domingo, 28 de agosto de 2011

sobre conformação dos pés, calçados, e outras torturas...



Normas sociais modelam os corpos.

Por volta do século V, instalou-se, na China, por meio de éditos imperiais, a tradição dos pés enfaixados, também chamados de pés de lótus. Esse costume estendeu-se até a Revolução, no século XX. Meninas, desde a idade tenra dos seis anos, eram submetidas a processos torturantes, nos quais seus pés tinham a anatomia violentamente alterada, para permanecerem pequeninos. Em tese, pretendia-se que, assim, chamassem o interesse de bons partidos para casamento, por despertarem a libido masculina. De fato, era-lhes limitada a capacidade da mobilidade. Na idade adulta, essas mulheres mal conseguiam equilibrar-se em pé, precisando sempre de auxílio em seus deslocamentos. Frágeis, dedicavam-se, entre os afazeres possíveis, a confeccionar delicados sapatinhos bordados para seus pequeninos pés com forma de flor de lótus... 

Tal prática causa, hoje, sentimentos de repúdio e horror, sobretudo entre as mulheres ocidentais, emancipadas, senhoras de seus próprios corpos, herdeiras das manifestações por liberdade ocorridas nos anos 60 do século passado, das narrativas sobre os sutiãs queimados em praça pública, dos métodos contraceptivos cada vez mais precisos e eficientes, com menos efeitos colaterais.

No entanto, caminhando entre vitrines dos centros de compra, observo os calçados masculinos e femininos da moda, e constato alguns aspectos desses artefatos - vinculados a práticas sociais e traços da cultura contemporânea - que me instigam a pensar sobre essas questões. Ressalta o fato de que os sapatos masculinos têm o conforto como fator-chave, enquanto os sapatos femininos, numa variação muito mais extensa de modelos, formatos, materiais, têm como elemento principal a capacidade de chamar a atenção pelo formato externo, à revelia do que imponham aos pés de quem os possam calçar.

Os saltos muito altos forçam a anatomia feminina a um novo posicionamento ortopédico, alterando-lhe o modo de caminhar, a postura, e as relações de força que envolvem estrutura óssea e musculatura responsáveis pela deambulação. Dizem, os que ditam a moda, os fabricantes dos calçados, e seus vendedores (em sua maioria homens), que o salto alto imprime elegância à postura da mulher. E elas acreditam. Ao calçá-los, o peso do corpo concentra-se na região próxima aos dedos dos pés, acentuando o arco, e forçando a abertura da articulação do tornozelo. A musculatura posterior da perna se encurta. No decorrer do tempo, com o uso continuado, essa musculatura já não se alonga mais, o que implica numa disfunção  anatômica. Mas a usuária inadvertida argumenta que, na verdade, os saltos lhe descansam as pernas, enquanto que calçados baixos causam dores. As articulações também se ressentem no decurso do tempo, desenvolvendo artrites e tendinites as mais diversas.

Mas os calçados com saltos altíssimos não saem da moda, fazendo circular lucros, impondo padrões deformantes à anatomia feminina, em atenção ao chamado do fetiche masculino. Os saltos altos, aliados aos bicos finos, repetem o posicionamento dos pés femininos das mulheres chinesas, preservando-lhes, apenas, o tamanho...



   



Estendendo um pouco mais a questão, pergunto, ainda, sobre quais as reais diferenças entre os procedimentos agressivos nos pés das chinesinhas e os procedimentos cirúrgicos por meio das quais se pretende conformar os corpos femininos a certos padrões pretendidos de beleza, e consequentemente de aprovação social?

No contraponto a esse quadro, recordo que as mulheres mamaindê fazem longas caminhadas pela mata, com seus pés descalços, sentindo o terreno que pisam, firmes e ligeiras em suas passadas. Aprendi com elas que os pés sutilmente girados para dentro dão maior equilíbrio, e ajudam nas subidas e descidas em terrenos mais íngremes. A essa lembrança opõe-se outra. Era adolescente, quando acompanhei uma amiga já adulta na compra de um par de sandálias caríssimo, muito elegante: saltos muito altos e tiras delicadas, muito estreitas, douradas. Ela me explicou que aqueles calçados não serviam para situações que exigissem maiores caminhadas, mas para ficar elegante, e encantar o namorado. Ela os usaria tão somente para percursos entre a casa e o carro, depois até o restaurante, ou a sala de cinema, ou o teatro. Sempre trajetos curtos.

Dito isso, calço minhas sandálias rasteiras, sinto-lhes o conforto nos pés. Vou percorrer caminhos e calçadas que atravessam a manhã cheia de sol, e degustar esse prazer...

Viva a ergonomia! Que tenhamos um bom domingo!





2 comentários:

  1. Me encantou o teu texto!!!! um abraço forte!

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    1. Que bom que você tenha gostado! E vivam nossas sandálias rasteirinhas, para seguirmos pelas veredas da vida!

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