Nasci num ano de copa do mundo. Mas ninguém da minha família se interessava pelo assunto, nem naquela, nem na copa seguinte. A primeira vez que acompanhei uma
copa do mundo de futebol foi em 1970. Acompanhar não é o verbo mais adequado
para definir o que aconteceu. Àquela época, eu nunca assistira a uma partida de
futebol. Portanto, não sabia como funcionava, não tinha incorporado aos meus
poucos repertórios a cena, o ambiente, a dinâmica, o espetáculo do jogo. Meus
irmãos já moravam em grandes centros. Mas eu, ainda menina, vivia com meus pais
no campo. E acompanhávamos o que se passava pelo resto do país por meio da
programação de rádio. Então, a primeira vez que acompanhei uma copa do mundo, foi
por meio da transmissão dos jogos pelos rádios. Ouvia o narrador, tentando imaginar o que se passava. Imaginação
não me faltava. Mas era sempre difícil reconstituir mentalmente uma cena da
qual eu jamais participara.
De toda sorte, eu sabia que alguma coisa supostamente importante se passava
ali. No último jogo, o Brasil foi campeão. Saí à porta lateral da casa, olhei o
céu cinzento, revoada de andorinhas, um abacateiro enorme à frente. Eu deveria
estar emocionada. A voz do narrador estava transtornada de felicidade. Eu fiz
um esforço para também me sentir assim. Confesso que foi uma atuação. Talvez meus
gostos por teatro tenham começado por ali... Muitos anos depois, por vezes eu
encontrava, num velho dicionário, alguns resultados de jogos daquela ocasião,
que eu e minha mãe tínhamos anotado. Tinha os nomes dos países, e os gols que
cada um fizera. Para mim, interessava como anotações matemáticas, mais do que qualquer
outra coisa.
Não me lembro da copa de 74, nem de 78. Em 82, num dos
jogos, à tarde, eu estava na universidade. Eu estava sempre por lá: desenvolvendo
algum projeto, trabalhando num atelier, estudando na biblioteca, ensaiando nalguma
peça... Naqueles dias de jogo era ótimo trabalhar por lá, pois ela estava
vazia... Então, do meio para o final da tarde, terminadas minhas atividades,
saí do prédio, para iniciar uma caminhada de uns vinte minutos até a parada de
ônibus. Alguém, no prédio da música, ensaiava alguma música ao saxofone. O som
atravessava o deserto das vias, e a atmosfera cinzenta da seca já iniciada em pleno
cerrado. Distante, alguns fogos pipocaram, e uns gritos comemoravam algum gol. Fui
seguindo meu trajeto. O som do sax foi ficando cada vez mais distante, e o sol
muito vermelho na medida em que se aproximava do horizonte.
Em 1986 eu morava e trabalhava em Planaltina. Em casa, eu
tinha um aparelho de televisão a válvula, em preto e branco. Lembro-me de
amigos que brincavam comigo, dizendo que se fossem assistir ao jogo lá em casa,
eu teria de ligar a televisão uns três dias antes. Isso porque o aparelho se
demorava a funcionar, até que as válvulas esquentassem. Não me lembro de nenhum
jogo da copa.
Não me lembro de nada referente à copa de 1990. Mas, em
1994, eu trabalhava numa escola parque, em Brasília. Já mais ao final da copa,
a direção organizou um churrasco na escola, e os professores foram assistir ao
jogo. Num dos gols, todos levantaram, pularam, se abraçaram. Eu fui abraçada em
festa por um professor com quem eu sequer conversava. Foi tudo muito estranho. Senti-me,
novamente, como quando acompanhei os jogos pelo rádio... Naquele ano, o Brasil
foi até a final. Mas eu viajaria no dia do último jogo. Então programei o vídeo
para gravar no dia e horário certinhos. A fita de VHS, com duração de duas
horas, seria disparada na hora do início do jogo. Foi meu erro: duas horas
depois de iniciadas as gravações, acabou-se a fita, mas não o jogo. O Brasil
ganhou nos pênaltis, depois da prorrogação. Nunca rodei a fita. Nem sei onde
ela foi parar. Durante a viagem, quando o ônibus entrou nalguma cidadezinha do
interior de São Paulo, as ruas estavam completamente vazias. Nem os fantasmas
circulavam por ela. Na rodoviária, as pessoas se apinhavam em torno aos
aparelhos de televisão. Estava na prorrogação. O ônibus partiu antes dos pênaltis.
Eu só soube do resultado quando cheguei ao destino final, no outro dia.
Na minha volta, um amigo deixou um recado na secretária eletrônica
do meu telefone, brincando com o fato de eu não estar em Brasília para receber
a seleção heroica, em seu desfile pelo centro da cidade... eu quase respirei
aliviada por não ter estado lá.
Não me lembro da copa de 98. Em 2002, os jogos eram todos
muito tarde da noite, muitos na madrugada. Os vizinhos não me deixavam dormir. Mas
eu não consegui ver nenhum jogo. Só acompanhei os noticiários. E o número de
vezes que os fogos estouravam me informavam quantos gols a seleção tinha feito.
Eu só não sabia quantos tinha levado. Ao final, foi pentacampeã.
Passaram-se, depois, as copas de 2006 e 2010. Não me recordo
dos jogos, nem das circunstâncias. Só chegando a 2014, com os jogos no Brasil,
foi impossível passar indiferente à programação. Houve treinos de seleções em
Goiânia. Em Brasília o antigo Mané Garrincha (onde, nos anos 80 e 90, participei de tantas assembleias de professores em greves e outras mobilizações...) foi transformado no mais caro
estádio construído – depois tema de investigação de desvio de dinheiro e
corrupção. Foi nele, também, que a seleção brasileira protagonizou o jogo quando
perdeu de 7 a 1 para a Alemanha – a mesma seleção de quem ganhou, em 2002, na
final.
Diz-se que o resultado de 7 a 1 deixou
trauma para a torcida e os jogadores. Eu tenho muitos traumas. Com certeza não incluo
o resultado desse jogo como um deles.
Nesta semana fui informada que, por força de determinação do
Ministério do Planejamento, o funcionalismo público (inclusive as universidades
federais) deverá suspender as atividades nos turnos quando houver jogo da
seleção brasileira. O cenário político atual talvez queira tirar proveito de
alguma possível boa atuação da equipe canarinho, como foi feito em 1970... Depois
das manifestações políticas com o pato amarelo e as camisetas da seleção, não
consigo sequer olhar para a camiseta amarela.
Está bem, este relato é também uma confissão de
idade... dou-me conta de que, neste ano, completo um número múltiplo de quatro em anos vividos...
Y así vamos,
adelante, sin mismo saber lo que se pasa, más allá, adónde vamos…
Nenhum comentário:
Postar um comentário