sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Um plantador de árvores, e uma vereda de ipês


Minha palestra era sobre relações entre cinema e educação. O encontro foi à noite, e os estudantes vinham de um dia de trabalho. Minha preocupação era a de assegurar que minha fala não fosse enfadonha, para mentes cansadas. Durante algum tempo, falei sobre o tema que me apaixona, e também sobre os outros fazedores de cinema, com quem tenho aprendido lições indeléveis, eles, igualmente movidos a paixão. Sentado, na primeira fileira, um senhor acompanhava minha fala, olhava as fotos e o filme, com atenção acima da média, em relação aos demais estudantes de graduação, todos em sua terceira jornada dioturna.

Quando, finalmente, eu concluí, e passamos à etapa das perguntas e comentários, ele se apresentou: sou plantador de árvores. Seus olhos tinham um brilho diferente. Mais tarde, retomou a palavra, encorajado a complementar a fala que começara um pouco antes: eu, um esquizofrênico, um aleijado e um portador de síndrome de down plantamos uma vereda de ipês; se tivéssemos dependido do poder público, não teríamos feito nada. Ah, professora, além de plantador de árvores, eu também sou poeta.

Depois soube que ele era engenheiro e, em razão de escrever poesia, e ter uma pequena editora, começara a fazer o curso de Letras.

No dia seguinte, pela manhã, antes de partir, pedi para passar na alameda, a ver os mais de 80 pés de ipê. O motorista me explicou que eles não estavam mais floridos. Eu sabia que não, àquela época do ano. A floração acontecera já há coisa de dois meses. Mas eu queria ver as árvores. Ao longo da estrada, cobrindo uma calçada onde a população faz caminhada, os ipês verdejam. O motorista lembrou o nome do poeta plantador de árvores, e comentou: ele não bate muito bem da cabeça. Depois ponderou: ele é engenheiro, muito inteligente, estuda muito; acho que ficou assim de tanto estudar... Já na rota de saída da cidade, completou: se todo mundo fizesse o que ele fez, a cidade estava muito melhor...

Que haja mais poetas plantadores de árvores que não batem bem da cabeça!

Pela estrada, seguimos ouvindo uma seleção de músicas do melhor estilo sertanejo universitário.






Aforismos do sertanejo universitário


Eu vou pegar um tijolo, e nesse tijolo eu vou escrever a palavra SAUDADE. Depois eu vou pegar esse tijolo e mandar na sua cara, prá você ver o quanto que a saudade dói, sua BANDIDONAAAAAAAAAA!
(João Carreiro e Capataz)

Minha criação é xucra
A verdade ninguém furta
Sou bruto, rústico e sistemático
(João Carreiro e Capataz)

Aqui do meu lado tá bagunçado, mas tem gerência.
(João Carreiro e Capataz)








terça-feira, 27 de outubro de 2015

Motivo (Cecília Meireles)




Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.


Cecília Meireles
 MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.










sábado, 24 de outubro de 2015

Violeta e ensaios proto-filosóficos




p/ Julio


No jardim da minha casa de infância, num canto da calçada havia um canteiro de violetas mimosas. As folhas arredondadas, em tom verde-escuro, sobrepunham-se umas às outras, ocultando as florinhas lilases que se abriam mais próximas ao chão. Encontrá-las fazia parte do encantamento e dos mistérios da vida.

Elas estavam lá, eu sabia, ao alcance da mão. Mas eu preferia imaginá-las de outra forma: ocultas, por detrás das folhas, o que se passava com elas ficava sempre fora do meu alcance. Eu ficava observando as folhas, tentando adivinhar o que estivesse a acontecer nas regiões de sombra, que eu não conseguia ver. Se, num gesto rápido, eu afastasse as folhas, de pronto o que quer que estivesse se passando ali, desapareceria, e já seriam outros os processos deflagrados. De pouco adiantaria eu afastar as folhas de modo discreto, sem brusquidão: tampouco eu desvendaria o que sucedia na sombra, fora do alcance dos meus olhos, pois a circunstância se teria rompido.

Por isso as pequenas florinhas, por tão pequeninas que fossem, eram também portadoras de um mistério capaz de enredar minha atenção durante boas fatias do meu tempo de infância: estavam ali, ao alcance da minha mão, e ao mesmo tempo não. Eram frágeis, mimosas, e ao mesmo tempo capazes de escapar a qualquer captura, a qualquer determinação. Eu as podia ver desenvolverem-se. Era eu quem as regava, todos os dias. Mas não podia suspeitar o que se passava com elas, sob as folhas revestidas de verde-escuro. Jamais o saberia...







terça-feira, 20 de outubro de 2015

os 100 anos de meu pai

p/ Seu David

Hoje meu pai faria 100 anos
Daqui 10 anos, eu estarei com a idade que ele tinha quando partiu
Foi bem pouco o tempo de convívio, esse nosso

Mas hoje eu posso dizer que meu pai é centenário
E isso vibra em mim uma estranha inteireza
Uma alegria vinda de fonte não sei qual

Terra Gwayá, 20 de outubro de 2015





sábado, 17 de outubro de 2015

Prêmio de Popularização da Ciência 2015 - SBPC/GO

Minha homenagem à Profª Noeli, à Profª Janieire, e às minhas sempre queridas Ana Priscilla F. Azevedo e Nanda Amorim.

Acaba de ser divulgado o resultado da segunda edição do Prêmio de Popularização da Ciência 2015, promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - Regional Goiás (SBPC/GO) divulgou o resultado do 2º Prêmio SBPC/GO de Popularização da Ciência - 2015.

Na área de Música e Artes, o primeiro lugar ficou com Janiere Rodrigues Rosa Biano, orientada pela professora da FAV, Noeli Batista dos Santos, com a pesquisa "Palavras de Marias e João - experimentações com materiais reutilizáveis no ensino de Arte".

Parabéns à Janieire Rosa pelo belo trabalho, pela dedicação e persistência; e à Profa Noeli, sempre presente, atenta, e sensível, engajada com a qualidade acadêmica e da aprendizagem dos nossos estudantes.

Minha alegria é multiplicada, pelo fato de que temos aí um importante indicador de qualidade em relação ao curso de Licenciatura em Artes Visuais, considerando ser esse o segundo prêmio dessa categoria que estudantes do nosso curso conquistam. No ano passado, 2014, minhas orientandas Ana Priscilla Furtado de Azevedo e Fernanda Isabel Melo de Amorim também foram premiadas com o trabalho intitulado CINEMA: DESENCADEANDO MEMÓRIAS, na primeira edição do concurso promovido pela SBPC/GO. O livro já foi publicado, e distribuído para as escolas da rede pública. Nessa primeira edição, a área de Artes concorreu com as áreas de Letras e Linguística. Nesta edição, com as Artes configurando uma área específica - como deveria ter sido desde o início -, Janieire mostrou a que veio, conquistando o primeiro lugar.

Também é importante lembrar que, nesse concurso, trabalhos de conclusão de curso concorrem, em pé de igualdade, com dissertações de mestrado e teses de doutorado. Para bom entendedor, pingo é letra!

Já disse em outro espaço: isso é o que não nos deixa desistir, isso é o que nos motiva a continuar! Que venham outros desafios!

Noeli, segura essa que é sua!





segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Marcas da voz e da risada


Cheguei ao hall da Secretaria de Cultura. No balcão, perguntei pela pessoa com quem tinha marcado horário para conversar. Havia um rapaz no guichê ao lado, também aguardando por atendimento. A menina perguntou pelo meu nome, e entrou para me anunciar. Logo o funcionário veio ao meu encontro, e falou meu nome novamente. Então o rapaz levantou-se para falar comigo, efusivo. Fora meu aluno no final dos anos 1990, na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes. Reconheceu-me pela voz. Disse que quando me ouviu, teve certeza de que me conhecia. Não poderia esquecer daquela voz ministrando as aulas. Abraçou-se afetuosamente. Também fiquei feliz pelo reencontro.

Isso tem sido mais ou menos recorrente: a voz ecoando pelos corredores a denunciar minha presença em salas e outros espaços.

Esse episódio me lembrou uma situação ocorrida no final dos anos 1980, quando eu fazia aulas de canto com um professor muito especial, o Luís Sales. Ele dava as aulas numa sala localizada num centro comercial. A sala era dividida em dois ambientes: uma antessala, e o espaço de aula propriamente dito, mais interno e preservado. Luís era desses professores que, antes de nos ensinar qualquer coisa, faz perguntas que nos forçam a pensar sobre o que queremos aprender. No primeiro dia de aula, ele me perguntou porque eu queria fazer aulas de canto, e porque eu queria cantar. Pega de surpresa (eu já fizera aulas de canto com outros professores que nunca perguntaram coisas assim...), inventei uma resposta. Confesso que não fiquei convencida dela. Talvez nem ele. Até hoje essa pergunta me acompanha, já congregada a uma multidão de outras perguntas que vão se multiplicando.

Pois bem, naquele dia, ele propôs fazermos um exercício de projeção da voz. Minha aula ocorria no início da noite, quando a maior parte dos escritórios localizados naquele andar já se haviam fechado. A porta da antessala permanecia entreaberta para a circulação de ar, e nós trabalhávamos na sala interna. Então, ele me passou uma linha melódica, que eu deveria cantar em vários tons, com o objetivo de furar a parede à frente, mantendo o controle da voz: sem gritar, afinada, limpa, etc. Seguimos brincando com o exercício. Amiúde ele me interrompia perguntando: Como você fez isso? Ficou bom! Repita! Essa maneira de ele conduzir o processo fazia com que eu observasse com mais atenção o modo como eu acionava a voz, tensionando ou relaxando músculos, impulsionando a respiração, enfim, sem perder de vista o objetivo de furar a parede, por mais absurdo que pudesse parecer.

A certa altura, alguém chegou à porta da antessala. Uma moça, muito educada, pediu licença para falar com ele. Disse que a música cantada estava muito bonita. Mas eles estavam em reunião e, em alguns momentos, estavam com dificuldade para ouvirem-se uns aos outros, do outro lado do corredor, em função do volume da minha voz. Pedia para, se possível, fecharmos a porta da antessala. Eu levei um susto, e ele voltou sorrindo, com ares de vitória: Viu, você conseguiu, furou a parede com a voz!

Voz e risada, em mim, são parceiras antigas... Volto ainda um pouco mais, no tempo, ao início dos anos 1980. Num teatro, enquanto aguardava o início de um espetáculo de cuja equipe técnica eu tomava parte, celebrava o reencontro com uma antiga colega do ensino médio. Ela era muito atenta às regras de cortesia e elegância. Em meio à conversa, escapou-me uma dessas risadas que me crescem por dentro, até chegar o momento de eclodir. E o fazem sem pedir permissão. Escancaram-me a boa, sacodem-me o corpo, e seu som se espalha sem controle. Nem sempre me dou conta dos efeitos que elas produzem à minha volta. Por vezes, preocupo-me com isso... depois esqueço...

Naquela situação, a eclosão da risada resultou numa delicada repreensão por parte da minha antiga colega. Ela solicitou, com um gesto, que eu me contivesse um pouco. Olhei à volta, ainda sob o efeito da reverberação da risada. Logo foi preciso que eu retomasse meu posto para o início do espetáculo. As demais risadas em processo de gestação, em mim, estavam um pouco inquietas, sem saber seu eu tomaria alguma providência para inibi-las. Na verdade, nunca consegui fazê-lo.

Talvez por isso mesmo seja tão recorrente eu ser encontrada ou reconhecida pelas pessoas a partir da minha voz que pode até furar paredes, embora eu não saia por aí falando aos gritos, ou pelas eclosões de risadas que me escapam de chofre, espalhando-se pelos ambientes onde eu esteja, a denunciar minha presença...








sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Aniversário


Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

[473]

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...











domingo, 4 de outubro de 2015

Um cão para o menino



Domingo calorento. A família foi passear na feira de artesanato. Aproveitaram para ouvir histórias contadas pela Glorinha Fulustreka, com seus baús encantados, de onde se tiram livros, lagartas, boiungas, bolos da macaca, poesia, e tantas outras tranqueiras. O pai, a mãe e a avó sentaram-se sobre os panos recortados, distribuídos no chão, estrategicamente, com pequenas trovas manuscritas pela Glorinha. O menino, com seus cerca de 8 anos, ouviu um pouco das histórias, levantou-se, sentou-se, levantou novamente, e se sumiu entre os movimentos das gentes, entre as bancas e os demais encantamentos da feira. A mãe, o pai e a avó ficaram ali, enlevados pelas histórias. Até que o menino voltou. Trazia um filhotinho de cachorro no colo. Vinha como quem porta um bem precioso. Sentou-se, olhou para pai, mãe e avó, explicando: “Ganhei!”. Sorria com a alegria de quem se sente abençoado. Os três adultos olharam-se, quase pálidos. “Não, vai devolver! Ganhou de quem?” “Da mulher! Ali! Ela me meu. Não posso devolver! É meu! Eu vou cuidar dele”. O pai foi até o lugar apontado pelo filho. A mulher confirmou: dera o cãozinho para o menino. No domingo calorento, a família estava aumentada quando voltou da feira.









sábado, 3 de outubro de 2015

Uma flor e um cronópio para Camila






Um cronópio encontra uma flor solitária no meio dos campos. Primeiro pensa em arrancá-la, mas percebe que é uma crueldade inútil, e se coloca de joelhos junto dela e brinca alegremente com a flor, isto é: acaricia-lhe as pétalas, sopra para que ela dance, zumbe feio uma abelha, cheira seu perfume, e deita finalmente debaixo da flor envolvido em uma enorme paz.
A flor pensa: "É como uma flor".

Julio Cortázar.
Do livro: Histórias de cronópios e de famas.
 Editora Civilização Brasileira, 10ª edição, 2007.