sábado, 30 de novembro de 2019

Receita infalível para criar machistas



Na rodoviária. Uma mulher magra, meio desorientada, empurra uma mala muito grande, acompanhada de duas meninas pequenas e um menino maiorzinho. Ele, provavelmente, com uns 9 anos. A menina do meio com uns 6 e a pequena com não mais que 4. O menino tem uma postura de homem grande. É o chefe. As meninas traquinam em torno da mãe, sob o olhar de reprovação dele. A mãe pede que ele vá a algum lugar para fazer algo. Ele olha com impaciência. Ela tenta exercer alguma autoridade sobre ele, ao que ele responde com uma postura corporal de deboche. Caminha, displicente, na direção apontada por ela, enquanto ela tenta organizar as meninas. Pouco tempo depois, ele retorna. Senta-se na mesma cadeira onde já está sentada a menina do meio. Ele a empurra, e se acomoda, ocupando mais espaço que ela, no assento. Ela se apoia na mala, ao lado, e derruba uma pequena valise. Levanta-se para recoloca-la no lugar. O menino desliza o corpo, ocupando todo o assento. Ao retornar, menina reclama, quer seu lugar de volta. Ele olha duro para ela. Não recua. A mãe, sentada em outro lugar, repreende a menina, ela deve deixar o irmão quieto. Chama para que se sentem juntas, ela e as duas filhas. As meninas conversam entre si, brincam, ambas sentadas no colo da mãe. Pela conversa, parece que estão de mudança. As meninas perguntam como será a nova casa onde morarão. A mãe tenta explicar. Sua voz é frágil. Parece querer chorar. Onde estaria o pai daquelas crianças? Senhor e dono do banco, o menino abre os braços e as pernas. Observa à sua volta com autoridade, como se dominasse o mundo. Tenta convencer a mãe de que o ônibus no qual embarcarão mudou o horário. Informação errada, que a mãe corrige. Mas ele não aceita. Diz que ela não sabe olhar direito, adverte para que ela preste atenção. A mãe não faz caso. As meninas perguntam onde se sentarão no ônibus. Ela explica que a pequena irá com ela, e a menina do meio e o menino sentarão no mesmo banco. O menino olha duro para a mãe e afirma: eu não me sentarei com ela. A mãe não responde. A menina se achega a ele, dizendo que irão juntos, sim. Ela ri. Ele lambe o próprio dedo e passa no rosto dela. Ela reclama, novamente, volta para o colo da mãe. O menino continua com ares de machinho alfa. Quando o ônibus chega, é ele quem leva a mala para despachar, enquanto a mãe organiza as meninas. A mãe está confusa. Não sabe ao certo como proceder. Ele observa as irmãs e a mãe com impaciência e superioridade.

E eu? Observo a tudo, com vontade de dar umas chineladas no menino. Não sem antes dar uma boa sacudida na mãe. Embarco no mesmo ônibus. Mas nos sentamos distantes. Para meu alento.





terça-feira, 26 de novembro de 2019

Ontem eu bati de frente com a falta de cidadania. Não foi a primeira, nem será a última vez...



Pensei em iniciar este texto afirmando: “Ontem eu bati de frente com o Brasil”. Mas, ao iniciar a escrita, percebi que estava sendo injusta com muitos outros brasileiros cujas condutas são irreparáveis. Seria injusta, por exemplo, com o motoqueiro que, também ontem, além de parar na faixa de pedestre enquanto uma senhora idosa atravessava a rua, tratou de sinalizar com os braços para que os demais motoristas a vissem, cuidando da segurança da pedestre. Em pensamento, agradeci, novamente, ao cuidado solidário do motoqueiro, e apaguei a primeira frase, para reiniciar a escrita:

Ontem eu bati de frente com a desonestidade e a falta de cidadania. Ontem eu bati de frente com um comportamento que tem se expandido nos últimos tempos. Saí um pouco esfolada. O protagonista do episódio acredita ter levado vantagem. Perdemos, a comunidade como um todo. Explico-me.

Precisei ir ao cartório, reconhecer minha firma num documento. Cartórios integram uma rede de instituições que dão fé e certificam a legitimidade de documentos os mais diversos. Concentram poder econômico, político e negociações inimagináveis. Funcionam de modo muito alheio à compreensão da maioria das pessoas.

Fui caminhando. Chovia um pouco, e a sombrinha cumpria a função muito mais de proteger o documento do que me proteger do frescor das poucas gotas que umedeciam a brisa. O cartório estava cheio de pessoas que aguardavam ser atendidas. Peguei minha senha e observei na tela onde se viam as chamadas. Havia 10 senhas à minha frente. Sentei-me e também aguardei. Não demorou muito para que eu fosse chamada. Tudo muito simples e rápido, para um valor tão alto a ser cobrado. 

Enquanto a moça atualizava meus dados cadastrais, um homem chegou, logo atrás de mim, querendo falar com a atendente no balcão onde eu me encontrava. Interrompeu meu atendimento, mostrando um documento, e indagando por um sinal público solicitado. Alegava ser aquela a terceira vez que ele ia buscar. A moça explicou que já tinham em mãos o sinal, e indicou para ele pegar a senha e aguardar, que seria chamado.

Eu já estava um pouco irritada pelo fato de ele ter interrompido meu atendimento sem sequer pedir licença. Mesmo assim, assisti a tudo com paciência quase professoral. No entanto, àquela altura da conversa, ele piscou o olho direito para a moça e perguntou, com voz macia e quase sussurrada, se ela não poderia atende-lo sem que precisasse entrar na fila. "Dá um jeitinho?" Eu olhei para a moça, que me olhou e não respondeu. Olhei para o homem e aguardei. Ele insistiu no pedido, de modo determinado. Não arredaria do intento. A moça me olhou, não respondeu. Na terceira investida do homem, eu lhe disse, também com voz macia, como se falasse com um estudante indisciplinado: “Meu irmão, pegue a senha, entre na fila, faça o certo!” Então ele resolveu convencer a mim quanto ao fato de que ele teria o tal direito. Afinal, era a terceira vez que ele ia ao cartório em busca do sinal público! Eu repeti: “Meu irmão, aqui tem gente que já veio não sei quantas vezes, tem pessoas de idade, tem gente com criança, tá todo mundo na fila. Pegue a senha, entre na fila, meu irmão!” Quando ele insistiu novamente, eu perdi a paciência e soltei a voz, de modo que todos ali à volta pudessem ouvir. Ela reverberou pela sala lotada. Senti um silêncio no cartório. Perguntei se ele queria mesmo furar a fila, se ele achava que tinha o direito de passar à frente de todas aquelas pessoas. Dirigi-me aos presentes: “Ele quer passar na frente de vocês! É isso mesmo?” E lembrei a ele que aquela prática era corrupção. "Pegue a senha, meu irmão!" Então ele disse: “Eu já peguei a senha” e sorriu, vitorioso, acreditando ter me enganado.

A moça finalizou o atendimento. Eu precisava pagar pelo serviço, e segui para a fila do caixa. Um senhor chegou ao meu lado, sorrindo. “Sua voz é forte, heim? E você é brava!” Buscava minha cumplicidade. Mas eu sabia que, em última instância, ele estava mesmo ao lado do homem-fura-fila. Dali, avistei o homem em pé, convencendo outro atendente para dar prioridade a ele. Ele percebeu que eu o observava, exatamente no momento quando ganhou a conivência do funcionário, que o atendeu. Ocorreu-me então que, provavelmente, não fosse a minha reação, a moça o tivesse atendido, como prática comum ali. 

Depois de atendido, o homem veio para a fila do caixa, logo atrás de mim. Movia-se, vitorioso. Debochado, começou a falar que não gostava de gente do PT, que era Bolsonaro mesmo. Para que searas se encaminha o discurso de uma pessoa que fura filas? Respondi que não, ele estava enganado, ele era cara de pau.

Voltei à rua. Já tinha parado de chover. Segui caminhando até a agência dos correios mais próxima, onde fui atendida por uma senhora gentil e ágil. Agradeci por seu atendimento, desejei-lhe uma boa semana.

Sinto vergonha de comportamentos como o daquele homem. Mas também do comportamento de funcionários que passam à frente uns em detrimento de outros. Sobretudo sinto vergonha pelo comportamento de todos os demais clientes ali, sentados, passivos ante o que se passava. Quantas pessoas passariam à sua frente, por ter decidido suas prioridades podiam se sobrepor a todas as demais. Sinto vergonha também do cinismo do senhor que veio conversar comigo, como a mostrar coragem em se aproximar de alguém tão indômita quanto eu...

Mas me sinto agraciada por encontrar, pelos caminhos, pessoas como o motoqueiro que não só pára na faixa de pedestres, como ajuda a preservar a segurança da transeunte, alertando os demais motoristas para pararem também. Ou a senhora gentil dos correios, agilizando o atendimento dos clientes, na postagem de cartas, encomendas, documentos.

Os esfolados pelo corpo cicatrizam-se, embora deixem marcas na pele, no caminho, nos sonhos... No decurso do tempo, são muitas as histórias cartografadas pelas marcas no corpo. Por vezes temo perder as forças. Por enquanto, ainda não. Só uma tristeza me toma de repente, em alguns momentos inesperados. Ou eventualmente o sono cai sobre meus olhos e pensamento de modo indefensável... Mas, por enquanto, ainda estou na arena... e ainda tenho fôlego para fazer reverberar minha voz em salas, salões e outros espaços públicos.





sábado, 9 de novembro de 2019

Cansaço e desalento



8 de novembro de 2019, sexta feira, fim de tarde. A semana foi intensa, com atividades incessantes, e alguns momentos tensos, nos quais foi necessário que eu trabalhasse questões bem difíceis. Os dias e as noites têm sido assim há tempos. E eu tenho me queixado, cada vez mais amiúde, de cansaço. Não só eu. As queixas de cansaço espalham-se como uma patologia social contagiosa que vai atingindo uma parcela importante da população, das pessoas com quem convivo, com quem compartilho, em alguma medida, atividades, projetos, afetos, utopias. Temos nossas energias exauridas, sem encontrarmos solução, antídoto, remédio.

Byung-Chul Han já escreveu sobre a sociedade do cansaço. Jonathan Crary já discorreu sobre os efeitos perversos de uma sociedade que passa a exigir de seus cidadãos estarem despertos e ativos 24 horas por dia, 7 dias por semana. Os argumentos de ambos são consistentes, fundamentados. Mas minha exaustão parece ter mananciais que vão além, a despeito de integrarem, sim, as malhas do contexto em análise pelos dois autores. Eu poderia até praticar meditação, buscar outros subterfúgios, modificar a alimentação: o esgotamento persiste intocado, e me abate.

Mesmo assim, também por razões que tantas vezes me escapam, não desisto nem arredo da labuta diária, defendendo posições, propondo projetos, compartilhando aprendizagens. Pensando e buscando praticar empatia, solidariedade, poiésis...

8 de novembro de 2019, sexta feira, fim de tarde. Eu estava prostrada sobre alguma almofada, em casa, quando passou a ser televisionada a soltura do Lula, depois de quase 600 dias de prisão. Havia expectativa em relação a esse momento. Entre a multidão, ele falava com desenvoltura, energia. Agradeceu a um número enorme de pessoas. Desculpou-se com aqueles cujos nomes, inevitavelmente, teria esquecido. E prosseguiu em seu discurso de improviso, entre alegrias, aplausos, abraços e uma constelação de câmeras fazendo o registro. Com humor mas de modo assertivo, sem perder poder de ataque, posicionou-se em relação a tudo quanto que ele foi e que está sendo submetido, mas, sobretudo, ao que a população brasileira está sendo submetida.

Enquanto assistia à transmissão, outra sequência era repassada na memória: a sessão interminável, na Câmara dos Deputados, para a votação aprovando a abertura do processo de impeachment, pelo Senado, da então presidenta Dilma Rousseff. Um evento de que me evergonho, sem cura, sem lenitivos. Naquele dia, 17 de abril de 2016, eu vi a face mais obscura, amedrontadora da classe política brasileira. Naquele dia, eu vi a face da maioria dos representantes da população brasileira que, mais tarde eu seria obrigada a admitir, de fato representavam, e ainda representam, os anseios e o projeto social de boa parte das gentes nascidas neste país, marcadamente injusto, discricionário, autoritário.

Naquele dia, em abril de 2016, eu entristeci de uma dor que ainda não saiu de mim. A sessão ocorrida no Senado, no dia 31 de agosto de 2016 já não impactou tanto: estava tudo acertado, os resultados haviam sido negociados por antecedência. Não havia o que doer a mais: eu já me encontrava sob a égide da dor.

Desde então, a cada passo, o desmonte de um projeto político social imaginado, depois comprovado como viável, se não plenamente, ao menos em muitas frentes, foi sendo desmontado a passos largos. Nenhum motivo de alegria. Nenhuma brisa para refrescar os dias. Chuvas cada vez mais escassas para dar tom verde à paisagem.

Ontem, 8 de novembro de 2019, sexta feira, fim de tarde, isso tudo reascendeu em minha memória mais funda e mais afetiva. Eu entendi que minha exaustão decorre, sim, do excesso de trabalho, das tensões, das demandas que invadem a vida 24 horas por dia, 7 dias na semana, sem pausa. Byung-Chul Han e Jonathan Crary acertam em suas argumentações. Mas há outra fonte na qual esse cansaço se torna quase incurável. Essa fonte está no desalento, na falta de esperança. E ontem eu lembrei de um tempo quando eu tive esperança. Mais que isso, um tempo quando, com alegria, eu pude celebrar com quantas pessoas pequenas conquistas sociais, no âmbito dos projetos educativos, da arte, da cultura, dentre quantos outros.

Então eu chorei. Chorei muito. Depois dormi profundamente. E consegui sonhar. Um sonho breve, que logo se dissipou para a vida desperta. Mas sonhei.