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terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Primeiros apontamentos sobre God Exists, Her Name Is Petrunija



Como ponto de partida, devo dizer que o filme God Exists, Her Name Is Petrunija (com uma tradução ruim para a versão brasileira: Deus é mulher e seu nome é Petúnia) bateu fundo, em vários níveis. Em primeiro lugar, trata-se de uma história que se reporta a uma Petrunija que existe e viveu aquela situação, muito recentemente, na cidade-set do filme. A experiência para essa mulher foi violenta e traumática. Sua vida naquela cidade tornou-se insustentável e, atualmente, ela vive na Inglaterra, com identidade preservada. Na Macedônia, é simplesmente referida como “aquela mulher louca”. A diretora, Teona Strugar Mitevska, que também assina o roteiro em coautoria com Elma Tataragic, reporta, também, sua experiência tentando contar essa história, na mesma cidade, a despeito das reações dos moradores, da igreja, dentre outros.

Por que o filme tem reverberado em tantos lugares, apesar de ter sido rodado na Macedônia, a partir de uma comunidade e uma história tão particulares? Há uma frase atribuída a Tolstoi, que diz mais ou menos assim: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.” (Há outras versões para essa frase, tais como: “'Canta a tua aldeia e serás universal”, ou “Seja universal, fale de sua aldeia”). Afora discordar da pretensão de universalidade a qualquer narrativa, ou ideia, é preciso admitir: há projetos que, desde a particularidade, ou a singularidade, conseguem tocar em questões sensíveis para um gradiente maior de outras particularidades e outras singularidades. A possibilidade de produzir ressonância num número maior de pessoas e contextos resulta dessa capacidade de, ao contar uma história particular, fazê-lo deixando espaços nos quais essas pessoas consigam se encontrar. Esse é um dos méritos do filme de Teona: mulheres e comunidades da Índia e do Brasil, da Alemanha e da França conseguem ver-se em Petrunija, solidarizam-se com ela, colocam-se ao seu lado em sua saga.

O argumento do filme é consistente, e ele se desenvolve também de modo coerente, muito bem articulado, sem exageros, sem superlativos. Desde a primeira sequência, até a última.

Poderia ser um libelo feminista. Mas consegue ser muito mais que isso: escancara o domínio masculino, numa sociedade patriarcal cuja sustentação é feita também pelas mulheres. Não por acaso, as duas primeiras críticas escritas ao filme de Teona foram assinadas por mulheres, que recomendaram à diretora nunca mais fazer filmes em sua vida.

De acordo com a própria diretora, o filme trata, em última instância, da justiça. Em suas palavras, “Petúnia está atrás de justiça. E essa é uma questão que diz respeito a todos nós.” (Papo de Cinema).

Há muitas outras reverberações de Petúnia em mim. Mas preciso bem mais que dois dias para articular essas percepções múltiplas. Por ora, deixo Petúnia, pelas mãos de Teona, falar por mim.








segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Não ser feminista é similar a ser escravagista.


O feminismo é o movimento de igualdade de que estávamos precisando. Não ser feminista é similar a ser escravagista. A decência diz que é preciso vencer o lugar comum e respaldar que homens e mulheres são iguais na casa, no trabalho, nas instituições, na religião; que não pode haver normas coercitivas por costumes ou interesses. Feminismo é decência, simplesmente. Nada mais e nada menos que isso.
Pilar del Río.









terça-feira, 6 de junho de 2017

A mocinha que vende performance de antifeminista e a mulher-robô de Fritz Lang


A câmera do aparelho telefônico está criteriosamente posicionada para colocar em tela seu rosto, a parte superior do tronco e, principalmente, os gestos contundentes das mãos, com unhas cuidadosamente pintadas. E para parecer um pouco negligente, como se estivesse colocada meio ao acaso. Ela, a moça que executará a performance, conhece bem o campo coberto pela câmera, e cuidadosamente se move de modo a tirar proveito do enquadramento, com algumas saídas estratégicas, para entradas veementes em seguida. Antes de iniciar o espetáculo, os organizadores, homens, preparam microfone, fazem comentários com ela, que responde sempre afável e com a expressão de segurança, de quem sabe o que está fazendo. O sorriso breve sugere reconhecimento do terreno bem como certeza dos modos como moverá as peças para dominar a cena.

Ela calculou todos os passos para causar impacto. Polêmica é o seu principal produto à venda. Performance é sua estratégia. Por isso escolheu, para usar como bandeira, um assunto capaz de mobilizar passionalidades. Combater o feminismo pode ser uma boa pedida. Não importa o teor do seu discurso, tampouco importa se articula de modo coerente os conceitos que anuncia. Não importa se mente, ou se de fato leu todas as autoras cujos nomes brada, como se preparasse a próxima lista de bruxas que devessem ser condenadas à fogueira. Nada disso importa. Por isso mesmo, não adianta contestar seu discurso, nem contra-argumentar, nem convocar à razão. O que está em pauta, de fato, é o seu cachê, os cachês que vão sendo pagos por organizadores de eventos para públicos marcadamente masculinos (também não importa quantas mulheres deles façam parte). O valor do cachê é diretamente proporcional à sua capacidade de incitação à reação.

Por isso são vãos os protestos das feministas. Ou melhor: não, não são vãos, eles fazem parte dos cálculos da mocinha, e integram as estratégias de sua performance. Ela precisa deles, e eles são infalíveis: estão sempre lá, ou à volta. Ou mesmo estão na audiência difusa que a acompanha por meio das imagens geradas pela câmera, aquela que foi criteriosamente posicionada para transmitir sua performance online, ao vivo, e depois manter o vídeo disponível em plataformas digitais, para seus admiradores e seguidores, tanto quanto para seus adversários. Isso a alimenta. Isso alimenta sua performance. Isso alimenta seu cachê.

Seu rosto, seu gesto, sua expressão lembram-me as feições de outra mulher que marca a história do cinema: a robô que ocupou o lugar de Maria, no filme Metrópolis, de Fritz Lang. Aos que não viram o filme, faço um briefing. Metrópolis é uma cidade dividida em camadas. Cada camada é ocupada por uma categoria, posicionada de acordo com seu poder, capital econômico e importância na estrutura social. A elite habita a superfície, em palácios suntuosos; as máquinas, que são o meio de produção de riquezas, ocupam o primeiro subsolo; os operários, que operam as máquinas em jornadas extenuantes, vivem abaixo, ainda, num segundo subsolo, e nunca, mas nunca mesmo, podem emergir à superfície. Entre eles, Maria é uma espécie de revolucionária pacífica, com tintas messiânicas. Ela se esforça por agregar os operários, e defende que, por meio do amor, poderão encontrar um meio de sair daquela situação desumana e insustentável. Promete, ainda, que esse dia está por chegar. O filho do empresário principal proprietário da cidade, por acidente, acaba por conhecê-la. Quando sai à sua busca, acaba tomando conhecimento dos subsolos da cidade, e das condições miseráveis dos operários. Finalmente, a vê numa espécie de catacumba ainda mais profunda, numa de suas pregações aos demais operários. Apaixonam-se um pelo outro.

Na superfície, seu pai também é informado sobre o que se passa. Então reúne-se com o cientista, com quem arquiteta um plano diabólico: programar um robô com as mesmas feições de Maria, para ocupar o seu lugar, enquanto ela é mantida sequestrada. A robô-Maria é sensual, sedutora, participa de festas em boites para o deleite dos homens. E, quando desce à catacumba, ao encontro dos operários, no lugar da verdadeira Maria, os incita à rebelião, ao ódio. A ideia é que os operários reajam com violência, para justificar à elite combatê-los também com violência. E eles correspondem ao chamado. Contudo, a reação em massa escapa ao controle de todos. A horda não só destrói as máquinas como também coloca em risco a segurança da população, inclusive das crianças, filhos dos operários. Quando estes se dão conta, voltam-se contra a robô. Perseguem-na, e a queimam na fogueira.

Maria, libertada, consegue, finalmente, reunir-se à sua gente, e ao novo amor. Mais que isso, conquista o intento de mediar as negociações de um novo tempo. Talvez o filme se encaminhe para um final excessivamente otimista, um pouco piegas até. Talvez àquele tempo fosse necessário uma dose extra de otimismo, dadas as circunstâncias tão adversas vividas na Alemanha da década de 1920. Aos sobressaltos, entre polarizações e escapando a gestos de ódio também transcorremos os dias de hoje. Não nos faria mal algumas doses extras de otimismo e de esperança, sem perder o sentido crítico do mundo vivido.

A mocinha que se diz antifeminista prossegue em sua atuação diante da câmera e da platéia que a aplaude. O lugar onde está não se assemelha à catacumba onde Maria-robô incitou os operários. Mas a mocinha que se diz antifeminista está no auditório de uma universidade, onde, em tese, transitam os homens (sobretudo homens) de ciência. Ela, Maria-robô, foi devidamente programada por dois homens: um da ciência (frequentaria também universidades?), outro do capital (que toma as decisões; por exemplo, pode decidir pagar por uma palestra da mocinha que se diz antifeminista...). A performance da mocinha, seu olhar, seu discurso têm muitas afinidades com os da Maria-Robô. Estremeço pensando no fim dado à antagonista criada por Fritz Lang. Espero, sinceramente, que a mocinha não corra o risco de ter qualquer desfecho trágico assemelhado àquele. Mas, ao mesmo tempo, espero que a horda por ela incitada não reaja de modo a destruir conquistas frágeis que têm sido construídas a duras penas, amealhadas no decurso do tempo.

O risco está sempre ali, à frente, iminente.

Para ver Metrópolis: aqui 












segunda-feira, 10 de abril de 2017

Lolita e o cirurgião plástico. Ou: A escola psicossocial do Big Brother

Para todas as mulheres não-amélias deste "Brasil Varonil"...
e para J. Bamberg, com quem partilho esta indignação


Encontro muitas pessoas que, com ar de desdém, afirmam nem saber o que se passa no atual reality show da Globo, a décima sétima edição (já vai ganhando a maioridade civil...) do Big Brother Brasil.

De meu lado, tenho visto, para tentar entender um pouco do que se passa fora da tela da TV. É sabido que as mídias promovem mais educação, e de modo mais ágil, que todas as instituições escolares reunidas. Um programa como esses não funciona apenas como espelho que potencializa conflitos e comportamentos da vida social contemporânea. Funciona, também, como espaço potente de aprendizagens, de legitimação para comportamentos sociais.

Então, quando as notícias sobre violência à mulher assustam pelo grau de perversidade, pelas estatísticas crescentes, pelo sentimento de impotência que nos invade, é preciso perguntar por onde se passam esses descaminhos, quais seus mananciais. Sem dúvida, o programa em questão faz parte dessa cartografia... 

Sua edição neste 2017 trouxe ao écran dos aparelhos de televisão e demais aparatos midiáticos, diuturnamente, a relação de um casal formado por uma moça e um homem maduro, durante o jogo, cuja natureza ganhou feições assustadoras, amedrontadoras. A moça ocupa, no imaginário dentro e fora do confinamento, o lugar da ninfeta que mantém um vínculo ambíguo e conflituoso com o homem mais velho. Uma espécie de Lolita. A temática é antiga. As Lolitas ocupam o lugar de fetiche no imaginário sexual ocidental contemporâneo.

Em 1955, Vladimir Nabokov publicou o livro Lolita, que conta a história de um homem maduro, que se casa com uma mulher de mesma idade. Contudo, apaixona-se pela filha dela, uma adolescente. Essa história foi transformada em filme por Stanley Kubrick, em 1962. 

Na atual edição do Big Brother, o homem maduro é um médico, cirurgião plástico, que provavelmente tenha quase o dobro da idade da ninfeta. De saída, em escalas de poder, no imaginário social, pelo fato de ser homem e médico ele se encontra, no ponto de partida, numa posição diferenciada em relação aos demais. Na condição de cirurgião plástico, um componente a mais toma parte da composição: a vaidade. O médico é vaidoso, e opera sobre esse mesmo fetiche. 

A Lolita em questão é muito jovem, passional, explosiva. Ele é dominador, vaidoso, mais velho. Ambos são egoístas, e parecem movidos a tensão e conflito. Berram entre si. Os dedos em riste apontam o outro, tocando a pele do rosto. Corpo a corpo, o médico imobiliza a Lolita que grita para ele sair, sem ser atendida. Ele prende-lhe o pulso. Depois é ela quem volta, retoma a discussão. Provoca a ira... sob os olhares das outras mulheres também confinadas. Para estas, eventualmente, sobram ataques por parte do médico, ou malcriações por parte da Lolita. 

Todos esses detalhes não seriam tão relevantes, se não resultassem numa contínua relação de brigas, ameaças, embates físicos, que configuram assédio moral continuado, violência psicológica sendo veiculada em horário nobre pela TV, sem qualquer providência mais séria em relação à gravidade do quadro. O assédio moral estende-se dos embates entre o casal para as demais participantes, mulheres, que ocupam territórios periféricos à bomba relógio, vulneráveis a seus efeitos. Indefesas aos ataques do sultão em sua primazia... 

Contudo, a insanidade dos jogadores confinados pelo programa, ou o cinismo da emissora de televisão não são as principais fontes da indignação que motiva este texto. Uma e outra conduta são em alguma medida esperadas, lamentavelmente. A indignação vem, principalmente, da aprovação, por parte do público, do comportamento do casal, imbatíveis até à reta final do programa, candidatos favoritos à vitória. A Lolita tem a maioria da preferência do público em todas as enquetes, e o médico permanece em jogo, eliminando todos os adversários que tenham a má sorte de enfrentá-lo nos paredões. 

Parece se estabelecer uma relação de mão dupla: o programa ganha em audiência por veicular uma relação passional que transita impunemente pelo assédio e a violência morais. Ao mesmo tempo, com o programa, a emissora desenvolve uma pedagogia psicossocial segundo a qual tal comportamento não só é aprovado como elevado à condição de fetiche, porquanto premiado no certame em curso. 

Isso tudo acontece quando as discussões feministas de toda ordem ocupam lugar nas universidades, nas escolas, nas ruas, até mesmo nos telejornais da própria emissora de televisão! 

Então eu me pergunto: onde estão os grupos ativistas que não se posicionaram, que não gritaram, que não tomaram, até aqui, nenhuma providência legal sobre o que está ocorrendo? Se recusam ainda a ver o programa, por considerá-lo refratário à sua causa, ofensivo à sua capacidade intelectual? Mas o que ele veicula toma parte dos quantos vetores sociais que redundam na violência contra a mulher! Ignorá-lo é também passar ao largo das fontes da violência e ser, portanto, conivente com elas.

Hard times... bad times...






quinta-feira, 10 de março de 2016

Sobre inutilidades e também sobre apagamentos de vozes femininas...


Recebi, hoje, o livro A utilidade do inútil, um manifesto, de Nuccio Ordine, lançado em 2016, pela Editora Zahar. Fiquei feliz com o pequeno livro entre os dedos.

Quando o encomendei, movia-me a lembrança de quando decidi fazer aulas de esperanto, e alguém me questionou qual a utilidade. Entre risos respondi que era exatamente pela aparente falta de aplicabilidade instrumental que me interessava aprender aquela língua. Em outras palavras: entre tantas coisas úteis a que me via compulsoriamente empurrada, buscava uma coisa inútil para fazer. Talvez nem tanto... Ao fim, não consegui estudar todo o semestre, acabei abandonando as aulas. Meses depois soube que meu professor falecera. Esse é ainda um projeto a ser realizado. De alguma forma, comprar esse livro talvez fizesse parte do complemento à minha resposta sobre a possível inutilidade de estudar esperanto...

Sim. O livro traz uma compilação de pensadores desde Platão até os contemporâneos, em defesa da necessidade inquestionável de atividades inúteis para o crescimento da humanidade. Ou seja: mesmo em tempos de crise, não são só as atividades utilitárias, instrumentais que devem ser asseguradas. Uma lista infindável de atividades inúteis têm sido condição sem a qual a humanidade definha.

Mas confesso que fui impactada por um dado que me bateu à face, logo ao primeiro olhar: todos, absolutamente os autores reportados são homens. Nem uma voz feminina teria sido convocada para a defesa do inútil.

Estariam, todas, no decurso da história ocidental, muito ocupadas com atividades úteis, a ponto de não poderem nem usufruir do inútil, nem pensar sobre ele? Suas vozes teriam sido silenciadas, ou não ouvidas, em razão de que os papéis a elas atribuídos sejam, sobretudo, o de atender às necessidades de que se ressintam os homens, ou seja, cuidar do que seja útil, para que eles tenham condições de argumentar em favor do inútil?

Sim, é bem provável que a todos estes homens, e aos outros quantos não incluídos no manifesto, tenha sido possível dedicar-se à defesa das atividades inúteis, gastando tempo a toa nos espaços públicos, tão somente pelo fato de que mulheres estariam garantindo que as atividades úteis fossem executadas, e assim seu bem-estar estivesse assegurado... E como as atividades úteis não são inúteis, e portanto não são portadoras de glamour, sequer merecem registro na história, ou na filosofia... São apenas úteis... Fim.

Minha leitura desse livro será pautada por ponto de vista muito diverso do que supunha, a princípio. Cada página no papel de gramatura 80 vibrará com o impulso pela defesa do direito das mulheres de se ocuparem, também, das inutilidades e, mais que isso, falarem sobre, e terem suas vozes reverberadas.








domingo, 28 de agosto de 2011

sobre conformação dos pés, calçados, e outras torturas...



Normas sociais modelam os corpos.

Por volta do século V, instalou-se, na China, por meio de éditos imperiais, a tradição dos pés enfaixados, também chamados de pés de lótus. Esse costume estendeu-se até a Revolução, no século XX. Meninas, desde a idade tenra dos seis anos, eram submetidas a processos torturantes, nos quais seus pés tinham a anatomia violentamente alterada, para permanecerem pequeninos. Em tese, pretendia-se que, assim, chamassem o interesse de bons partidos para casamento, por despertarem a libido masculina. De fato, era-lhes limitada a capacidade da mobilidade. Na idade adulta, essas mulheres mal conseguiam equilibrar-se em pé, precisando sempre de auxílio em seus deslocamentos. Frágeis, dedicavam-se, entre os afazeres possíveis, a confeccionar delicados sapatinhos bordados para seus pequeninos pés com forma de flor de lótus... 

Tal prática causa, hoje, sentimentos de repúdio e horror, sobretudo entre as mulheres ocidentais, emancipadas, senhoras de seus próprios corpos, herdeiras das manifestações por liberdade ocorridas nos anos 60 do século passado, das narrativas sobre os sutiãs queimados em praça pública, dos métodos contraceptivos cada vez mais precisos e eficientes, com menos efeitos colaterais.

No entanto, caminhando entre vitrines dos centros de compra, observo os calçados masculinos e femininos da moda, e constato alguns aspectos desses artefatos - vinculados a práticas sociais e traços da cultura contemporânea - que me instigam a pensar sobre essas questões. Ressalta o fato de que os sapatos masculinos têm o conforto como fator-chave, enquanto os sapatos femininos, numa variação muito mais extensa de modelos, formatos, materiais, têm como elemento principal a capacidade de chamar a atenção pelo formato externo, à revelia do que imponham aos pés de quem os possam calçar.

Os saltos muito altos forçam a anatomia feminina a um novo posicionamento ortopédico, alterando-lhe o modo de caminhar, a postura, e as relações de força que envolvem estrutura óssea e musculatura responsáveis pela deambulação. Dizem, os que ditam a moda, os fabricantes dos calçados, e seus vendedores (em sua maioria homens), que o salto alto imprime elegância à postura da mulher. E elas acreditam. Ao calçá-los, o peso do corpo concentra-se na região próxima aos dedos dos pés, acentuando o arco, e forçando a abertura da articulação do tornozelo. A musculatura posterior da perna se encurta. No decorrer do tempo, com o uso continuado, essa musculatura já não se alonga mais, o que implica numa disfunção  anatômica. Mas a usuária inadvertida argumenta que, na verdade, os saltos lhe descansam as pernas, enquanto que calçados baixos causam dores. As articulações também se ressentem no decurso do tempo, desenvolvendo artrites e tendinites as mais diversas.

Mas os calçados com saltos altíssimos não saem da moda, fazendo circular lucros, impondo padrões deformantes à anatomia feminina, em atenção ao chamado do fetiche masculino. Os saltos altos, aliados aos bicos finos, repetem o posicionamento dos pés femininos das mulheres chinesas, preservando-lhes, apenas, o tamanho...



   



Estendendo um pouco mais a questão, pergunto, ainda, sobre quais as reais diferenças entre os procedimentos agressivos nos pés das chinesinhas e os procedimentos cirúrgicos por meio das quais se pretende conformar os corpos femininos a certos padrões pretendidos de beleza, e consequentemente de aprovação social?

No contraponto a esse quadro, recordo que as mulheres mamaindê fazem longas caminhadas pela mata, com seus pés descalços, sentindo o terreno que pisam, firmes e ligeiras em suas passadas. Aprendi com elas que os pés sutilmente girados para dentro dão maior equilíbrio, e ajudam nas subidas e descidas em terrenos mais íngremes. A essa lembrança opõe-se outra. Era adolescente, quando acompanhei uma amiga já adulta na compra de um par de sandálias caríssimo, muito elegante: saltos muito altos e tiras delicadas, muito estreitas, douradas. Ela me explicou que aqueles calçados não serviam para situações que exigissem maiores caminhadas, mas para ficar elegante, e encantar o namorado. Ela os usaria tão somente para percursos entre a casa e o carro, depois até o restaurante, ou a sala de cinema, ou o teatro. Sempre trajetos curtos.

Dito isso, calço minhas sandálias rasteiras, sinto-lhes o conforto nos pés. Vou percorrer caminhos e calçadas que atravessam a manhã cheia de sol, e degustar esse prazer...

Viva a ergonomia! Que tenhamos um bom domingo!