quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Ontem conheci Jack, um cachorro surdo




Quando era professora no ensino fundamental, e também em contexto hospitalar, trabalhei com várias crianças e jovens surdos. Nunca aprendi a linguagem de sinais, mas também não tive grandes problemas de comunicação. As dificuldades são superadas quando há disposição, de parte a parte, para o encontro.

Lembro-me de um pequeno, no ensino fundamental, que também não dominava LIBRAS, mas fazia leitura labial, e falava. Era uma criança ativa, divertida, integrada. Por isso mesmo, dado a fazer estripulias. Quando alguma coisa dava errada, e ele sabia que levaria uma bronca, desviava o olhar: essa era sua maneira de romper meios de se comunicar comigo, de me dizer “não quero conversa com você”.

Talvez tenha sido a partir do que aprendi com ele, que fortaleci a ideia de que o olhar está diretamente vinculado à atitude de quem ouve, de quem presta atenção no outro, de quem não quer se desviar do assunto em pauta. Mas também ali havia vínculo, comunicação, por meio do revés, da negação.

Tenho saudades de suas invenções, e do modo sem discriminação com que as crianças se relacionavam. Na mesma turma, havia uma menina com tetraplegia. Ele gostava de brincar com a cadeira de rodas dela. Não raro, nos deparávamos com ela, apoiada de qualquer jeito nalgum banco, ou carteira, enquanto ele fazia manobras com a cadeira, para os risos dela.

Parcerias, companheirismos que tiram proveito das diferenças para nos fazer maiores como pessoas. Foi mais ou menos isso que me chamou a atenção no diálogo entre a moça que vinha pela calçada, puxando um cão branco, grandão. Ele insistia em ficar para trás, farejando plantas e troncos de árvore. Ela queria seguir. Puxava, reclamava com ele, que olhava para todos os lados, menos para ela. Ri-me com a cena. Perguntei pelo nome dele. Ela me disse "é Jack, mas ele é surdo, não adianta você chamar; é surdo desde que nasceu!"

Então eu soube que o Jack é conhecido por todos na vizinhança, referido pelo humor e estripulias que protagoniza. Chama a atenção o modo como ele se comunica com a moça com quem convive. Ele a compreende, não se sabe como. Ele sente os humores dela, reage a eles. E quando não quer, desvia o olhar. Por vezes, olha fixo nalguma direção por muito tempo, enquanto ela fala com ele. Eventualmente, olha para ela com o rabo dos olhos, rapidamente, e retoma o olhar fixo para longe dela. Noutras vezes, olha em todas as direções, menos na direção dela. Até que decide, voltando-se para o seu lado, e seguem, juntos, caminhando e brincando. Ela, feliz, com seu amigo. Ele, grandalhão, parceiro, divertido. Amigos no que há de semelhança, nas diferenças e nas divergências. Simples assim.





quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Das insignificâncias. Ou: Presente de Natal

p/ Néia






Já quase à hora de ir embora, ela lembrou que tinha trazido “uma coisa” para mim. E mostrou um copinho descartável de café embrulhado num pedaço de plástico branco, meio rasgado. Segurava com cuidado aquela fragilidade. Tinha vindo de ônibus, transportando aquilo. Eu olhei, sem entender do que se tratava. Ela começou a explicar que o marido tinha limpado umas lâmpadas, e ela se lembrou de mim. Aí pensou que eu poderia fotografar. Enquanto ia falando, tirou o plástico do copinho, e derramou o conteúdo sobre uma folha branca. Os insetos secos se acomodaram ali, uns por cima dos outros. Tinham morrido nos embates com as lâmpadas de sua casa. Retirados de lá por seu marido, ela os recolheu. Sob sua tutela, nenhum se quebrara, ou fora danificado. Seus olhos brilharam, me olhando, à espera da minha reação. Eu fiquei ali, com a respiração em suspenso. Não tenho dúvidas: ela bebeu água da mesma fonte que Manuel de Barros. Então ela foi me mostrando cada um, dos maiores aos mais pequeninos, quase indecifráveis. Olha a cor deste! Olha a asinha deste outro! Ela foi olhando cada um como se visse pelos meus olhos. Ela pensou que eu poderia fotografar cada um, com aquela câmera que fotografa as coisas pequenas. As insignificâncias... Mas a poesia estava era ali, no seu olhar, no seu gesto, no seu encantamento. Depois ela se riu: Olha só, o presente que eu trago para você!

Eu não poderia estar mais grata.







domingo, 9 de dezembro de 2018

Por mais aniversários errados, pela diversidade de pensamento, pela inquietude.


p/ a sempre querida menina Helô

Tenho a honra de ter conhecido pessoalmente Heloísa Helena Oliveira Buarque de Hollanda, a professora Heloísa Buarque de Hollanda, ou apenas e afetivamente Helô, num percurso que se iniciou há pouco mais de duas décadas. Eu tinha iniciado meu mestrado, quando fui participar do Encontro da ANPEd, em Caxambu. Ela era a conferencista principal, responsável pela abertura do evento. Aqueles dias foram marcantes, para mim. Minha orientadora de mestrado, uma mulher também inesquecível, a professora Iria Brzezinski, apresentou-me, então, Mariazinha Fusari, que veio a ser minha coorientadora. Uma mulher forte e doce, bela, de quem não me esquecerei. Mas, antes de ser apresentada a ela, conheci as palavras e a força da Helô, numa palestra pronunciada a um auditório lotado. E depois pude fazer uma fotocópia do texto no qual se baseou sua fala. Não me lembro mais dos detalhes de seus argumentos, mas me lembro do impacto, das reverberações em meu pensamento. Também ela era forte, desafiadora, ao mesmo tempo que bela, sedutora. Descaradamente dada a transgressões da língua, do pensamento, das epistemologias. Encantadora.

Pouco mais de uma década depois, já na condição de professora numa universidade federal, e num programa de pós-graduação, fui fazer meu primeiro estágio pós-doutoral no Programa Avançado de Cultura Contemporânea, o PACC, na UFRJ. Tratava-se de um programa criado e coordenado por ela, voltado para os Estudos Culturais. No ambiente universitário, esse foi um dos espaços mais radicalmente abertos à diversidade, à pluralidade de pensamento de que tomei conhecimento. Um espaço díspar, capaz de sobreviver às crises, porque construído para viver as crises, e produzir pensamento e aprendizagens a partir delas.

Naquele período, ela estava entusiasmada com a criação de um projeto de extensão, o Universidade das Quebradas, voltado para a formação de lideranças culturais vindas das comunidades pobres, de grupos sociais que dificilmente teriam acesso à universidade pública. Lembro-me dela, radiante, brincando com a ideia de quebrar os muros da universidade, trazendo essas pessoas para compartilharem conhecimentos e fazeres e saberes nos palácios da cultura. No Palácio Universitário da Praia Vermelha, mais especificamente, onde, à época, funcionava o PACC.

Desde então, sou tomada de admiração, respeito e afeto pela inquietação, pela capacidade de lidar com os embates, pela força da curiosidade e das perguntas de Helô menina, mulher, intelectual ímpar.

Em abril deste ano, 2018, estive em sua casa. Tive o privilégio de participar da comemoração de um aniversário errado celebrado entre ela e os netos. O aniversário errado é de ninguém, e por isso mesmo é de todas as pessoas. É disposição para celebrar a vida. Depois da festa, os pais e as mães foram chegando, para buscar as crias. Algumas das crianças ficariam para dormir com a avó. Filhos, filhas, noras genros e agregados conversavam sobre vários assuntos, enquanto os netos e as netas corriam pela casa. Uma nora delongou-se um pouco mais, com ela, ouvindo-a falar sobre seu projeto: as escritoras feministas. Lembro-me do brilho em seus olhos. Helô estava imersa num sem número de livros, lendo, apaixonada pela diversidade e força da nova geração de feministas. Aprendia com elas, como uma criança vai desbravando o mundo. Estava, então, em plena função de estudo e escrita do trabalho que resultaria no livro “Explosão feminista”, publicado pela Companhia das Letras.

Fui surpreendida, nesta semana, por uma mensagem dela, na plataforma do Facebook, manifestando-se, de modo sempre elegante, sensível e sábio, sobre alguma tomada de posição supostamente “errada” dela, em relação ao conteúdo de seu livro. Não entendi muito ao certo do que se tratava, mas chamou-me a atenção o teor do texto, e o fato de ser, aquela plataforma, um espaço no qual ela pouco se manifesta. Se ela vinha, a público, posicionar-se daquela maneira, o que teria ocorrido? Não demorou para que eu começasse a receber mais mensagens, algumas de apoio, outras com críticas muito duras a ela.

Não vou alimentar os rumos que a discussão tem tomado nas redes sociais. Não vou me colocar a serviço de quem esteja aproveitando esse trabalho de Helô para ganhar espaço no palco. Se há algum traço que marque as lutas feministas nesta década (como de resto as demais lutas) é a baixa capacidade para lidar com as divergências, com as discordâncias (apesar de se pronunciarem, recorrentemente, palavras e expressões tais como "diversidade", "direito à diferença", etc.). Parece-me que os recortes com ênfases em especificidades de grupos acabam gerando perspectivas menos capazes de lidar com pontos de vista diversos. Talvez o que tenhamos que aprender com o livro de Helô tenha início em seu conteúdo, mas esteja principalmente nos desdobramentos decorrentes, no que ele está provocando depois de sua publicação. Sim, talvez as reações a ele tenham a potência de desvelar a face, ou as faces dos feminismos em curso, neste momento.

Já tratei de adquirir meu exemplar, sem errata, sem correções. 

Quero celebrar mais aniversários errados. Você me chama, Helô? Obrigada, minha querida, por ter propiciado vivenciar a beleza e a intensidade de espaços tão radicalmente abertos à diversidade e à divergência!



Em tempo 1: se você, leitor, leitora, está pensando na possibilidade de algum vínculo familiar entre ela e Chico Buarque de Holanda, engana-se. O Hollanda dela é com dois éles (LL), o do Chico é só com um. A irmã dele, cantora e compositora, é Miúcha. A propósito, ela não é descendente da família real, como andaram dizendo por aí... (affff!)

Em tempo 2: eu acho que você deveria ler o livro dela, “Explosão feminista”, antes que seja tarde! Pronto, falei.

Em tempo 3: o link para página da Helô: https://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/









domingo, 2 de dezembro de 2018

1511, Aymaco: Becerrillo (Eduardo Galeano. Memoria del fuego I Los nacimientos)




La insurrección de los caciques Agüeynaba y Mabodamaca ha sido aplastada y todos los prisioneros han marchado al muere.

El capitán Diego de Salazar descubre a la vieja, escondida en los matorrales, y no la ensarta con la espada.

– Anda – le dice–. Lleva esta carta al gobernado, que está en Caparra.

La vieja abre los ojos de a poco. Temblando, tiene los dedos.

Y se echa a caminar. Camina como niño chico, con bamboleos de osito, y lleva el sobre a modo de estandarte o bandera.

Cuando la vieja está a distancia de un tiro de ballena, el capitán suelta a Becerrillo.

El gobernador Ponce de León ha ordenado que Becerrillo reciba el doble de paga que un soldado ballestero, por descubridor de emboscadas y cazador de indios. No tienen peor enemigo los indios de Puerto Rico.

La ráfaga voltea a la vieja. Becerrillo, duras las orejas, desorbitados los ojos, la devorará de un bocado.

– Señor perro – le suplica–, yo voy a llevar esta carta al señor gobernador.

Becerrillo no entiende la lengua del lugar, pero la vieja le muestra el sobre vacío.

– No me hagas mal, señor perro.

Becerrillo husmea el sobre. Da unas vueltas en torno a esa bolsa de huesitos trémulos que gime palabras, alza una pata y la mea.




domingo, 11 de novembro de 2018

Nota de passagem: em memória de Seu Manoelzinho



p/ Seu Manoel Loreno, in memoriam 



Desde então, passaram-se já pouco mais de 10 anos. Eu soube de seu trabalho por meio das mídias. Algum noticiário de entretenimento veiculou uma entrevista com ele, falando sobre seus filmes. Era um homem de estatura pequena, olhos miúdos e atentos, uma expressão alegre, entusiasmado com seus projetos. Tinha carisma, e era garantia de audiência.

Assim, quando esbocei meu projeto de pesquisa para pós-doutoramento, incluí o trabalho do Seu Manoel Loreno entre aqueles que eu gostaria de conhecer, para pensar outras vias de construção narrativa, fora dos circuitos dominantes, fossem os comerciais, fossem os mais intelectualizados ou artísticos. Seu trabalho figurou, no mapa, ao lado do trabalho do Seu José Zagati, o catador de sucatas amante do cinema, em Taboão da Serra, do Seu Simião Martiniano, o camelô do cinema de Jaboatão dos Guararapes e Recife, e de Afonso Brazza, o Rambo do cerrado, do Gama, no Distrito Federal, este já falecido no início dos anos 2000.

O primeiro contato com Seu Manoel Loreno foi por telefone. Já não me lembro ao certo como eu o fiz, buscando informações na Prefeitura de Mantenópolis, e outras informações conseguidas na internet. Encomendei-lhes alguns filmes, que recebi pelo correio. Assim, quando fosse ao seu encontro, já conheceria um pouco de sua produção. Em agosto de 2009, seguimos, eu e o Prof. Bamberg, de avião até Vitória, no Espírito Santo. E de lá, continuamos, de carro, até Mantenópolis, no extremo oeste do Estado.

Foi nosso primeiro contato com ele, e com a comunidade daquela cidade pequenina, acolhedora, cenário de seus filmes, fonte de inspiração para suas histórias. Durante os dias em que estivemos ali, conhecemos alguns sítios onde foram gravadas cenas de seu último filme, O homem sem lei, de 2006. Conhecemos, também, o documentário O Sonho de Loreno, de Alana Rosa Batista Almondes, que foi responsável por dar a conhecer o trabalho de Seu Manoel aos meios de comunicação.

Os professores Aluísio e Clébio, à época ligados à Secretaria de Cultura do município, foram incansáveis no sentido de criar as condições para que tivéssemos acesso às informações, conhecêssemos as pessoas, e, sobretudo, pudéssemos acompanhar o Seu Manoel, ouvindo suas histórias, aprendendo com ele.

Dois anos depois, nós retornamos a Mantenópolis. Na ocasião, queríamos acompanhar os trabalhos de gravação de seu novo filme. O título era alguma coisa como: Um Manoelzinho é bom, dois é demais. E contava a história de um Manoelzinho que se via às voltas com os problemas causados por um sósia, ou um clone seu, que era mau caráter. Esse filme nunca foi finalizado. O professor Clébio Saldanha já estava vinculado ao Museu Histórico de Mantenópolis, e continuava buscando alternativas para assegurar suporte ao Seu Manoelzinho, para lhe assegurar condições de continuar produzindo, e mostrando seus filmes à comunidade.

Somos muito gratos ao professor Clébio por ter, no decurso do tempo, nos enviado informações, vídeos, notícias sobre os caminhos de Seu Manoel. Foi ele, também, que nos enviou, ontem, a notícia do falecimento do nosso cineasta, este fazedor de filmes cuja produção marca um tempo, uma visão de mundo, um modo de estar no mundo cuja potência é transformadora.

Há pesquisadores e profissionais da mídia que classificaram seu trabalho como cinema de borda. Afora as discussões teóricas a respeito, peço licença para discordar. O trabalho de Seu Manoel Loreno jamais foi de borda. Ao contrário: ocupou o centro da produção cultural de Mantenópolis durante quantos anos. Foi capaz de mobilizar sua comunidade, de levar filmes a territórios desprezados pelas políticas públicas, pelos circuitos comerciais e pelos projetos intelectualizados do cinema. O trabalho de Seu Manoelzinho teve a potência que a maior parte dos trabalhos veiculados em festivais de cinema não têm, embora tragam a chancela dos supostamente cinemas de centro porquanto chancelados por autoridades da área: críticos de cinema e de arte, produtores, professores, etc. Seu Manoelzinho passou ao largo disso tudo, para contar suas histórias, para fomentar processos criativos junto à sua gente, a despeito da precariedade de equipamentos e das condições de realização. Mais que isso: ele fez da precariedade uma aliada, o ponto forte dos modos de operacionalização de seu trabalho.

Que possamos aprender mais com pessoas como Seu Manoel Loreno. Que trabalhos como o dele se multipliquem, em ramificações cada vez mais potentes.

Sou grata pelo privilégio de tê-lo conhecido, e à sua família, e aos seus amigos.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Bordados com fios de afeto











A Oficina dos Fios é uma disciplina de Núcleo Livre que nasceu de partilhas e experiências coletivas envolvendo processos de criação no encontro entre pessoas. É na possibilidade do encontro que reside a poesia. A partir daí os fios conduzem a experiência, nos bordados, na tecelagem, no tricô, no crochê, pelos caminhos, pelos desvãos...

No decurso desses 10 anos, a cada oferta (sem muita regularidade...), ela toma feições distintas, propicia partilhas novas, celebrações sempre diferenciadas.

Nesta última quarta-feira, dia 7 de novembro, tivemos o privilégio de receber a Prof.ª Julia Mariano com um grupo de estudantes do curso de Cinema e Audiovisual da UEG, que trouxeram suas pesquisas sobre artistas cujos trabalhos envolvem fotografias, bordados e outras manualidades. E propuseram uma oficina sobre fotografias bordadas.

Foi uma tarde tão especial, inesquecível, com transbordamentos de sensibilidade, afetos, encantamentos. Um presente.

Que nos seja dada a possibilidade de exercitar encontros e compreender esses momentos como exercícios de poesia que independem dos produtos finais. Que a ética e a estética desses encontros orientem nossos caminhos, conduzidos por fios que bordam e rebordam sensibilidade.

Obrigada, Prof.ª Julia, Hal, Karen, Halanda e Leo!







sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Festa de anos


Para César Guinda








 




Nunca consegui entender o que motiva as pessoas a parabenizarem os aniversariantes. Por que parabéns? O que terão feito os aniversariantes que justifique serem parabenizados? Será por terem conseguido estar vivos até ali? Ou por terem sobrevivido a mais uma rodada completa da Terra em torno ao Sol?

A contagem do tempo também é coisa que me intriga, dada sua arbitrariedade, e a precariedade de sustentação, embora seja elemento central na organização da civilização de matriz ocidental, europeia, atualmente estendida aos quatro (ou quantos sejam) cantos do pequeno planeta em que vivemos.

Pois bem, é bem assim que cumpri 56 anos. Seja lá o que isso signifique. Já há algum tempo tenho vivido esse momento de marcação do tempo de modos distintos, refratários aos modos digamos que considerados usuais de celebração. Tem sido divertido. Quando não, tem propiciado pensar essas e outras questões sobre a existência.

Neste ano, meu aniversário ocorreu numa quarta-feira, dia em que, neste semestre, leciono pela manhã e pela tarde. No turno vespertino, ministro uma disciplina intitulada Oficina dos Fios, na qual experimentamos compartilhar aprendizagens que envolvem bordar, tecer, fazer crochê, há quem faça tricô, macramê. Trata-se, afinal, de uma oficina.

Foi pensando nela que meu tão querido amigo César Lignelli, professor do curso de Artes Cênicas da UnB, fez uma proposta no mínimo instigante, motivadora. Ele vem construindo uma performance/espetáculo/celebração/festa/sabe-se-lá-o-quê intitulada DeBanda. Nela, ele veste, literalmente, um instrumento que vem sendo inventado há não-sei-quanto-tempo, e que nunca est(ar)á pronto. Atualmente, pesa uns 30kg. Instalado às costas, tem fios ligados aos pés, joelhos, dedos das mãos, cotovelos. Assim, diferentes instrumentos sonoros são acionados conforme sua movimentação. Ele opera, ainda, duas sanfonas, conforme a cena, além de uma sirene.

Mas não se trata de mera execução do instrumento, o que já seria uma tarefa exaustiva. Ele conta uma história sem texto, para a qual constrói personagens distintos, que assumem posições antagônicas entre si, chegando a lutar. Há paixão, há conflito, há tragédia, mas também pode haver recomeço. Mais que isso, ele estabelece comunicação contínua com o público presente, dialoga, divertem-se. É um trabalho de Sísifo... porquanto louco, interminável, exaustivo. Mas, talvez por isso mesmo, apaixonante, comovente, capaz de encantar.

Todo o equipamento com que trabalha, e quantas outras tranqueiras de viver e inventar o viver, são alojados num motorhome, com o qual anda para cima e para baixo, na cidade de sua residência, ou em viagens por aí... Entre o final de 2017 e início de 2018, ele, com a família, percorreu 20.000km pela América do Sul, fazendo apresentações em praças, oficinas, quintais, e outros espaços nem sempre entendidos como destinados a produções teatrais-cênicas-musicais-performáticas-etc.

Sua proposta para a Oficina dos Fios foi que bordássemos um estandarte para integrar o espaço teatralizável de suas atuações. Lançado o desafio, combinamos que ele viria à nossa oficina, para nos mostrar o DeBanda. Equacionando as datas, a melhor mostrou-se justamente no dia de meus anos. Quase não me contive de tanto contentamento pela coincidência. Tomei a oportunidade como um presente.

Pouco depois das 13h, ele chegou à faculdade, vindo de 200km de estrada. Às 14hs, o grupo que integra a oficina foi até o caminhãozinho para conhecer a casa que anda, e ajudar a levar os equipamentos todos para a Oficina. Recuaram-se as mesas, para abrir uma clareira em meio à sala. Ajudou-se o artista a vestir o instrumento. Ele foi explicando cada fio, e tirando sons do instrumento múltiplo-nunca-acabado. Até que ele se levantou, e começou a dar lugar às personagens, e contar uma história performada-musicada-dançada-compartilhada. Encantamento e insanidade.

Afinal, “Sem a loucura que é o homem mais que a besta sadia, cadáver adiado que procria?” (Fernando Pessoa).

Ao final da apresentação, conversamos sobre o que vivemos ali: nós, da oficina, ele, e suas personagens. Depois reunimos as pessoas que vão trabalhar no estandarte, para planejarmos o trabalho. E prosseguimos, cada qual com seus fios, uns bordando, outros tecendo, outros tentando fazer crochê. Todos enleados nas tramas de nossos sonhos, desejos, desatinos. 

Quantas vezes, nos decursos de nossa vida, encontros tão intensos e especiais ocorrem? Não são muitas. E são sempre inesquecíveis.

César, querido, obrigada pela festa. Não importa a contagem dos anos, nem os marcos tão precários das repetições dos ciclos. Em qualquer data, eu não poderia ter recebido presente mais nobre e valioso!








quarta-feira, 26 de setembro de 2018

A vida é precária




Quando o semáforo acende a luz vermelha, e o fluxo de carros para, em aguardo, a mulher rapidamente começa a dependurar no espelho retrovisor de cada um deles um pacote de balas refrescantes, com um cartãozinho que fica na direção do olhar do motorista. Nele, está escrito o pedido de ajuda em dinheiro. Ela calcula aproximadamente o tempo de que dispõe para distribuir um pacote para cada carro, em uma fileira, depois recolher um a um, eventualmente recebendo o dinheiro de alguém, antes que o sinal acenda a luz verde. Nunca vi ninguém entregando dinheiro a ela...

Hoje ela passou por mim, acomodando as balas nos retrovisores. Não demorou para que passasse correndo de volta até o início da fila de carros, e rapidamente recolhesse os pacotes, quase correndo. Imaginei a aflição dela ante a possibilidade de perder a mercadoria. Ainda teve tempo para voltar ao ponto de partida, antes que o sinal ficasse verde para o fluxo de automóveis.

Perguntei-me quantas vezes ela repetia aquele percurso, durante o tempo que fica ali, tentando amealhar alguns trocados. A roupa é escura, sob o sol intenso de quase 35ºC. Usa um chapéu também escuro, com um pano traseiro que lhe protege a nuca e as costas. A blusa tem mangas compridas, para proteger os braços. Completam o vestuário dela uma calça jeans justa, e uma sandália de plástico que insiste em lhe escapar dos pés. É o calçado com que ela alterna corridas e caminhadas rápidas nas idas e vindas, no cruzamento.

O sinal verde acendeu, e eu segui, com o fluxo dos carros. Adiante, outro cruzamento, em obras. No trânsito muito lento e confuso, as pessoas ficam ainda mais nervosas, e insistem em avançar mesmo quando isso resulta na insegurança sua e dos demais. Há poeira, terra solta, desníveis na rua, buracos no asfalto, desvio de fluxo. Em meio ao tumulto que já se vai tornando rotina, dois rapazes tentavam fazer o percurso a pé, empurrando um pesado e carregado carro para coleta de sucata. Eles foram atravessando à frente dos carros, que pararam com impaciência. O carro de mão caiu num dos buracos do desvio. Os rapazes tiveram que erguê-lo com a força braçal. Seguiram, precariamente, até sair do outro lado, quase em segurança. Na lona azul de um dos lados do carro de mão estava escrito, em letras brancas: “Deus é fiel. Tudo pode quem nele crê”.

Eles enveredaram por uma rua à direita. Eu segui o fluxo à frente e os perdi de vista.

A vida é precária... e passa que a gente nem vê...









sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Obrigado, professora!



Na cidade, multiplicam-se os cruzamentos, cheios de carros conduzidos por motoristas nervosos, inquietos a cada espera. Há fuligem no ar. Tensão.

Em muitos desses cruzamentos, nalguns horários do dia, ou da noite, artistas de rua quebram a aspereza da paisagem, com gestualidades, habilidades, bailados, artimanhas que, em breves segundos, capturam o olhar, algum suspense, algum riso, encantamentos fugazes.

Uns fazem malabarismos com facões, bolas, garrafas... Outros tocam violino. Há os que sobem em escadas sem apoio. Outros brincam com fogo, noite adentro...

Hoje pela manhã, um rapaz muito jovem trajado e maquiado para um espetáculo posturou-se, diante dos carros, dentre os quais o meu, que aguardavam o sinal verde para avançar. Ninguém estava ali ver apresentações de arte: todos tinham urgências, queriam seguir. Mas ele ignorou tal impaciência: tomou uma bola de vidro, transparente, e a colocou para bailar sobre seus braços, equilibrar-se entre as mãos, rodar sobre seu rosto. Pareciam flutuar: ele e a pequena bola, entre seus gestos ágeis, leves, precisos. 

Por um instante, esqueci-me dos automóveis, e deixei-me enlevar pela visão do rapaz com sua bola. Depois percebi que o tempo do semáforo já estava acabando, e ele prosseguia com o número, talvez também encantado com a própria dança. Busquei algum trocado na bolsa e, finda a apresentação, agitei os braços, para que ele me visse, e viesse pegar o dinheiro. 

Quando ele chegou, com um sorriso largo, eu lhe disse: “Cara, isso, da bola, é foda!” Então sua voz me soou familiar, e ele respondeu: “Obrigado, professora”, e saiu correndo. Os carros já avançavam.

Fui pega de surpresa. Professora! Sua voz, familiar, continuou reverberando nos meus ouvidos: “Obrigado, professora”, e eu comecei a chorar. Chorei como criança. Pensava no meu papel, como professora, na vida dessas pessoas. Pensava no quanto precisamos ter em vista a dimensão humana, a poesia, entre o trabalho árduo, em nossos ofícios. Pensando nisso, e entre lágrimas, segui, na velocidade do fluxo, cada vez mais distante daquele encontro.

À tarde, quando voltei, já não mais havia artistas no cruzamento. Ele concluíra a jornada do dia (do mesmo modo que a vendedora de águas de outro cruzamento, e a vendedora de docinhos num terceiro...). Sua missão fora cumprida: seu gesto e sua voz vibravam ainda em meu coração.




quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Luto pelo pé de fícus italiano





Quando cheguei à universidade, há uma década e meia, o frondoso pé de fícus italiano já estava lá, oferecendo sombra e frescor nesta terra quente e seca. Curvado sobre o pequeno estacionamento, acolhia professores e estudantes que chegavam às salas da faculdade organizadas ali, atrás do Museu Antropológico.



Há coisa de 3 meses, foi palco de um espetáculo. Abrigou as cenas de modo exemplar, e também aconchegou o público acomodado em bancos improvisadamente organizados sob sua copa. Não haveria espaço mais adequado.

Hoje voltei, para um evento acadêmico. Meus sentidos alertaram que o espaço estaria claro demais, aberto demais. Deparei-me, então, com os restos de seus troncos transformados em carvão.



Fui tomada por uma estranha sensação... Pareceu-me que vamos nos acostumando a termos tirados de nosso convívio viventes demarcadores de nossos percursos, de nossos afetos, de nosso bem-estar no mundo...

Estranho animal, esse, da espécie humana...









terça-feira, 21 de agosto de 2018

Baratas não hesitam


O acesso à garagem de baixo, no subsolo, é muito ruim. O aclive faz uma curva, de modo que, num certo ponto, uma das rodas do veículo perde o contato com o chão. Eu já vi alguns motoristas deixarem o motor morrer na subida. Quase sempre em pânico, veem o carro descer, rumo à muretinha logo atrás, em baixo.

Algumas vezes entrei e saí da garagem. Mas, depois de algum tempo, passei a sentir medo de fazer a manobra. E depois senti-me travada para realizar a operação. Ante tantas pressões de toda natureza, achei por bem não insistir em mais uma coisa que me deixava insegura, e passei a evitar a situação de ter de tirar o carro daquela vaga, mantendo-o sempre na garagem térrea, muito mais tranquila para entrar e sair.

Mas ocorreu que, num certo dia, o carro precisou ficar lá em baixo. E depois eu me encontrei sozinha em casa. Então por alguns dias me desloquei de carona, táxi, a pé, evitando ter de encarar a tal manobra.

Naquela manhã, desci para ligar o carro, antes que a bateria descarregasse. Enquanto ele funcionava, eu observei calma e longamente a rampa muito inclinada de saída da garagem, a curva íngreme que termina no portão acionado por controle remoto. Observei também todos os outros carros estacionados ali: caminhonetes, carros de grande e médio porte, mais antigos, bem novos.

Quando o motor do meu carro já estava quente, olhei-me pelo espelho retrovisor. Olhei bem fundo nos meus olhos, e perguntei: Afinal, você é uma mulher, ou uma barata? Fiz uma pausa, esperando pela resposta. Uma barata, respondi. E foi assim que, naquela manhã, eu conduzi o carro subindo aquela rampa, sem titubear. Baratas não hesitam.

A rampa íngreme pareceu uma via ampla bem pavimentada, por onde se desloca sem sustos. 

Não voltarei a ficar refém desse medo!






domingo, 19 de agosto de 2018

Maritacas e as flores do ipê rosa


As pequenas maritacas adoram saborear o pecíolo das flores do ipê. 
Têm bom gosto as criaturinhas! 
Elas arrancam a flor e, depois de comer apenas a sua base, as descartam praticamente inteiras. 
O chão se cobre em tom rosa.




sexta-feira, 10 de agosto de 2018

De viagens, pesquisas de campo e perguntas na bagagem...









Para Manuela Matos Monteiro e Joao Lafuente

Sempre me pergunto: por que viajar? As respostas prontas, essas que todos costumamos dar, não me bastam... Também me pergunto sobre as motivações que me levam a fazer trabalho de campo em minhas investigações. Tampouco as respostas recorrentes a essas questões me satisfazem. Ainda e assim, prossigo em viagens e trabalhos de campo. Mas vou atenta, supondo que viajo, e vou ao encontro de pessoas outras para, em última instância, descobrir mais sobre mim mesma. O embate com o outro, com a diferença, revela nos jogos de espelho a minha própria face. Ou me constitui.

Por volta de 2012 conheci Seu Osorinho, em Serranópolis, uma pequena cidade de certa de 8000 habitantes. Sua paixão por registrar a vida de sua comunidade e as paisagens de seu lugar em vídeo me levou até ele. Depois de estarmos juntos umas duas ou três vezes, em meio a festas da cidade, em 2015 decidi retornar à sua cidade, para conversarmos com calma sobre seu projeto, sua inserção na comunidade, suas lidas com os vídeos.

Mas decidi cumprir os pouco mais de 400km de ônibus. Assim, pensei, eu iria também adentrando, devagar, o território buscado, as suas gentes, os seus tempos, as suas falas. O horário de saída de Goiânia: 10 horas da manhã. Previsão de chegada a Serranópolis: 18 horas, fim da tarde. Ou seja, os 400km seriam cumpridos em nada menos que 8 horas de viagem. Parti.

Algum tempo de viagem, e fizemos a primeira parada para o almoço. Ainda não batera o meio dia. O restaurante de beira de estrada ficou cheio de gente. Comidas regionais, servidas em sistema de autoatendimento. Almoçamos com um olho no prato e outro no motorista que, tão logo concluiu a refeição, tomou seu copo de refrigerante, alongou os braços, e colocou-se pronto para retomar a estrada. Passou ainda na pequena rodoviária da cidade, onde alguns passageiros a mais puderam embarcar. E prosseguimos. Algum tempo depois, chegamos a Rio Verde, uma cidade de médio porte no interior do Estado de Goiás, com intensa atividade agropecuária e economia vívida. Ali, na garagem da empresa, o motorista entregou o ônibus para seu substituto, que terminaria o percurso. Alguns passageiros desembarcaram. Retomando o curso, o ônibus seguiu para a rodoviária propriamente dita, onde mais passageiros desembarcaram, outros embarcaram. Ao final, retomamos a estrada, em direção a Jataí. Trata-se também de uma cidade de médio porte, com uma cultura universitária muito forte. Àquela altura, o campus da Universidade Federal de Goiás já apresentava muita autonomia, tanto que alguns anos mais tarde iniciou o processo para tornar-se uma universidade federal independente.

Quando o ônibus chegou à rodoviária, Seu Osorinho me ligou. Queria saber em que altura eu estava, e a que horas chegaria. Expliquei que estávamos em Jataí. “Ainda!”, foi o que exclamou, a postos, a me aguardar no centro de Serranópolis. Mas, considerando que ainda demoraria, decidiu ir ter com a sua madrinha, com quem precisava tratar de algum assunto pessoal, e retornaria em tempo de minha chegada.

E assim foi: por volta das 18 horas, o ônibus encostou na pequena rodoviária, no centro da cidadela. Serranópolis localiza-se nas cercanias de um conjunto de sítios arqueológicos com desenhos que datam de aproximadamente 11000 anos. As grutas estão protegidas tão somente pela dificuldade de acesso e pelo terreno rochoso. Assim, elas não sofrem ameaças imediatas pelo avanço do plantio de soja e outros itens da agricultura intensiva.

Nos encontramos com alegria e leveza. Seguimos pela rua, eu puxando minha pequena mala, ele empurrando sua bicicleta. Conversamos sobre meu projeto, sobre seu trabalho. Combinamos que, no dia seguinte, eu o acompanharia no seu programa de rádio.

À porta do pequeno hotel, ele me olhou com ternura, mas com firmeza: o que a senhora quer saber, mesmo?

A pergunta de Seu Osorinho nunca mais se despregou de mim. Ressoa entre minhas inquietações. Reclama resposta que não consigo dar. Chego a supor que tenha feito a viagem até Serranópolis, ao encontro de Seu Osorinho, sua câmera e sua sanfona, para buscar essa pergunta, e dela não mais me desfazer.























domingo, 10 de junho de 2018

Eu e as copas do mundo de futebol...


Nasci num ano de copa do mundo. Mas ninguém da minha família se interessava pelo assunto, nem naquela, nem na copa seguinte. A primeira vez que acompanhei uma copa do mundo de futebol foi em 1970. Acompanhar não é o verbo mais adequado para definir o que aconteceu. Àquela época, eu nunca assistira a uma partida de futebol. Portanto, não sabia como funcionava, não tinha incorporado aos meus poucos repertórios a cena, o ambiente, a dinâmica, o espetáculo do jogo. Meus irmãos já moravam em grandes centros. Mas eu, ainda menina, vivia com meus pais no campo. E acompanhávamos o que se passava pelo resto do país por meio da programação de rádio. Então, a primeira vez que acompanhei uma copa do mundo, foi por meio da transmissão dos jogos pelos rádios. Ouvia o narrador, tentando imaginar o que se passava. Imaginação não me faltava. Mas era sempre difícil reconstituir mentalmente uma cena da qual eu jamais participara.

De toda sorte, eu sabia que alguma coisa supostamente importante se passava ali. No último jogo, o Brasil foi campeão. Saí à porta lateral da casa, olhei o céu cinzento, revoada de andorinhas, um abacateiro enorme à frente. Eu deveria estar emocionada. A voz do narrador estava transtornada de felicidade. Eu fiz um esforço para também me sentir assim. Confesso que foi uma atuação. Talvez meus gostos por teatro tenham começado por ali... Muitos anos depois, por vezes eu encontrava, num velho dicionário, alguns resultados de jogos daquela ocasião, que eu e minha mãe tínhamos anotado. Tinha os nomes dos países, e os gols que cada um fizera. Para mim, interessava como anotações matemáticas, mais do que qualquer outra coisa.

Não me lembro da copa de 74, nem de 78. Em 82, num dos jogos, à tarde, eu estava na universidade. Eu estava sempre por lá: desenvolvendo algum projeto, trabalhando num atelier, estudando na biblioteca, ensaiando nalguma peça... Naqueles dias de jogo era ótimo trabalhar por lá, pois ela estava vazia... Então, do meio para o final da tarde, terminadas minhas atividades, saí do prédio, para iniciar uma caminhada de uns vinte minutos até a parada de ônibus. Alguém, no prédio da música, ensaiava alguma música ao saxofone. O som atravessava o deserto das vias, e a atmosfera cinzenta da seca já iniciada em pleno cerrado. Distante, alguns fogos pipocaram, e uns gritos comemoravam algum gol. Fui seguindo meu trajeto. O som do sax foi ficando cada vez mais distante, e o sol muito vermelho na medida em que se aproximava do horizonte.

Em 1986 eu morava e trabalhava em Planaltina. Em casa, eu tinha um aparelho de televisão a válvula, em preto e branco. Lembro-me de amigos que brincavam comigo, dizendo que se fossem assistir ao jogo lá em casa, eu teria de ligar a televisão uns três dias antes. Isso porque o aparelho se demorava a funcionar, até que as válvulas esquentassem. Não me lembro de nenhum jogo da copa.

Não me lembro de nada referente à copa de 1990. Mas, em 1994, eu trabalhava numa escola parque, em Brasília. Já mais ao final da copa, a direção organizou um churrasco na escola, e os professores foram assistir ao jogo. Num dos gols, todos levantaram, pularam, se abraçaram. Eu fui abraçada em festa por um professor com quem eu sequer conversava. Foi tudo muito estranho. Senti-me, novamente, como quando acompanhei os jogos pelo rádio... Naquele ano, o Brasil foi até a final. Mas eu viajaria no dia do último jogo. Então programei o vídeo para gravar no dia e horário certinhos. A fita de VHS, com duração de duas horas, seria disparada na hora do início do jogo. Foi meu erro: duas horas depois de iniciadas as gravações, acabou-se a fita, mas não o jogo. O Brasil ganhou nos pênaltis, depois da prorrogação. Nunca rodei a fita. Nem sei onde ela foi parar. Durante a viagem, quando o ônibus entrou nalguma cidadezinha do interior de São Paulo, as ruas estavam completamente vazias. Nem os fantasmas circulavam por ela. Na rodoviária, as pessoas se apinhavam em torno aos aparelhos de televisão. Estava na prorrogação. O ônibus partiu antes dos pênaltis. Eu só soube do resultado quando cheguei ao destino final, no outro dia.

Na minha volta, um amigo deixou um recado na secretária eletrônica do meu telefone, brincando com o fato de eu não estar em Brasília para receber a seleção heroica, em seu desfile pelo centro da cidade... eu quase respirei aliviada por não ter estado lá.

Não me lembro da copa de 98. Em 2002, os jogos eram todos muito tarde da noite, muitos na madrugada. Os vizinhos não me deixavam dormir. Mas eu não consegui ver nenhum jogo. Só acompanhei os noticiários. E o número de vezes que os fogos estouravam me informavam quantos gols a seleção tinha feito. Eu só não sabia quantos tinha levado. Ao final, foi pentacampeã.

Passaram-se, depois, as copas de 2006 e 2010. Não me recordo dos jogos, nem das circunstâncias. Só chegando a 2014, com os jogos no Brasil, foi impossível passar indiferente à programação. Houve treinos de seleções em Goiânia. Em Brasília o antigo Mané Garrincha (onde, nos anos 80 e 90, participei de tantas assembleias de professores em greves e outras mobilizações...) foi transformado no mais caro estádio construído – depois tema de investigação de desvio de dinheiro e corrupção. Foi nele, também, que a seleção brasileira protagonizou o jogo quando perdeu de 7 a 1 para a Alemanha – a mesma seleção de quem ganhou, em 2002, na final.

Diz-se que o resultado de 7 a 1 deixou trauma para a torcida e os jogadores. Eu tenho muitos traumas. Com certeza não incluo o resultado desse jogo como um deles.

Nesta semana fui informada que, por força de determinação do Ministério do Planejamento, o funcionalismo público (inclusive as universidades federais) deverá suspender as atividades nos turnos quando houver jogo da seleção brasileira. O cenário político atual talvez queira tirar proveito de alguma possível boa atuação da equipe canarinho, como foi feito em 1970... Depois das manifestações políticas com o pato amarelo e as camisetas da seleção, não consigo sequer olhar para a camiseta amarela.

Está bem, este relato é também uma confissão de idade... dou-me conta de que, neste ano, completo um número múltiplo de quatro em anos vividos...
Y así vamos, adelante, sin mismo saber lo que se pasa, más allá, adónde vamos…








sábado, 12 de maio de 2018

De mulher p'rá mulher: mãezinhas



Meu carinho a algumas mulheres-mães. Por intermédio delas, a todas as mulheres.

À Néia, que neste ano teve a surpresa de ficar grávida novamente, quando seu filho caçula já tinha comemorado os 15 anos. Mas também viveu a perda de seu neném no segundo mês de gravidez.

À Julia, mamãe da Alice e da Maitê, que vão se pondo mocinhas lindas! Enquanto isso, trabalha em jornada dupla, e começa a se reorganizar para retomar os estudos!

À Adriane, mamãe inquieta que vai estrear como avó, mas continua parecendo uma menina que frequenta o colegial! Mas não se enganem: já já será doutora!

À FafaZinha, que mal acabou de celebrar o aniversário da mocinha Alice, e já está em outra jornada maternal!

À Lorena, que está trazendo o Martin na embalagem... mas a embalagem já está ficando pequena, e não demora para ele ganhar o mundo!

À Anaí, minha comadre, mãe de dois rapazes lindos, o Mateus e o Heitor, de quem tenho saudades, por não estar perto, conforme gostaria tanto!

À amada Vagna, que neste ano vai passar o dia das mães hospitalizada, depois de uma travessia difícil com alguns sustos e intercorrências; mas na próxima semana já estará em casa, novamente, com os filhos e netos e amigos e marido e gatinha e cachorro e plantinhas! Todos esperam ansiosos por você!

À Dona Alice, minha mãezinha, que vai singrando o tempo para completar seus 91 anos!