Mostrando postagens com marcador teoria do conhecimento. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador teoria do conhecimento. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Ciência e política: entreveros nem sempre recomendáveis...


Vez por outra, cada vez mais amiúde, sou provocada a retomar este tema, considerando, sobretudo, episódios lastimáveis em que o conhecimento científico se suja com a voracidade pelo poder experimentada por arrivistas políticos.

Volto, portanto, ao pequeno, mas nem por isso menos importante, livro escrito por Max Weber, intitulado Ciência e política: duas vocações. Nele, Weber argumenta em favor da manutenção de uma fronteira clara entre a produção de conhecimento e a atuação política. Ou seja: cientistas e professores não deveriam engajar-se em projetos políticos, defender bandeiras, fazendo, para isso, uso de seu lugar à frente de seus estudantes ou das ferramentas desenvolvidas no exercício de construção de saberes. O seu conhecimento deveria ser disponibilizado para que os grupos sociais pudessem, a partir dele, de modo esclarecido, fazer suas escolhas, atuar politicamente.

Está na base dessa orientação o princípio da isenção do conhecimento, a necessidade de distanciamento para que seja possível a construção autocrítica da interpretação do mundo. O que não é possível ao político, este defensor ardente de determinados pontos de vista, em detrimento dos demais.

Dito de outro modo, ao cientista caberia o papel social de ver e interpretar o que vê, produzindo conhecimento, tanto no âmbito das ciências da natureza quanto das sociais. Ao político, sim, caberia o papel de agir, tendo como referência o conhecimento produzido pelo cientista. Entre conhecer e agir, portanto, haveria um hiato a ser respeitado por um e pelo outro.

Este posicionamento funda-se nos princípios da objetividade e da neutralidade da ciência, condição que, desde há muito, reconhecemos impossível. Nada que se produza, pense, formule, está isento dos pontos de vista de seus autores. Ou seja: o pensamento científico, ao lado de todos os demais saberes e fazeres, estão encharcados das crenças do cientista, de suas inserções nas malhas sociais e culturais de pertencimento, de suas visões de mundo, ainda que não confessadas. Assim, a questão da ciência engajada tem sido tema de discussão desde há algum tempo, e se debate ainda entre dissenções as mais variadas.

Uma das estratégias mais prudentes talvez seja, novamente, apontada pelo próprio Weber, ainda no pequeno livro Ciência e política: duas vocações, quando sugere ser necessário, ao cientista e professor, o auto-esclarecimento a respeito de suas escolhas de cunho epistemológico nos processos de produzir ciência e ensiná-la. Em outras palavras, o exercício contínuo da autocrítica. A parceria incorruptível com a dúvida, em termos flusserianos.

No entanto, é preciso notar que há trânsitos em várias direções nessa via entre ciência e política, entre pensamento e ação. Se, de um lado, tem-se problematizado a natureza de uma ciência engajada, ou seja, da produção de conhecimento que abraça causas, de outro lado há que se observar e discutir os projetos políticos que buscam, nas instituições voltadas à produção de conhecimento, a chancela de suas bandeiras, a legitimação de seus discursos. Quantas vezes, com finalidades escusas, não declaradas, ou dissimuladas.

Evidentemente, parcerias entre a ciência e os projetos políticos sociais são desejáveis, apontando caminhos de superação de dificuldades, de resolução de problemas que afligem as populações. Contudo, a palavra-chave é parceria. Nela, as relações devem ser equalizadas de modo paritário, mantida a independência de uma em relação à outra. Dito assim, pode parecer de simples resolução. Mas, na verdade, é aí que começam as dificuldades. O intento de sua viabilização, sua verificação nas vias práticas, nos campos de negociação, nos agenciamentos quotidianos é que revelam os enormes desafios implícitos nessas relações.

O maior deles está na subjugação da ciência aos interesses políticos de segmentos específicos dos detentores do poder, bem como aos interesses econômicos. A produção de conhecimento e os sistemas de educação postos a serviço do mercado e das estruturas de poder é uma condição que deve ser rechaçada por educadores e pesquisadores com o mínimo de idoneidade no exercício de seus ofícios. 

Reconheço: a busca pelo rigor ético, pela idoneidade no exercício do ofício de professora e pesquisadora também é uma posição de engajamento. E, igualmente, não constitui uma escolha fácil. Supõe, muitas vezes, desafiar instâncias de onde se ouvem cantos de sereia com irresistível poder de sedução. Afinal, as vaidades instigam os egos. O chamado à visibilidade salta à frente. O desejo de reconhecimento pelas diversas comunidades de pertencimento impõe-se. Em nome dessas motivações, se produzem, rapidamente, discursos auto-justificatórios que mesclam questões sociais, defesa do bem-estar público, com ideias de progresso, desenvolvimento, etc.

Por isso mesmo, volto sempre a Weber e a Flusser, e aos princípios do auto-esclarecimento e da dúvida. Volto a eles, mesmo sem tomar ao pé da letra suas recomendações quanto à objetividade mais radical na produção de conhecimento. No entanto, assumo como um dos fundamentos no exercício do meu ofício, a necessidade de observar, com cautelosa distância, os projetos políticos, os debates partidários, as estratégias do poder e do mercado, em relação ao mundo da ciência. Cada vez mais.

Sobretudo quando observo um trânsito nem sempre auto-esclarecido, nem sempre submetido à dúvida, de pesquisadores de universidades públicas entre seus campos de atuação acadêmica e cargos políticos nos poderes executivo ou legislativo.

Sobretudo, em tempos quando os noticiários nacionais das redes abertas de televisão, em horário nobre, anunciam que um representante de um partido político, integrante do primeiro escalão de uma equipe de governo polêmico e contraditório, tem a chancela da academia para assumir um cargo na suprema corte do Poder Judiciário (cargo que exercerá, provavelmente, pelas próximas duas décadas, ou mais), porquanto tenha obtido o título máximo de doutor...




domingo, 1 de fevereiro de 2015

daquilo que supomos saber...



Se tudo quanto soubermos sobre nós e o mundo onde estamos corresponder a um mínimo fragmento dessa pequena luz, então já será tanto, tanto, que poderemos até supor que sejamos sábios...

O mais, não passa de escuro e vácuo à nossa capacidade de perceber e compreender...





sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Ciência, política, a vocação e o apagão




No início do século XX, Max Weber escreveu um pequeno e instigante livro que, em português, se chama Ciência e política: duas vocações. Na primeira parte, Ciência como vocação, o autor defende, veementemente, a necessidade de se manter o trabalho científico – do qual a docência faz parte – preservado dos arroubos do ativismo político. Na segunda parte, Política como vocação, ele ressalta a necessidade, sim, de que se façam intervenções na sociedade, no sentido de promover sua transformação, mas destaca ser esse o papel do político, e não do cientista. Dito de outra forma, ao cientista cabe a tarefa de observar, analisar, compreender, interpretar, conhecer, de modo isento, sem imiscuir-se com bandeiras, crenças, ideologias. A intervenção deve ficar ao cargo do político, e que este, preferencialmente, busque estar embasado no conhecimento produzido pelo cientista.

Weber advertia, inclusive, que a cátedra deveria ser preservada de qualquer discurso de natureza política. A cátedra é o espaço vocacionado ao conhecimento. A política deve ser exercida no palanque dos comícios, nos congressos, nas casas de negociações do poder.

Quando o texto foi escrito, o mundo já experimentara os horrores da Primeira Guerra Mundial. Já experimentara, também, o sabor amargo da constatação de que, mesmo quando à revelia do cientista, o conhecimento científico e seus produtos não podem ser mantidos isentos da política, nem do exercício do poder, seja o econômico, seja o bélico – irmãos siameses esses dois poderes, afinal. Mas não experimentara, ainda, os estertores da Segunda Guerra, o limite da bomba atômica, quando essa aprendizagem seria definitiva.

As discussões a respeito da neutralidade ou não do conhecimento científico geram debates intensos ainda hoje, século XXI adentro. Há bandeiras que defendam uma ciência confessadamente engajada. Outras discorrem sobre a impossibilidade de se produzir conhecimento neutro, apresentando argumentos fundados em experiências históricas recentes. E há os que cultivem, ainda, a crença na isenção da ciência, distanciada das disputas de poder, econômicas, das estruturas hierárquicas.

Todo conhecimento tem as marcas do seu tempo, as marcas do contexto sociocultural no qual é produzido, e está contaminado pelas posições e escolhas do cientista que o produza. Mesmo no âmbito das ciências duras, em cujos campos o objeto de conhecimento parece ter autonomia em relação ao sujeito que o investigue, mesmo ali, o conhecimento produzido (que é diferente do objeto a respeito do qual o conhecimento versa) é portador de tais marcas.

Ou seja, não há conhecimento isento. Há fendas nas fronteiras dos campos nos quais a ciência é articulada, e por essas fendas, tanto entram elementos externos, quanto o conhecimento vaza para outros campos. Contudo, mesmo reconhecendo a porosidade das fronteiras, e o entrelaçamento dos campos, é preciso exercer o esforço no sentido de preservação das especificidades de cada um. Sobretudo, não se perca de vista que o conhecimento produzido a serviço de determinados projetos de poder, ou econômicos, ou políticos, é ferramenta de opressão, dominação, é antônimo de qualquer princípio democrático.

Para avançar nesta questão, é preciso fazer a ressalva a respeito da diferença, fundante, entre política como exercício de cidadania de um lado, e política partidária de outro. Quando tomadas de posição, no âmbito científico, possam ser entendidas como posicionamentos políticos, é indispensável resguardar essa potencialidade da sanha das políticas partidárias.

Na noite de 28 de agosto de 2014, quando a SBPC/Goiás promoveu a solenidade de entrega do 1º Prêmio de Popularização da Ciência, ocorreram dois fatos que evocaram esta reflexão. Realizada em pleno período de campanha eleitoral para cargos estaduais e federais, foi aberto espaço para alguns candidatos se manifestarem, em discursos que tratavam de suas bandeiras e do lugar da ciência em seus planos de trabalho. O concurso promovido dela SBPC/Goiás, cujo mérito é indiscutível, e cujos resultados têm um teor político cidadão, ao visar a popularização da ciência, imiscuiu-se, naquele palco, com as bandeiras partidárias, conclamando eleitores a confiarem votos neste ou naquele candidato.

Curiosamente, durante o primeiro discurso político-partidário, ocorreu uma queda de energia, que atingiu apenas a ala da qual o auditório da solenidade tomava parte. Sem disponibilidade de outro espaço ao momento, e sem a possibilidade de solução do problema que ocasionara o apagão, decidiu-se continuar a solenidade às escuras, com o auxílio das luzes dos aparelhos telefônicos – os candeeiros do século XXI. Dessa forma, a cerimônia teve prosseguimento, cumprindo o protocolo plenamente: entrega dos prêmios alternada com discursos de candidatos. Tudo às escuras. Do lado de fora do auditório, a luz correspondia ao calor em intensidade. À maneira da alegoria da caverna, descrita por Platão...

Foi inevitável pensar em Agamben, quando aborda o contemporâneo:

(...) contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro. (...) o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interprelá-lo, algo que, mais do que todas as luzes, se volta diretamente e singularmente para ele. Contemporâneo é aquele que recebe em plena face o feixe de treva que provém de seu tempo.
Giorgio Agamben. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

Na solenidade de ontem, as sombras presidiram a associação entre ciência e política partidária. O que podemos aprender com isso?








segunda-feira, 27 de maio de 2013

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Unicórnios


Unicórnios
Vilém Flusser
publicado no Jornal Folha de São Paulo de 24 de março de 1972

Embora não sejam, a rigor, animais domésticos, são, no entanto, extremamente úteis ao homem. A sua utilidade varia com o tempo. Na antigüidade o seu chifre servia, apropriadamente moído, como remédio contra todos os venenos. Na Idade Média o unicórnio servia como atributo da virgindade, portanto tinha utilidade pública incontestável. No romantismo e pós-romantismo foi amplamente utilizado como tema de poesias, (embora a palavra "unicórnio" não tenha muitas rimas nas línguas latinas). E atualmente é indispensável para livros de lógica e teoria do conhecimento. Com efeito: tais livros não poderiam existir, se o unicórnio não existisse, e nem, se existisse. Para prová-lo, tomemos as seguintes sentenças:

1. A maçã é verde.
2. O sangue é verde.
3. Deus é verde.
4. A liberdade é verde.
5. O presente rei da França é verde.
6. O unicórnio é verde.

A primeira sentença pode ou não ser verdadeira. A segunda é falsa. Ambas têm sentido. As demais sentenças não têm sentido. Pois isto é fácil dizer-se, é fácil verificar-se, já que, ao dizermos tais sentenças, estamos segurando a risada. Por não terem sentidos tais sentenças, são ridículas e divertidas. Difícil é dizer por que tais sentenças não têm sentido, porque os seus sujeitos, a saber: Deus, a liberdade, o presente rei da França e o unicórnio, não existem. Mas não podemos dizê-lo. Não se pode dizer que Deus não existe, porque seria primeiro necessário definir o termo "Deus". Coisa impossível. Não se pode dizer que a liberdade não existe, porque a sua presença ou ausência são nitidamente constatáveis. A sentença "a liberdade é verde" não tem sentido, embora a liberdade exista. Não se pode dizer que o presente rei da França não existe, sem dizer-se, também, quando se está falando. Por exemplo: no século 17 existia um rei da França que estava presente, e a sentença era então provavelmente falsa, e tinha portanto sentido. Mas, quanto ao unicórnio, todos estão de acordo que não existe. Portanto podemos dizer claramente porque a sentença "o unicórnio é verde" não tem sentido. O único caso nítido entre os exemplos fornecidos. Não fosse o unicórnio, e os livros de lógica e teoria de conhecimento não teriam sentido. Não teriam sentido, porque não poderiam exemplificar o que quer dizer: "não ter sentido". Isto seria uma pena, especialmente para professores de lógica e teoria do conhecimento. Mas, felizmente, há unicórnio, e Sócrates é seu fiel companheiro. Assim: Sócrates é mortal, e o unicórnio é verde. Viva a cultura.