domingo, 22 de outubro de 2023

A dor da guerra não cessa de doer.


La noche en la ciudad es oscura, excepto por el brillo de los misiles;

silenciosa, excepto por el sonido del bombardeo;

aterradora, excepto por la promesa tranquilizadora de la oración;

negra, excepto por la luz de los mártires.

Buenas noches.

 


Tradução, para o espanhol, do poema publicado por Heba Abu Nada, poetisa palestina de 32 anos, um dia antes de sua morte, atingida por um míssil disparado por Israel.

Não há guerra pela paz. Nunca houve. Toda guerra atende a interesses outros que não da paz, ou dos cuidados e proteção da população em geral. Essa guerra é orquestrada pelo mercado bélico. O preço são vidas de milhares de crianças, idosos, pessoas doentes, pessoas em suas lutas diárias pela sobrevivência, capazes ainda de fazer poesia, apesar de tudo.

A dor da guerra não cessa de doer.

 

 


sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Uma violência aos pés de jacarandá mimoso

 











Desde criança, aprendi: qualquer poda em plantas, de qualquer porte, só pode ser feita durante os meses que não têm a letra 'r' no nome. Ou seja, entre maio e agosto. Curiosamente, esse período envolve uma parte do outono até meados do inverno. Nesse período, as plantas, em sua maioria, estão se preparando para iniciar novo ciclo de floração, frutos, bem como para se vestir de nova folhagem. 

Como dizia minha mãe, a seiva está recolhida, fortalecendo-se para eclodir em esplendor de cores e vida. Quando essa eclosão começa a acontecer, com nova brotação de folhas e flores, já não se deve mais podar, sob pena de retirar da árvore sua força vital. 

Era já final de setembro. A alameda tem duas linhas de jacarandás mimosos: uma ao centro, outra à direita de quem sobe. Estavam muito verdes e cobertos de flores roxas. Quando enveredei por ali, no final da manhã, me deparei com a via de subida impedida: trabalhadores haviam cortado muitos galhos de todos os pés de jacarandá, deixando apenas os mais altos. A rua estava coberta de galhos grossos e finos, e muitas folhas. O cheiro da madeira cortada espalhava-se pelo ar. 

Não se tratou de uma poda, mas de uma violência. Passaram-se dias até retirarem toda a madeira cortada, todas as folhas do chão. O perfume permaneceu por muito tempo. Se chegava até as minhas narinas com algum prazer, pela delicadeza de sua textura, também me informava sobre dor, sobre perda, do ponto de vista das árvores.





quinta-feira, 27 de julho de 2023

Nunca mais como omelete


Num desses momentos de deriva poética, quando minha mãe transpõe boa parte das regras da linguagem, da memória, das relações temporais, me explicou que agora faz parte das pessoas que fazem “a melete”. Tentei compreender, sem estar certa de que fosse possível. Ela, então, me explicou que não acha certo dizerem “o melete”. Que o certo mesmo é “a melete”. Num átimo de segundo, compreendi. Mais que isso, concordei plenamente com ela.

Pronto. Está decidido. Nunca mais como omelete. A partir de hoje, o prato feito à base de ovos chama-se amelete, assim, no feminino. Delícia.

 

domingo, 30 de abril de 2023

Morada compartilhada

 




Foi bem no começo da pandemia. Depois de fazer a inspeção na varanda do segundo andar, o casal encontrou o melhor lugar para organizar seu pouso. Não se demoraram no trabalho. Em questão de dias já estavam instalados. 

Ouvi-los era um alento, em tempos quando a morte era o assunto do dia, de todos os dias. Cantavam, com voz leve e suave. Aquilo nos acalmava o coração. Estremecemos de alegrias quando constatamos os pequenos aprumando-se, pela primeira vez.

Três anos se passaram, desde então. O primeiro ano foi o mais fecundo. A cada ciclo com pouco mais de mês, nasciam duas pombinhas da seca, desenvolviam-se no ninho, até chegar o dia da partida. Alguns voos ensaiados e seguiam seu destino. A vibração do bater de asas era força de vida. 

No segundo ano, começaram os problemas técnicos de construção. Com o uso intenso e o acúmulo de fezes e novos galhos, o ninho foi ficando mais alto, embora continuasse raso. Resultou uma inclinação que, embora muito sutil, foi o suficiente para que ovinhos a ponto de descascar caíssem, levando à morte os filhotinhos. Tive de tomar a difícil decisão de retirar o ninho dali, para evitar novos acidentes fatais para a família. Não demorou e outro ninho foi construído, no mesmo local. Novas ninhadas começaram a nascer. Contudo, a nova fase não foi marcada pela sorte. Numa das vezes, um dos filhotinhos caiu do ninho, durante a noite. Sem conseguir retornar, amanheceu morto no chão da varanda. Na ninhada seguinte, outro filhotinho morreu, desta vez, no ninho. Mais uma vez, tomei a difícil decisão de retirar o corpinho do filhote junto ao ninho.

Meu marido providenciou um ninho desses que se compram em lojas especializadas. Mesmo achando que dificilmente ele seria aceito pela família de pombinhas da seca, o instalamos entre os galhos, na posição dos dois anteriores. E ficamos ali, na expectativa de como a novidade seria recebida.

Por algum tempo, não retornaram. Andavam pelos sítios em volta. Ouvíamos seu canto. E era tudo. Depois, percebemos algumas visitas furtivas na varanda, voejos entre os galhos. A certa altura, começaram a fazer inspeções no ninho construído com sisal e arame. Durante muitos meses, esse ninho passou a ser visitado regularmente pelo casal. Mas os ciclos das ninhadas tinham sido interrompidos.

No terceiro ano, observamos o aumento da frequência das visitas e uma certa familiaridade das aves com o ninho. Há três dias, a pombinha iniciou novo choco. Em breve, a varanda será território inaugural de novas pequenas vidas voejantes.

 




domingo, 23 de abril de 2023

A moça do caixa, no supermercado


No supermercado, a moça que me atendeu no caixa mostrou-se solícita. Mas logo que eu organizei os meus itens sobre a esteira, ela colocou a placa indicando que estava fechado. Contou-me que era seu horário de almoço. Explicou, ainda, que, como sua jornada era de 5 horas diárias, tirava apenas 15 minutos para fazer um breve lance, e preferia sair alguns minutos mais cedo, ao final do turno. Sua jornada era mais curta para que ela pudesse estudar. Continuamos conversando e organizando minhas compras na sacola. 

Agradeci sua ajuda. Sobre colocar coisas mais frágeis em cima das demais compras, observei que naquele dia eu não tinha comprado ovos, pois seria o único item que eu levaria à parte, pela fragilidade. Então ela me explicou que a embalagem resistia à pressão. Insistiu no fato de que eu poderia colocar na parte inferior da sacola, sob as demais compras, sem risco de quebrar os ovos. Riu e me desafiou: na próxima vez que você comprar ovos, experimente, depois venha me contar se deu certo! Eu também ri. Ela prosseguiu: Quem me explicou isso foi uma professora de física, depois eu experimentei e constatei que ela tinha razão. Entre sorrisos e com brilhos no olhar, concluiu: Eu adoro estudar física e química! Seu pagamento vai ser débito ou crédito?

À saída, desejei bom lanche, bom final de domingo. Intimamente, fiz votos para que ela cumprisse sua jornada de estudos sem que nada a desviasse dos campos de conhecimento que lhe despertavam aqueles brilhos no olhar.

 


sábado, 22 de abril de 2023

Floração do pé de jambo

 








O rapaz da loja em frente sorriu, cheio de orgulho: Ah, o dia inteiro 'tá cheio de periquito, abelha, uma festa! E de sobra ele dá p'rá gente esse luxo de tapete. Só a fruta que é meio bobinha, tem gosto de papel... Os pássaros não têm a mesma opinião, respondi. Rimos.

O pé de jambo é assim: discreto e escandaloso. Suas flores escondem-se entre a densa folhagem, bem rentes aos galhos, de modo que não se pode avistar à distância. Em contrapartida, as pétalas que caem ao chão formam um tapete magenta que grita aos olhos.





terça-feira, 11 de abril de 2023

As primas

 

São cinco as primas: Helga, Rosa, Almerinda, Magda, Felinta. Quando Rosa nasceu, Helga já era uma menina-moça faceira. Por isso, acompanhou parte da infância de Rosa de modo muito próximo. No entanto não era tão presente na vida de Almerinda, que nasceu no mesmo ano de Rosa, mas vivia na cidade, bem como Magda, sua irmã caçula. Já Felinta, a mais nova de todas as primas, quando nasceu encontrou a irmã Rosa já mocinha, totalmente dedicada ao trabalho e aos estudos. A esse tempo, Helga já se mudara para uma cidade grande, no sul, onde se casara e constituíra família. Assim sendo, Felinta não conviveu com ela na infância, conhecendo-a só por meio dos relatos e dos álbuns de fotografia que a mãe guardava cuidadosamente. Mas conviveu com Almerinda e Magda, tendo inclusive tomado parte de suas festas de casamento.

Quando o pai de Almerinda e Magda morreu, sua mãe ficou alentada com a decisão da filha mais nova de, mesmo casada, continuar morando na casa com ela. Era a garantia de cuidados em sua velhice. E assim foi: Magda acompanhou a mãe até o derradeiro dia. Depois, vendeu a velha casa onde nascera e mudou-se, com o marido e os filhos, para a mesma cidade onde a irmã Almerinda já vivia com a família há alguns anos.

Rosa e Felinta também se mudaram dali, instalando-se na capital, para onde mudou-se também sua mãe, quando o marido veio a falecer. Helga, vivendo há muito mais tempo distante de todos, acompanhava cada passo, cada fato ocorrido a cada prima, em cada núcleo familiar. E se emocionava em cada momento, sempre transbordando emoções.

Há alguns anos, Magda, já avó de alguns netos, sofreu um acidente vascular cerebral. Em consequência, perdeu a autonomia para realizar as atividades funcionais: falar, caminhar, se alimentar, fazer a própria higiene. Helga nunca se conformou com o fato e muitas vezes manifestou de modo apaixonado sua tristeza e sentimento de impotência diante do quadro da prima. Seu único consolo estava no fato de que o marido de Magda era dedicado nos cuidados com ela, apesar da fragilidade em seu coração, cujo funcionamento dependia de alguns stents implantados nas principais aortas.

A seu turno, já aposentada, Rosa assumiu os plenos cuidados da mãe que, com idade avançada, encontrou-se com a saúde mais fragilizada a cada dia. Também ela se compadecia com a situação de Magda e, muitas vezes, tentava acalmar o choro de Helga que lamentava situação da tia e da prima. Entre as primas, Almerinda se manifestava raramente, sempre de modo tranquilo, detalhando informações e tentando demonstrar que as situações, para as quais não há remédio, remediadas estão. Já Felinta, a única que ainda não se aposentara, pouco tomava parte da rede de conversas das primas, tratando de ficar imersa nos cuidados com a mãe, ao lado de Rosa, sempre que possível entre os compromissos de trabalho.

Foi numa dessas brechas, passando alguns dias na casa da irmã, que ela atendeu a uma chamada telefônica. Alô? Oi, Helga! É Felinta! Tudo bem? Do outro lado, Helga chorava copiosamente. Não, não está tudo bem! O marido da Magda morreu hoje, acabou de ser enterrado. Felinta fez uma breve pausa, situando, na memória, as figuras de Magda, o marido e os filhos, enquanto ouvia os soluços do outro lado da linha. O que poderia falar? Morreu como? Um ataque cardíaco fulminante! Helga prosseguiu, formulando perguntas que nem Felinta nem ninguém poderia responder: E agora, o que será da Magda? O que vai acontecer com ela? Felinta não sabia o que responder. Lembrou que um dos filhos de Magda era médico, que encontrariam modos de continuar os cuidados com a mãe. Nada consolava a prima mais velha, na outra ponta da ligação. Felinta resolveu mudar o rumo da conversa, numa tentativa de acalmá-la: E os netos, como estão? Helga respirou, mudou o tom da voz, contando que um dos netos estava começando um curso de graduação numa universidade pública, que todos estavam bem, com saúde, felizes. Mas o marido da Magda fora enterrado no final da tarde, e agora, o que iria acontecer? E recomeçou a chorar. Algum tempo depois despediram-se, Felinta desejou calma a ela, desejou força para Magda e os filhos, antes de encerrar a ligação. Depois relatou o ocorrido para Rosa que vigiava o sono da mãe enquanto ouvia partes da conversa telefônica.

No dia seguinte, Almerinda ligou para Rosa e contou com calma e afeto sobre a morte do cunhado e os cuidados com a irmã Magda. Disse que confiava nos sobrinhos para tomarem as providências necessárias. E recuperou uma frase muito usada pelos velhos da família: Não me meto, nem dou opinião, se não me pedem. Não poderia ser mais sensata. Estaria tudo bem.

No terceiro dia, Helga chamou novamente, pelo telefone. Dessa vez foi Rosa quem atendeu. Helga ainda chorava muito, desconsolada. Rosa ouviu as perguntas, os lamentos. Concordou que o marido da Magda fora muito dedicado. Então resolveu consolar a prima. É verdade: eles eram tão ligados! Por isso, fique tranquila, que logo ele volta para leva-la. Helga levou um susto. Gastou alguns segundos para assimilar o que Rosa dissera, nas entrelinhas. Reagiu. Não! Isso não! Mas Rosa insistiu, com a voz doce, tranquilizadora. Eu já testemunhei tantas situações assim, com casais amigos, muito ligados entre si. Quando um vai embora, logo providencia de levar o que ficou para trás.

O marido de Helga morrera há muitos anos. Nunca voltou para leva-la. A essas alturas, Helga não sabia o que pensar: o vínculo do marido morto com ela não teria sido forte o suficiente? Ela deveria se lastimar por isso, ou deveria respirar aliviada por ainda estar viva? Preferiu não continuar pensando a esse respeito. Engoliu em seco. Perdeu o fio da conversa com a prima. Perdeu a vontade de chorar. Logo se despediu, mandou um beijo para a velha tia, mãe de Rosa e Felinta. Rosa achou graça da reação da prima. Deu de ombros e foi preparar o lanche para a mãe que não demoraria a despertar do sono da tarde. 

 

 

 

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Estranha inspiração para buscar coragem


Sempre que preciso tomar uma decisão ou fazer algo que me provoque medo, insegurança, gerando ansiedade, me olho no espelho e pergunto “você é uma mulher ou uma barata?”. Respiro fundo e verifico a quantas andam os níveis disponíveis de coragem. Então respondo, olhando diretamente nos meus próprios olhos: “uma barata”. Encho o peito com força e sigo em frente.

Porque as baratas são assim: atrevidas, corajosas, cheias de estratégias e artimanhas. Fazem-se de mortas para fugirem no momento certo. Voam rapidamente, ou deslizam agilmente pelas superfícies construindo labirintos, para escapar aos predadores. 

Tenho muito respeito por elas. E as enfrento como boas adversárias. Por vezes, consigo até vencer os combates. No mais das vezes, elas me driblam nos ataques, deixando-me como a ver navios... No entanto, preciso admitir que o resultado é sempre injusto do ponto de vista delas: a vitória da barata significa apenas que ela escapou à minha investida; já minha vitória resulta sempre em sua morte...


 

A propósito, recentemente uma equipe do serviço de dedetização manifestou alguma admiração por não encontrar quaisquer vestígios de baratas nos diversos cômodos da casa, onde pulverizaram veneno. Em vários itens do relatório consta: nível de infestação – zero.

 

 

quinta-feira, 30 de março de 2023

Um inocente quilo de café

 

Dia de feira, fui até a barraca do seu Aloísio comprar o melhor pó de café que já conheci, moído na hora, com um aroma delicioso. Como faço sempre, cheguei por volta de quinze para as onze, um pouco antes de a feira fechar. Desta vez ele já não tinha nem meio quilo de café disponível. Professora, antes das dez eu já tinha vendido tudo, me falou, entre contente e sem graça por não ter o café para mim. Eu fico é muito alegre, pelo senhor, concluí. Coisa boa ter vendido tudo, não é? Eu é que fiquei só na vontade... rimos.

 

Então ele resolveu propor uma solução: Eu posso levar para a senhora em sua casa; onde a senhora mora? Aqui mesmo nesta rua, seu Aloísio, ali naquele prédio, mostrei a ele. Ele olhou, identificando o lugar como familiar: Ah, é o mesmo prédio do seu Bretas... Eu tenho um vizinho chamado Bretas, só não sei se é o mesmo que o senhor conhece, comentei. Ele é casado com a dona Nair? Acho que sim, me respondeu. Eu continuei tentando identificar o vizinho: Ele teve covid, ficou bem fraquinho depois... Aí seu Aloísio me corrigiu: Na verdade ele ficou bem ruinzinho depois que foi sequestrado, no ano passado; ele teve covid, depois sofreu o sequestro; isso é que acabou com ele. Eu levei um susto. Sequestrado? Como eu não soube disso? Fiquei impressionada com a informação e com o fato de eu não saber, sendo vizinha dele.

 

Combinamos, então, o dia e a hora que seu Aloísio entregaria o café lá em casa, já deixei pago, e voltei, pela calçada, encafifada com a notícia do sequestro. Na portaria, encontrei seu Francisco, aproveitei para conferir a informação. Seu Francisco foi solícito, explicando-me o ocorrido com muito cuidado e respeito à situação do seu Bretas e família: É que, depois que teve covid, ele ficou com uma alteração muito grande de comportamento... ficou agressivo, tinhas umas reações muito estranhas, às vezes ameaçadoras, com qualquer pessoa, a qualquer momento; então a filha, preocupada, resolveu internar num hospital psiquiátrico, onde ele ficou por mais de mês, em tratamento; quando teve alta, ele saiu contando que foi sequestrado, que foi torturado no lugar onde ficou preso... e quando as pessoas não conhecem ele, nem o que aconteceu, acreditam nessa história... é o que ele conta para todo mundo.

 

Eu, que já estava impressionada com a história do sequestro, fiquei ainda mais tocada com o desdobramento dos fatos, da internação no hospital psiquiátrico e da história criada por ele. Eu sabia que ele fora internado por longo período, por duas vezes, em razão da covid, mas não tinha noção da extensão do quadro.

 

Chegando em casa, contei o ocorrido para Ana, que trabalha comigo e conhece bem a família do seu Bretas e dona Nair. Ela ouviu com atenção e também ficou impressionada. Mas, um pouco depois, matutando sobre o relatado, chegou a uma outra possibilidade: Sabe que é capaz de a própria filha ter dito a ele que ele foi sequestrado e depois resgatado pela família, para ele não saber que estava num hospital psiquiátrico? Considerando o modo como a filha lida com os pais, é bem possível que ela tenha inventado essa história para ele, e a dona Nair tenha ajudado; pois eles são assim, inventam histórias para não ter que lidar com os fatos como são... as coisas acontecem, depois elas contam outra coisa que não é o que aconteceu...

 

Essa história toda já envolveu mais ação e suspense do que muitos filmes a que tenho assistido por aí. Por hoje, deu. Eu só queria um inocente e saboroso quilo de café moído na hora, da banca de seu Aloísio... e, por esse, terei de esperar até amanhã...

 


(Em tempo: os nomes das pessoas citadas foram inventados).

 

domingo, 26 de março de 2023

Razões para chorar numa colação de grau

 


Quando concluí minha primeira graduação, numa instituição pública, ainda em pleno regime militar, não participei da colação de grau. Não tinha motivações para tanto. O reitor era capitão de mar e de guerra, oficial da marinha. Minha geração na universidade tinha mantido o embate com ele em greves duradouras, a despeito das ameaças, e da presença policial no campus. Por isso, preferi viajar dentro da programação do Projeto Rondon. Quando retornei, segui direto para minha cidade natal. Mas desta vez, concluindo minha segunda graduação, quatro décadas depois, decidi que participaria da cerimônia, mesmo se tratando de mera formalidade, porquanto o diploma não tenha mais versão impressa, sendo apenas um arquivo digital.

Queria vestir a beca e colocar o capelo, sentar-me entre colegas concluintes, perceber, como participante, o ritual. Confirmei, assim, a participação e, no sábado, no horário indicado pelo cerimonial, compareci ao ginásio anexo ao teatro, para as orientações e providências que antecipavam o ritual. A gestão da formatura era responsabilidade de uma empresa especializada em eventos dessa natureza. É como procedem as instituições de ensino da iniciativa privada, terceirizando essas produções.

Depois de devidamente vestida e de muitas fotografias prévias (o que também merece um texto à parte), chegamos ao palco para as orientações e ensaio. A coordenadora, que trajava uma roupa preta e um par de mule de couro preto, sem salto, aparentemente um número menor, pois o pé ficava parcialmente para fora, caminhava para lá e para cá, explicando cada etapa do ritual. Portava autoridade no gesto, afirmava-se diante do grupo. Repetiu várias vezes que tinham preparado com muito carinho aquele momento, com cuidado para garantir que todos ali ficassem emocionados. A esse respeito, foi taxativa: “hoje, eu vou fazer vocês chorarem!” Aquilo me pareceu um tanto agressivo. Mas não dei muita importância. Já estava lidando com uma lógica muito distinta daquela à qual estou acostumada: ali, tratava-se de um espetáculo que se vende como mercadoria. Tudo ali resultaria em entradas de divisas para a empresa, inclusive cada fotografia tirada, que integrará um álbum nem um pouco barato a ser vendido a cada pessoa que tenha estado ali. O assunto também mereceu um aparte: Recebam bem nosso representante e comprem o álbum!.

Mas eu não consegui me desligar da ideia de que ela nos faria chorar, como projeto, com planejamento e, ao que tudo indicava, experiência no assunto.  

Quando, afinal, foi dado início ao evento e cada participante entrou, ocupando seu lugar no palco, um jogo de luzes multicolorido com movimentos velozes tomou conta do espaço do teatro e uma música estremeceu todas as superfícies. O volume ultrapassava em muito o nível máximo de decibéis apontado como minimamente recomendável. Os graves faziam vibrar minha caixa torácica. Eu comecei a sentir dor de cabeça e um pouco de tontura. Como ainda levaria algum tempo até que todas as pessoas ingressassem, pedi a alguém da equipe para baixar um pouco o volume, explicando que eu não me sentia bem. A pessoa me disse que não era possível atender ao meu pedido. Evidentemente que era possível, respondi, além do quê eu estava me sentindo mal. Ela afirmou ser aquele o protocolo. Reiterei que não me sentia bem. Que eu saísse então, ela me disse. Que não, era minha formatura, afinal, respondi, bastava que baixassem o volume do som. E acrescentei: vou ficar sentada, e taparei os ouvidos; mas vocês estão errados; esse volume do som é uma violência a qualquer organismo.

Sentei-me e, com os dedos, fechei a entrada dos ouvidos. O som chegou-me com um pouco mais de conforto. Algum tempo depois, a música foi retirada, dando-se início às várias etapas a serem cumpridas: hino nacional, discursos, juramento, homenagens. Como a trilha sonora era sempre intercalada com falas, o volume passou a um nível administrável.

Nesse ínterim, a coordenadora da produção, a tal moça com o par de mule preto menor que seus pés, passava entre as pessoas perguntando: “Tudo bem? Vocês estão bem?”. Procurava por quem estivesse chorando e distribuía lenços para que se enxugassem as lágrimas. Ela queria que as pessoas chorassem, estava preparada para esse resultado, não importava a que preço. Dei-me conta, então, que a música naquele volume fazia parte do projeto de “emocionar e fazer chorar”. O impacto físico do volume sonoro, sobretudo dos graves, fazia parte da indução ao choro. No meu caso, eu beirava o choro, mas não pela emoção com a formatura; ao contrário, eu quase chorava pela raiva que o mal-estar provocava e pela indiferença da produção à questão.

Mais ao final, passou-se à entrega dos canudos, quando cada pessoa foi chamada, individualmente. A música voltou ao volume ensurdecedor, com uma breve pausa para a chamada, ao microfone, de cada nome. E a moça veio perguntar se estávamos bem. Respondi que não e pedi para baixar um pouco o volume. Ela me olhou firmemente nos olhos, com uma expressão meio irônica. Talvez quisesse saber porque eu não estava chorando... Repeti-lhe o pedido para baixar. Ela perguntou: “É?” Já bem irritada, disse-lhe que sim, que se não baixassem o volume eu faria um escândalo, pois estava passando mal. Depois de uma pausa, mantendo o controle da situação consigo, ela se retirou. Já chamavam pelo meu nome. Segui para pegar o canudo. Do outro lado, profissionais da fotografia me aguardavam para registrar o momento. Eu estava contrariada e não considerei a possiblidade de mudar minha expressão. Voltei ao meu lugar, no palco, sentei-me, deixei o canudo no colo e tapei os ouvidos com as mãos. Algum tempo depois, percebi que o volume diminuiu um pouco. Contudo, sentia mais conforto com os ouvidos tapados. Assim permaneci até o final, quando se encerraram os trabalhos, as cortinas foram fechadas e as pessoas foram encaminhadas, com as famílias, para a última sessão de fotografias.

Muitas pessoas choravam. Era um momento, sem dúvida, de grandes alegrias. A música, finalmente, cessou. Levei comigo o canudo vazio. Ainda aguardo pela emissão do diploma digital devidamente registrado no Ministério da Educação, que me confere o título de bacharel em filosofia.