Vez por outra, cada vez mais amiúde, sou provocada a retomar
este tema, considerando, sobretudo, episódios lastimáveis em que o conhecimento
científico se suja com a voracidade pelo poder experimentada por arrivistas
políticos.
Volto, portanto, ao pequeno, mas nem por isso menos
importante, livro escrito por Max Weber, intitulado Ciência e política: duas vocações. Nele, Weber argumenta em favor
da manutenção de uma fronteira clara entre a produção de conhecimento e a
atuação política. Ou seja: cientistas e professores não deveriam engajar-se em
projetos políticos, defender bandeiras, fazendo, para isso, uso de seu lugar à
frente de seus estudantes ou das ferramentas desenvolvidas no exercício de
construção de saberes. O seu conhecimento deveria ser disponibilizado para que
os grupos sociais pudessem, a partir dele, de modo esclarecido, fazer suas
escolhas, atuar politicamente.
Está na base dessa orientação o princípio da isenção do conhecimento,
a necessidade de distanciamento para que seja possível a construção autocrítica
da interpretação do mundo. O que não é possível ao político, este defensor
ardente de determinados pontos de vista, em detrimento dos demais.
Dito de outro modo, ao cientista caberia o papel social de
ver e interpretar o que vê, produzindo conhecimento, tanto no âmbito das ciências da natureza quanto das sociais. Ao político, sim, caberia
o papel de agir, tendo como referência o conhecimento produzido pelo cientista.
Entre conhecer e agir, portanto, haveria um hiato a ser respeitado por um e
pelo outro.
Este posicionamento funda-se nos princípios da objetividade
e da neutralidade da ciência, condição que, desde há muito, reconhecemos
impossível. Nada que se produza, pense, formule, está isento dos pontos de
vista de seus autores. Ou seja: o pensamento científico, ao lado de todos os demais
saberes e fazeres, estão encharcados das crenças do cientista, de suas
inserções nas malhas sociais e culturais de pertencimento, de suas visões de
mundo, ainda que não confessadas. Assim, a questão da ciência engajada tem sido
tema de discussão desde há algum tempo, e se debate ainda entre dissenções as
mais variadas.
Uma das estratégias mais prudentes talvez seja, novamente,
apontada pelo próprio Weber, ainda no pequeno livro Ciência e política: duas vocações, quando sugere ser necessário,
ao cientista e professor, o auto-esclarecimento a respeito de suas escolhas de
cunho epistemológico nos processos de produzir ciência e ensiná-la. Em outras
palavras, o exercício contínuo da autocrítica. A parceria incorruptível com a
dúvida, em termos flusserianos.
No entanto, é preciso notar que há trânsitos em várias
direções nessa via entre ciência e política, entre pensamento e ação. Se, de um
lado, tem-se problematizado a natureza de uma ciência engajada, ou seja, da
produção de conhecimento que abraça causas, de outro lado há que se observar e
discutir os projetos políticos que buscam, nas instituições voltadas à produção
de conhecimento, a chancela de suas bandeiras, a legitimação de seus discursos. Quantas vezes,
com finalidades escusas, não declaradas, ou dissimuladas.
Evidentemente, parcerias entre a ciência e os projetos
políticos sociais são desejáveis, apontando caminhos de superação de dificuldades,
de resolução de problemas que afligem as populações. Contudo, a palavra-chave é parceria. Nela, as relações devem ser equalizadas de modo paritário, mantida
a independência de uma em relação à outra. Dito assim, pode parecer de simples
resolução. Mas, na verdade, é aí que começam as dificuldades. O intento de sua viabilização, sua verificação nas vias práticas, nos campos de
negociação, nos agenciamentos quotidianos é que revelam os enormes desafios implícitos
nessas relações.
O maior deles está na subjugação da ciência aos interesses
políticos de segmentos específicos dos detentores do poder, bem como aos interesses econômicos. A produção de conhecimento
e os sistemas de educação postos a serviço do mercado e das estruturas de poder
é uma condição que deve ser rechaçada por educadores e pesquisadores com o
mínimo de idoneidade no exercício de seus ofícios.
Reconheço: a busca pelo rigor ético, pela idoneidade no exercício do ofício de professora e pesquisadora também é uma posição de engajamento. E, igualmente, não constitui uma escolha fácil. Supõe, muitas vezes, desafiar instâncias de onde se ouvem cantos de sereia com irresistível poder de sedução. Afinal, as
vaidades instigam os egos. O chamado à visibilidade salta à frente. O desejo de reconhecimento
pelas diversas comunidades de pertencimento impõe-se. Em nome dessas motivações, se produzem, rapidamente, discursos auto-justificatórios que mesclam questões
sociais, defesa do bem-estar público, com ideias de progresso, desenvolvimento,
etc.
Por isso mesmo, volto sempre a Weber e a Flusser, e aos princípios do auto-esclarecimento e da dúvida. Volto a eles, mesmo sem tomar
ao pé da letra suas recomendações quanto à objetividade mais radical na produção de conhecimento. No entanto,
assumo como um dos fundamentos no exercício do meu ofício, a necessidade de observar, com cautelosa distância, os projetos
políticos, os debates partidários, as estratégias do poder e do mercado, em
relação ao mundo da ciência. Cada vez mais.
Sobretudo quando observo um trânsito nem sempre auto-esclarecido,
nem sempre submetido à dúvida, de pesquisadores de universidades públicas entre
seus campos de atuação acadêmica e cargos políticos nos poderes executivo ou
legislativo.
Sobretudo, em tempos quando os noticiários nacionais das
redes abertas de televisão, em horário nobre, anunciam que um representante de
um partido político, integrante do primeiro escalão de uma equipe de governo
polêmico e contraditório, tem a chancela da academia para assumir um cargo na
suprema corte do Poder Judiciário (cargo que exercerá, provavelmente, pelas
próximas duas décadas, ou mais), porquanto tenha obtido o título máximo de
doutor...
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