 anos depois, com os recursos tecnológicos penetrando nossas vidas de modo inimaginável para o autor àquela época, o sistema capitalista produtivista no qual estamos irremediavelmente imersos não permitiu sequer que nos déssemos conta da possibilidade de tempo livre: as tarefas se multiplicaram em progressão geométrica, esfarinhando o tempo que se perde em vãos invisíveis. A existência ficou mais estressada, a velocidade acelerada, as pausas violadas...

Tempo livre? Era o que eu tinha, quando pude ler as 537 páginas do livro Ciência e Existência, integralmente, para uma disciplina de primeiro semestre do curso de graduação...