segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

FC do B: um convite, e uma grata descoberta em 2011



Em junho de 2011, recebi, por correio eletrônico, um convite que me pareceu, ao mesmo tempo, muito instigante, simpático, e também surpreendente: integrar a Comissão Julgadora de um concurso, de abrangência nacional, de contos de ficção científica. FC do B, o nome do concurso, que encaminhava sua terceira edição, relativa ao biênio 2010-2011. O site do concurso é http://fcdob.com.br/

Minha disposição imediata foi de aceitar, animada por algumas razões. A primeira delas diz do meu envolvimento com questões relativas à ficção científica, seja em pesquisas acadêmicas, seja pelo meu envolvimento pessoal com narrativas dessa natureza. Além disso, mesmo sem conhecer, no primeiro momento, o projeto, tampouco o histórico do concurso, intuí a importância de tal iniciativa, considerando que o Brasil tem público ávido desse tipo de produção, tanto na literatura quanto no cinema, enquanto os incentivos para a sua produção ficam sempre em patamares aquém. Finalmente, devo confessar que não resistiria à oportunidade oferecida para ler um amplo conjunto de contos – o que, por si, tem suas doses de prazer – de ficção científica – os motivos se fortalecem – produzidos por escrivinhadores brasileiros.

Aceito o convite, recebi as instruções, e, em julho, comecei a navegar entre as leituras. A jornada era árdua, afinal, tinha pela frente nada menos que setenta contos para serem avaliados, num período de pouco menos de três meses. Nesse ínterim, participei de alguns eventos acadêmico-científicos, bancas de defesa e qualificação em pós-graduação, dei aulas, acompanhei orientandos, fiz revisão de textos a serem publicados (artigos, capítulos de livros, e livros), e entre a lista de coisas para fazer, materiais para ler, inventava pausas, e me punha em viagem com os contos. Cada mergulho, um portal atravessado para outra dimensão, com paisagens imaginárias, tensões, aventuras, perguntas. Muitas perguntas. Imagens, cenários, situações que foram incorporados aos meus repertórios, e ficaram lá, perfeitamente articulados. Ainda hoje, de repente, alguns elementos emergem à minha lembrança. Por vezes nem consigo, de imediato, lembrar a fonte: teria sonhado? Vi nalgum filme? Para então localizar, entre os contos, a sua formulação.

Pedro Rangel, que faz parte da organização do concurso, foi meu interlocutor em todo o processo, desde o convite, passando pelo acompanhamento cuidadoso e feed back no tocante às minhas leituras, ao encerramento dos trabalhos, até o envio, por correio, da coleção de três volumes, das três edições realizadas.

Com os livros em mãos, tive confirmada a importância desse trabalho. Demorou, poderiam dizer leitores mais jovens. Percorri as páginas, revi os contos, quis saber informações sobre os autores premiados, dos quais não tinha a menor ideia, a não ser de seus codinomes. A diversidade temática, bem como do perfil dos contistas, a riqueza no exercício literário, e o cuidado nas edições convidam à leitura. Chama-me a atenção, também, a agilidade com que o material foi editorado, impresso, e lançado.

Por todas essas razões, reitero o que já observei à Comissão Organizadora, por intermédio do Pedro Rangel: é, sem qualquer dúvida, louvável uma iniciativa dessa envergadura, pela temática que aborda, pela produção literária brasileira à qual dá vazão, por propiciar aos leitores o contato com essa produção, e pela qualidade das publicações. Por último, devo ressaltar, ainda, o cuidado criterioso e os princípios éticos observados em todas as etapas do concurso, qualidades de que eu sou testemunha.

Os três livros foram publicados pela Tarja Editorial: FC do B 2006-2007, 2008-2009, e este último, 2010-1011. Recomendo a leitura. Ao deguste!




quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Uma fornada de chipa, uma manhã chuvosa, e o primo que veio de longe.



Para Nezinho, que não vejo há tanto tempo...
 E para Mara e Chico, com carinho.


Certas impressões ganham registro tão intenso na memória, que vez ou outra se mostram entre nossos pensamentos quotidianos, disparadas sabe-se lá porque, tão vivas quanto ao momento que as tenhamos vivido, não importa há quanto tempo.

Eu estaria por fazer 10 anos. Tínhamos nos mudado para a cidade para que eu ingressasse na vida escolar regular. E a cidade fervilhava com novidades, portas abrindo frestas para um mundo imenso e desconhecido, a instigar minha imaginação.

De algum lugar desse mundo chegou, para visitar os parentes, um primo que nascera e vivia muito distante, no Rio de Janeiro. Eu o conhecia de algumas fotos num velho álbum de família, sobre as quais minha mãe contava histórias e fazia descrições. Mas nas fotos, ele era sempre menino. Quando chegou, era um rapaz, querido, gentil com as curiosidades dos parentes, curioso para saber mais de nós.

Ficou hospedado na casa de uma irmã de meu pai. Fiz, a pé, o percurso entre a nossa casa e a dela algumas vezes, para vê-lo. Saía pela Rua Tiradentes até a Avenida Brasil, o que dava duas quadras, e então seguia mais quatro quadras até chegar ao endereço. Numa dessas visitas, levei-lhe meu álbum de recordações, e pedi que escrevesse alguma coisa para mim. Era um pequeno álbum, com um botão de rosa estampado na capa, e folhas com margens desenhadas. Minha mãe e meu pai haviam escrito poesias para mim, nas primeiras páginas. Meus irmãos formularam votos de alegria, sorte, sucesso. Colegas de escola prometiam amizade, sempre. No dia seguinte, recebi o álbum de volta. Suas palavras, escritas com letras muito miúdas, vieram carregadas de carinho, que quase me tiraram o sono, tamanha a alegria.

Na véspera de sua partida, minha mãe fez uma fornada de chipas para que ele levasse consigo, de volta para casa. Mas o dia amanheceu chuvoso, e lá pelo meio da manhã ela concluiu que não seria possível entregar-lhe o presente. Uma conclusão que me pareceu sem o menor sentido: desde quando chuva poderia ser impedimento para que se entregasse um pacote com chipas para uma pessoa querida em partida? Chuva nunca fora impedimento para nada, também não seria naquele momento. Eu cresci testemunhando meu pai sair para fazer pequenas viagens, ou visitas, mesmo quando estava chovendo: encilhava o cavalo, cobria-se com a capa a lhe dar um ar mais sóbrio do que o comum, o chapéu lhe protegia a cabeça, e seguiam, cavalo e cavaleiro, em passos seguros, perdendo-se no cinza da paisagem molhada. Do mesmo modo, minha mãe cuidava dos animais, atendia todas as demandas domésticas, a despeito de estar chovendo ou não. Não haveria de ser sempre assim?


Calcei meu par de galochas, empunhei o guarda-chuvas, segurei o pacote com firmeza, e segui, entre poças, enxurradas, lamas e barrancos, pelas seis quadras do percurso. Num instante estava lá, para espanto de todos, que admiraram minha coragem para enfrentar toda aquela chuva!

O sentimento mais sincero a pulsar me dizia que o desafio da chuva era de pouca valia diante do desejo de me despedir do primo que conquistara meu coração. Aliás, a chuva nem chegava a ser um desafio, para quem, aos 10 anos, tem o mundo para desvendar. A chuva pode ser, mesmo, um estímulo a mais, uma motivação.

Ou essa seria apenas uma percepção de alguém com não mais que 10 anos? Quantos projetos terão sido adiados por mentes e corações adultos com a desculpa de estarem as manhãs chuvosas e as ruas alagadas?

Aquela manhã, aquela chuva, minha determinação em ir vê-lo, a despedida, são imagens fortes que não se desfazem no tempo. Saudades, Nezinho!



terça-feira, 24 de janeiro de 2012

enroscados...



imbróglio

tem dias na nossa vida
que ficamos enroscados
nem p’ra frente, nem p’ra trás
sem saída p’ra qualquer lado





em tempo: Renato e Rubinho resgataram o cãozinho fujão metido em situação tão delicada.
 Com quantos Renatos e Rubinhos podemos, nós, contar, no dia a dia? 
Um beijo, meninos!


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Casos de amor, sobressaltos, e outras revelações...

ou 
Pequeno conto no qual a personagem principal não comparece à cena...

No início dos anos 80, nossas vidas andavam em ebulição. Meu Amigo (que aqui chamarei apenas assim: Meu Amigo, para preservar-lhe a identidade) chegara do exterior, onde, longe das garras repressoras da ditadura militar, vivera as mais diferentes experiências, em intensidade e multiplicidade. De volta, dedicava-se ao trabalho com muito envolvimento. Ali, conheceu nossa Amiga Arte-Educadora (que também será assim referida neste texto), com quem estabeleceu vínculos fraternos afetuosos.

Chegou um tempo quando Meu Amigo começou a mostrar-se ansioso, tenso, angustiado. Num final de tarde tomou-se de coragem e falou-me do seu medo: andava observando o aparecimento, em seu corpo, de alguns sintomas desconfortáveis, que poderiam ser indicadores de AIDS. A síndrome pairava sobre as cabeças como possibilidade de degredo. No entanto o dado a angustiá-lo de modo mais pungente ainda estava por me ser contado. Logo de seu retorno ao Brasil, conhecera um médico, professor universitário, com quem se envolveu, mantendo uma relação afetivo-íntima durante mais de ano. Mais recentemente, descobrira que o médico era casado com a nossa Amiga Arte-Educadora.

Com tantas novidades, ele andava com os nervos à flor da pele. A razão lhe apontava a primeira providência a ser tomada, para só então tomar decisões, verificar encaminhamentos, etc. Não foi sem pânico que fez o exame, e foi entre comemorações que viu o resultado negativo. Pronto, refeitas as forças, tocou a vida. Já não precisava mais fazer grandes revelações, expor-se, tornar-se vulnerável. Cuidaria de se preservar, e cultivar seus afetos.

A vida é assim: quantas pessoas queridas, com quem convivemos durante períodos importantes, acabam encaminhando-se por veredas diferentes das nossas, e as vemos cada vez menos. Eu me mudei, transferi meu trabalho para outra região, envolvi-me com outros projetos. Eles também. Não encontrei mais Meu Amigo. Muitos anos depois, ao acaso, reencontrei nossa Amiga Arte-Educadora. Estava bem. Contou-me que os filhos estavam crescidos, cheios de novidades a cada dia. E, mostrando-se forte, arrematou com a nova: separara-se do marido. - "Você não pode imaginar o que eu descobri!" Levei um quase susto. Aguardei pelo desfecho da narração iniciada: - "A gente vive tanto tempo com uma pessoa, e não conhece nada dela! Aquele safado! Você acredita que ele tinha outra família? Mulher, filhos da idade dos meus, e tudo o mais!"



sábado, 21 de janeiro de 2012

finórios invadem a cena do cinema goiano


PROCURADOS




49.000,00 para quem encontrar
hipnotizador e encantador de passarinhos selváticos
líder da caterva!




7.000,00 para quem encontrar
fino ladrão de cavalos e muares
(...finge-se de santo...)
um dos sequazes do líder

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Aos fãs, seguidores, e público em geral, já está em pleno set de filmagens a próxima obra cinematográfica de Martins Muniz e Sistema CooperAÇÃO Amigos do Cinema! Aguardem!
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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

arroz com feijão


"Há poesia na flor, na dor, no beija-flor, no elevador"
Oswald de Andrade


Com o tempo, aprendi que bons cozinheiros não são só aqueles que dominam a manipulação de receitas extraordinárias, com ingredientes pouco comuns, produzindo sabores capazes de surpreender o percurso regular dos dias. Bons cozinheiros também são aqueles que desenvolvem o poder alquímico de transformar o banal, o trivial, em experiências especiais, ainda que quotidianas.

A expressão "arroz com feijão" foi incorporada aos falares populares, referindo-se a procedimentos comuns, simples, básicos. É preciso dominar o "arroz com feijão" de certa atividade para iniciar-se no campo profissional a ela relacionada. É coisa de iniciante.

A bem da verdade, a questão não está no conteúdo do arroz e feijão, mas nos procedimentos para o seu preparo: é possível fazer a velha dupla da culinária popular brasileira sem maiores delicadezas, de modo a não surpreender o paladar. No entanto, também é possível transformar seu preparo num exercício de experimentações para o paladar. O que não significa, contudo, cair na tentação de acrescentar-lhes ingredientes outros, a roubar-lhes a cena, empurrando-os à condição de base, ou fundo.

Parece-me, portanto, que o segredo esteja em preparar um e outro, variando a escala dos sabores, dos tempos, das texturas, dos odores, sem camuflar-lhes a identidade.

O segredo está, assim, em descobrir caminhos para transformar o quotidiano em escalas ricas e saborosas de experiências. O extraordinário, o exótico, quando compareçam, agregam valor, somam possibilidades ao que já é portador de qualidades diferenciadas.

Que o arroz com feijão seja o simples, sim, lembrando que no simples é que encontramos o complexo, o denso, a síntese. Que o quotidiano seja tecido por experiências singulares entrelaçadas. Que no simples também esteja o sabor a dar o tom dos dias.


domingo, 15 de janeiro de 2012

Mal destes tempos



A recorrência de uma notícia entre pessoas amigas, conhecidos próximos, familiares, me força a pensar sobre o estilo de vida que temos construído nos últimos tempos, que resulta na alta incidência de casos de câncer, nos mais diversos contextos sociais, culturais, e geográficos.

O ano em curso inaugurou-se com a perda de um compadre amigo nosso, enquanto a tia do meu amigo tinha diagnosticado um tumor abdominal. Recebemos, hoje, a notícia de seu falecimento. Entre amigos e familiares de amigos, grande é o número dos que estão, neste momento, na arena de combates, entre tratamentos, todos sofridos, contra algum tumor, algum conjunto de células enlouquecidas, capazes de enlouquecer os organismos.

Tenho ouvido médicos em geral assegurarem que têm conseguido tratar e curar um número cada vez maior de casos de câncer, salvando vidas. No entanto, um número cada vez maior de pessoas próximas tem sido vitimado por essa doença, e muitos têm perdido a batalha, vindo a óbito: diferentes faixas etárias e condições econômicas, residentes em centros urbanos e no campo, variadas formações escolares...

Que complexo de fatores da vida contemporânea é comum a todos esses contextos, e acaba disparando gatilhos capazes de desequilibrar de modo radical o funcionamento das células?

Penso na qualidade dos alimentos que ingerimos, quaisquer que sejam as orientações alimentares. Vegetarianos não podem evitar a contaminação de vegetais por venenos os mais diversos. Mesmo os alimentos orgânicos não estão livres, pois os solos encontram-se em tal estado de impregnação de venenos, que mesmo parte dos lençóis freáticos estão contaminados. Os que usam carne acabam ingerindo teores desconhecidos de hormônios de que sequer se tenha noção, de animais criados em condições as mais adversas. Os produtos industrializados, desses, nunca sabemos ao certo de que substâncias são portadores: pães, farinhas, macarrões, embutidos, bebidas, óleos, congelados, a lista não tem fim. Chamando à cena os produtos industrializados, não podem ficar fora da lista os cosméticos, materiais de higiene, tecidos... (não posso desconsiderar o risco de ficar neurótica, também, pensando nessas listas...)

Afora a questão alimentar, assusto-me com o fato de que nossos corpos, de que nossas células – essas, que de repente podem enlouquecer, e que não queremos que enlouqueçam – são atravessadas por toda sorte de ondas eletromagnéticas, 24 horas por dia – e essa é, definitivamente, uma condição inevitável hoje, quer vivamos nos centros urbanos, quer vivamos em selvas longínquas: telefonia celular, transmissões via satélite, redes de televisão, tecnologias wireless para os mais diversos equipamentos, rádio transmissores, fornos de micro ondas, computadores, e quantas outras parafernálias, quantos itens, de que não abrimos mão, pela comodidade para o encaminhamento de quantas atividades diárias a ocupar nossas agendas sempre tão concorridas.

Ainda mais, quantas partículas pairando na atmosfera são absorvidas pelo nosso corpo, enquanto respiramos, ou pela pele, pela água, as roupas que usamos, e estabelecem relações reagentes com nosso organismo, sem que nos demos conta disso. 


Resta, ainda, acrescentar os níveis sempre crescentes de estresse, decorrentes de múltiplas demandas contemporâneas, profissionais, de comportamento, pressões e expectativas, ansiedades, ambições, medos...

Várias luzes amarelas, de advertência, estão acesas. Avermelhadas, talvez. É preciso atenção crítica ao que estejamos a fazer de nossas vidas. Não basta comprar no mercado o próximo estilo de viver que se anuncia anticancerígeno, ou anti uma série de outros males em curso – não passam de convites do mercado ao próximo cliente consumidor incauto. É preciso o esforço de pensar além desses circuitos. Por certo que nossa ignorância a respeito desses quadros, nos quais estamos imersos  é muito maior do que preferimos acreditar.

Cada vez mais, sou instada a perguntar se o desenvolvimento tecnológico – em todas as suas frentes – leva, de fato, ao desenvolvimento humano, e à qualidade de vida. Uma coisa não supõe a outra. Essa afirmação parece óbvia, mas nossos comportamentos são embalados pela crença e pelo deslumbramento à tecnologia, de modo acrítico no mais das vezes. Chegará o momento de escolhermos entre uma coisa e outra. Ou de decidirmos que só nos interessa aquela tecnologia que de fato assegure melhores qualidades nas relações humanas, do ponto de vista da saúde em todos os âmbitos. E essa decisão precisará ser tomada fora dos tentáculos sedutores da lógica do mercado – se é que podemos nos imaginar fora deles, hoje.

Haverá tempo para tomarmos tal decisão? Teremos a sabedoria necessária e a determinação para tanto?... Faço votos de que sim.

Enquanto isso, seguimos, entre sobressaltados e desconsolados, mas persistentes na esperança de tempos melhores para viver.


sábado, 14 de janeiro de 2012

Desastre aéreo na janela de algum apartamento...



p/ J. Bamberg, que tem espírito de menino,
 e participação ativa nesta história.



Quando percebeu que sua nave cairia nas malhas da armadilha preparada para apanhar monstros gigantescos, o piloto apertou o botão onde se lia "ejetar". Foi lançado ao espaço, e o pára-quedas abriu-se de um golpe. Sua trajetória no ar fez um arco, e ele enroscou-se numa estrutura inclinada à beira de um paredão inóspito, na parte mais alta do precipício. Olhando para baixo, concluiu que, qualquer movimento em falso, poderia cair, e então estaria perdido... Ficou ali, dependurado, pensando em como sair daquela situação, e salvar a pele.


De onde estava, podia avistar sua aeronave mais abaixo. Estava completamente enovelada pelas redes da armadilha, feitas com fibra ultra resistente, capaz de conter os monstros. Sim, também havia os monstros, e ele torcia para que nenhum deles aparecesse.



Depois da chuva, já quase pela noite, pequenas e hábeis mãos de menino ultrapassaram uma das aberturas existentes no paredão, também conhecida como janela, resgataram o piloto com seu pára-quedas, e levaram a aeronave para conserto. Livres dos monstros, sem riscos de se perderem no precipício, em poucos minutos estariam prontos para novas aventuras.
  

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Hortelã graúda da folha gorda



Dia de feira. De sacola em punho, fui comprar café moído na hora, radiche, milho verde... Hoje acrescentei à minha pequena lista um maço de hortelã graúda, boa e cheirosa, para colocar na salada. As folhas são aveludadas, grossas. Ao toque, liberam perfume.
- Só tem desta aqui; a que a senhora quer, a hortelã da folha gorda, não tem não.
São conhecidos, para começo de conversa, três tipos: hortelã miúda, hortelã graúda, e esta, a hortelã graúda da folha gorda.
- Essa, onde eu posso encontrar?
- Ah, aqui vai ser difícil. Não vende em feira não. Só tem quem planta em casa...
Uma das feirantes comentou que a avó tem no quintal.
- Traga um maço para mim, então!
- Se eu lembrar... mas eu não vou lá por agora...
Adiante, uma mocinha falou que já viu uma touceira numa casa de sua rua.
- Então, você pode conseguir para mim!
- Mas eu não conheço a dona... A senhora tinha era que plantar para a senhora!
- Como posso plantar se não consigo quem arrume a muda?
Rimos. Voltei sem as folhas de hortelã graúda gorda. Chegando em casa, comentei com minha vizinha o insucesso do meu intento. Ela riu-se:
- Ah, hortelã da folha gorda, só tem quem planta em casa...
Quanto a isso, não há dúvida, é consenso: só tem quem planta em casa.
Agora procuro quem tenha do tempero plantado em casa, para conseguir umas folhas, um galhinho, quem sabe, e plantar num vaso, aqui na varanda.

                                           Encontrei esta foto  aqui






segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Providências


                                                                   Terra Gwayá, 9 de janeiro de 2012

reorganizar prateleiras
atualizar a agenda
desfazer-se de excessos
deixar espaços vazios
para serem ocupados
pelo ano recém chegado (que já avança)

triturar papéis antes de descartar
triturar anotações indesejadas
triturar o que já não é
triturar medos paralizantes
triturar fantasmas escondidos na sombra dos tempos
triturar aquilo que faz mal
embalar tudo, e jogar fora

a tarde cai
a chuva cai

inventar alguma ordem para os livros
reencontrar nomes, telefones, listas
pequenas letras resistem intactas
nos retalhos de papel
quem sabe reescrever histórias com elas
refazer caminhos
recomeçar






sábado, 7 de janeiro de 2012

O novo cardiologista da minha mãe



Com frequência, quando fica absorta nalgum afazer, escrevendo ou costurando, por exemplo, a certa altura é tomada por intenso mal estar: as batidas cardíacas se alteram, sente tontura, se banha de suor, uma angústia no peito. Então se dá conta de que há algum tempo parou de respirar. A apneia em estado desperto associada à arritmia cardíaca e um desequilíbrio na pressão arterial acabaram levando-a a vários cardiologistas que se tornaram grandes amigos seus. E as consultas ganharam feições de visitas afetuosas. O cardiologista mais antigo tem várias coisas em comum com ela: também escreve, e enfrenta quadro semelhante de apneia e arritmia cardíaca. Então os dois divertem-se trocando livros e elogios, e conversando sobre suas idiossincrasias. O segundo cardiologista tem com ela uma ligação filial, o que faz da consulta um encontro em que são tratados assuntos de família, quando se falam de filhos, educação, projetos pessoais. O terceiro cardiologista é seu vizinho, já leu todos os seus livros de poesias, e a conhece o bastante para saber que ela não tomará os remédios receitados, tampouco fará os exames solicitados. Talvez até os faça, mas entre muitos queixumes. Então conversam sobre o condomínio, suas plantas, projetos para novos livros. Ela argumenta em favor dos chás e suas propriedades medicinais superiores aos remédios em geral, no que ele acaba assentindo. Por isso minha irmã pensou que talvez fosse melhor buscar um cardiologista que não fizesse parte de suas relações de afeto, para estabelecer uma relação estritamente profissional. Assim fez. No dia marcado, ficou aguardando na antessala, enquanto ela entrou para a consulta. Poucos minutos transcorridos, e já ouviu suas risadas vindas de dentro do consultório. Os risos se estenderam, e outras senhorinhas que também aguardavam riram-se com ela. Findo o tempo da consulta, o médico a trouxe até à porta, para despedir-se, tranquilizar minha irmã, e chamar a próxima cliente. Os dois estavam alegres. Tinham trocado receitas de pão, falado sobre poesia, conversado sobre a vida no campo. Mais tarde, minha irmã lhe perguntou sobre a opinião do médico a respeito da apneia e da arritmia cardíaca. Ela respondeu que não tinha dado tempo de conversar sobre isso...


quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Saboroso café da manhã, depois da chuva



... a propósito de aparelhos de chá, cafés e outras delícias... para todos os gostos





Bem-te-vi delicia-se com os frutos da Schefflera actinophylla, ou árvore guarda-chuva. Para saber mais sobre ela, aqui.



quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Quem vai querer chá?

p/ Aline e Ju



Alice encontrou o Chapeleiro Louco sentado numa grande mesa tomando chá.

– Alice! Foi bom você chegar, pois acabo de esquentar água para o chá.
Nisso chega o Coelho Branco numa correria: – Atrasado! Estou atrasado!
– Coelho, junte-se a nós num delicioso chá, convidou Alice.
E antes de começarem, chegaram Dum e Dee, que estavam por perto. E a seguir, Humpty Dumpty, o Gato de Cheshire e a Lebre Telhuda.
– Nossa, agora somos 7! Disse Alice. Mas, então, surge a temível Rainha de Copas, junto com o Rei de Copas:
– Ouvi barulho... Ora, uma reunião com direito a chá! Ordeno que me sirvam, senão corto suas cabeças!
Foi demais para o Chapeleiro. Sobre a mesa, falou:
– Amigos... Estou trabalhando! Não posso pagar chá para todos.
O Gato de Cheshire, com aquele sorriso maroto, brincou: – Puxa vida... Como somos velhos amigos, vamos comemorar hoje por conta da casa!
O Chapeleiro retrucou:
– Hoje não! Mas, se sentarmos em uma ordem qualquer em volta desta mesa e trocando a ordem sem repetição, ao esgotarmos todas as posições eu providenciarei que nunca mais paguem pelo chá.
– Bela proposta!, disse a Rainha.
Mas Alice a achou estranha... Como eram 9 pessoas, começou a esboçar de quantos modos diferentes poderiam sentar-se à mesa:
– Se formos apenas duas pessoas, A e B, podemos nos colocar junto à mesa de duas formas: AB ou BA, como DumDee ou DeeDum.
– Vamos contar as ordens possíveis se forem 3 pessoas (A,B,C), disse Alice. C pode estar antes, entre e depois de cada um dos pares AB e BA: CAB, ACB e ABC ou CBA, BCA e BAC. Como são dois os pares, gerando 3 termos, teremos 6 possibilidades, certo? Alice então continuou:
– Com duas pessoas teremos duas posições (2 x 1 = 2) diferentes, com 3 pessoas teremos 3 x 2 x 1 = 6. Acho que o Chapeleiro reinventou o fatorial! Com isso, 4 convidados = 4 x 3 x 2 x 1 = 24. Vemos então que 5 = 120, ou seja, permutando as posições, 5 pessoas gastam 120 dias. Imaginem então como seria com todos os 9 convidados: 9 = 362 880 dias.
Alice teve, pois, razão em desconfiar, pois 362 880 dias representam quase 1 000 anos. Ah, esses malucos cálculos matemáticos!

Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898)




terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A propósito de esperar pelas borboletas no quintal...




Durante o verão, a Schefflera actinophylla, ou árvore guarda-chuva, oferece um banquete para os pássaros.
 Mais informações sobre ela,  aqui.



domingo, 1 de janeiro de 2012

Para encontrar e viver o seu amor



Noutro dia, sonhei com uma jovem que descobriu, ao acaso, ser possível materializar coisas que ela imaginava. Sem pensar em fazê-lo, imaginou algo, e em seguida a coisa flutuava em torno dela, ao alcance de sua mão. Ainda brincando, executou com sucesso pela segunda vez a proeza. Na sequência, quando desejou ter o domínio sobre o processo, já não conseguiu. Punha-se sentada, concentrada, em meditação, imaginando coisas. Ao final de algum tempo, olhava em torno, para constatar, frustrada, que não obtivera êxito em seu intento. Observando o processo, compreendi que o segredo estava em não desejar, em não querer ter o poder de decisão sobre quando e o que imaginar e materializar. Além do segredo, ali também residia um paradoxo: para realizar o intento, era preciso não querer realizá-lo, não ter expectativas a respeito. Retomar um estado original de inocência, já rompido.

A experiência humana no tocante ao amor é prenhe de tensões que se assemelham à situação do sonho. Durante muito tempo me perguntei como encontrar um amor. Onde buscar? Como saber quando o teria encontrado? Como reconhecer nele o poder de realização? Nunca obtive resposta satisfatória. Mas aprendi que o amor parece que gosta de se mostrar quando não estamos ocupados em procurá-lo. E quando se revela, desdobra-se em novos paradoxos. Um deles é que desejamos ser amados, mas também desejamos que a pessoa amada nos ame em condição de liberdade para exercê-lo. Em outras palavras: que seja livre, e, assim sendo, que nos eleja para amar. Se não formos escolhidos, caímos em sofrimento. Ao mesmo tempo, conquistar daquele que nos recusa é desafio tão sedutor e apaixonante!... A excitação de ganhar o prêmio de ser amado por quem era livre para nos rejeitar pode usurpar o lugar das motivações iniciais em direção à experiência alentadora e menos sobressaltada de amar e ser amado.

Podemos pensar n’alguém que deseje ter borboletas em seu quintal. Como realizar o projeto? Se recolher borboletas pelos campos e soltá-las no quintal, provavelmente, irão embora em seguida. Se prendê-las em redomas, poderão morrer. Redomas especiais podem assegurar sua sobrevivência. Mas logo perderão a graça, pois já não estarão em liberdade – afinal é preciso que, em estado de liberdade, escolham permanecer por perto... Para ter borboletas no quintal é preciso tomar outras providências, que não sair à sua caça, ou preparar alçapões para apanhá-las: é preciso plantar flores, regá-las, adubar a terra, cuidar da grama, abrir as janelas, arejar os cômodos da casa, esperar pelo sol... Afinal, sem sol, não há borboletas... Com sorte, elas aparecerão, e quem sabe até escolham ficar voejando por ali. Passados os primeiros momentos de aproximação, e conquistada a confiança, podem mesmo decidir depositar os ovos aos cuidados do seu jardim.

Nessa etapa, será revelada a natureza lagarta das borboletas. Nem sempre estamos dispostos a conviver com ela. Em geral, quando evocamos a leveza, a graça e o colorido das borboletas, não levamos em conta a feiura das lagartas. Nunca ouvi alguém dizer que desejasse ter lagartas no seu jardim. Mas borboletas, sim...

Acontece de chegar o dia quando nos deparamos com a natureza lagarta da pessoa amada. Ela está ali, disponível para nos amar, e suas feições já não são de borboleta. Nesse dia, esmorecida a paixão, desfeita a embriaguez da conquista, restam alguns resíduos da ressaca. Olhamos o ser amado-lagarta, e nos perguntamos se ainda há amor. Somos hábeis em esquecer que também temos a nossa própria natureza lagarta, igualmente manifesta, igualmente voraz. Igualmente repulsiva.

A impaciência pode nos fazer esquecer que é necessário tempo para que os ciclos se cumpram; é preciso tempo para que os jardins floresçam, e as borboletas se aproximem; é preciso tempo para que elas estabeleçam vínculo com o lugar, não mais se assustem com a nossa presença; e também para que coloquem seus ovos; os ovos também precisam de tempo – e sol – para descascarem as lagartas – nem sempre tão feias, afinal; e mais tempo será necessário para que elas teçam seu casulo, e se recolham a ele, iniciando a grande transformação. Só então, renascerão borboletas...

Deveria haver um único nome para esse ser borboleta-lagarta-borboleta-lagarta... Deveríamos ter espelhos próprios para vislumbrarmos as faces da nossa natureza lagarta. Imaginar que sejamos sempre borboleta, ou fixar o investimento do amor nas asas coloridas e ágeis das borboletas da pessoa amada é perder de vista os ciclos mais amplos e complexos dos tempos, das transformações.

Sobretudo, é perder de vista que é preciso esperar pelo sol. E ele virá, mas só depois de cumprida a noite. Onde estão as borboletas durante a noite? O que fazem as lagartas no escuro?

Para encontrar o seu amor, cultive flores por onde andar. Para viver o seu amor, cuide das crisálidas, pacientemente. E deixe entrarem o sol e o vento pelas janelas abertas. Quando for noite, proteja os sonhos – eles também podem voar, ou ainda transformar-se em pesadelos medonhos... Mas nunca se esqueça: tudo oscila nos ciclos, tudo passa e tudo volta, lagarta-borboleta-lagarta-borboleta...