sábado, 30 de junho de 2012

Discernimentos...


para o Xodó, um gato lindo que habitou minha infância...


Todas as manhãs, eu moía um pouco de milho, para alimentar os pintinhos, sempre numerosos. Mas os frangotes e as galinhas disputavam a quirera com os menores. Estes ficavam sempre em desvantagem no embate. Então minha mãe construiu um cercado de tela, coberto, com uma abertura pequena, rente ao chão, pela qual os maiores não conseguiam passar, mas os pintinhos entravam. Logo eles aprenderam a se alimentar ali. E também as pombinhas, para quem a pequena abertura parecia ter sido feita sob medida. Minha mãe, que achava um desaforo que se moesse quirera para dar aos pombos, colocou o gato em ação. Atenta, quando avistava alguma pomba no cercadinho dos pintinhos, imprimia certo tom reconhecível na voz: “Xodó, Xodó, Xodó, Xodó!”. O gato, de pelos muito brancos e espírito predador, atendia ao chamado. Num piscar de olhos, estava dentro do cercadinho, com a pombinha em suas garras, sem ofender um pintinho sequer. Foi considerado aliado de minha mãe, até o dia em subiu num pé de erva, alcançando uma casinha de João-de-barro, abocanhando o passarinho construtor. Minha mãe fez o flagrante, e deu uma surra no Xodó. Pombinha pode, mas João-de-barro não pode! Como o pobre gato poderia compreender? Na dúvida, melhor fugir...





quinta-feira, 28 de junho de 2012

Eros e Thanatos também vieram tramar à beira dos caminhos




Em 2011, dentro das atividades desenvolvidas na Oficina dos Fios, iniciamos uma ação coletiva, aberta, de intervenção na cerca em torno da matinha, no campus universitário onde trabalho. Os espaços ocupados ficam à margem das calçadas cobertas, por onde transitam as pessoas da comunidade universitária, e demais usuários daquele espaço. Tramas à beira dos caminhos, assim foi batizada a ação.

Desde 2011, venho observando a ação do tempo sobre as primeiras intervenções. Em que consiste essa “ação do tempo”? Imaginava, eu, de um modo quase ingênuo, que poderia enumerar alguns itens sob essa categoria: efeitos das variações climáticas e dos ciclos dia/noite sobre o trabalho, ações de animais de pequeno e pequeníssimo porte (penso nos macacos, em formigas, etc.), e também na ação de pessoas subtraindo peças, objetos (afinal, expostos em espaço aberto, disponíveis em certa medida).

Na medida do tempo passando, as linhas e fitas, os cordões e tecidos foram perdendo o brilho que lhes dava uma vivacidade inicial, mas foram sendo integrados à paisagem. O adventício, inaugural, que ainda não foi incorporado ao seu contexto, tem as feições do estranhamento. Precisa aprender a ser ali. E aprender a ser ali pressupõe, também, certo borramento entre aquilo que diferencia o que chega em relação ao que já está desde antes (desde quando?). Se as tramas perderam o brilho, ganharam feições de pertencimento, tecidas/tramadas na passagem do tempo, das horas, dos dias...

Em 2012, retomamos, com outro grupo, as intervenções, na mesma cerca, adiante. Ao lado dos trabalhos amadurecidos, novos brilhos se instalaram, para iniciar o lento processo de integração ao espaço. Ressalto a alegria que marca esses momentos da ação: fios e tecidos coloridos, conversas, risos, movimento. E o prazer em observar as formas tecidas/bordadas integrando o lugar.

Então me deparei com um novo item a ser incluído no rol dos fatores que intervêm na “ação do tempo”: a ação humana, impaciente, prenhe de afetos, desejos, urgências, precipitando processos, antecipando corrosões (talvez devesse incluir, na lista, um item para animais de grande porte...).

Pois bem, apresento os fatos: poucos dias depois de realizados, quase todos os trabalhos sofreram a ação de algum instrumento de corte agilmente conduzido por mãos passantes. O fio da lâmina deixa marcas pouco orgânicas. Não é rasgo, não é desgaste. Fala de um gesto que não quer esperar, que antecipa um efeito de desfazimento, que interrompe os fluxos aqui, agora. É trama, mas é trama brusca, que vocifera: “Não!”.




Quando nos dispomos a tramar à beira dos caminhos, é preciso lembrar que contaremos com a companhia não apenas de Eros: Thanatos também quer participar...



quarta-feira, 27 de junho de 2012

Beira Mar (Riacho de Areia)



Cantiga popular do Vale do Jequitinhonha, MG, gravada por Dércio Marques, que se foi, hoje, fazer cantorias do lado de lá. Adeus, adeus... saudades...

Beira mar, beira mar novo,
Fui só eu é que cantei
Ô Beira Mar, adeus Dona
Adeus Riacho de Areia
Adeus, adeus
Toma, adeus
Eu já vou m’embora
Eu morava no fundo d’água
E não sei quando eu voltarei
Eu sou canoeiro

Eu não moro mais aqui
Nem aqui quero morar
Ô Beira Mar, adeus Dona
Adeus Riacho de Areia
Adeus, adeus
Toma, adeus
Eu já vou m’embora
Eu morava no fundo d’água
E não sei quando eu voltarei
Eu sou canoeiro

Vou descendo rio abaixo
Numa canoa furada
Ô Beira Mar, adeus Dona
Adeus Riacho de Areia
Adeus, adeus
Toma, adeus
Eu já vou m’embora
Eu morava no fundo d’água
E não sei quando eu voltarei
Eu sou canoeiro

Rio abaixo, rio acima
Tudo isso já andei
Ô Beira Mar, adeus Dona
Adeus Riacho de Areia
Adeus, adeus
Toma, adeus
Eu já vou m’embora
Eu morava no fundo d’água
E não sei quando eu voltarei
Eu sou canoeiro

Procurando amor de longe
Que de perto já deixei
Ô Beira Mar, adeus Dona
Adeus Riacho de Areia
Adeus, adeus
Toma, adeus
Eu já vou m’embora
Eu morava no fundo d’água
E não sei quando eu voltarei
Eu sou canoeiro




terça-feira, 26 de junho de 2012

essa tal de pós-modernidade...



O professor é marxista. Quando fala sobre Marx, seus olhos brilham do mesmo modo que brilham os olhos de alguns crentes em sua fé cristã. E em seu gesto ressoa uma crítica discreta endereçada aos colegas que não compartilham do mesmo entusiasmo em relação ao marxismo. Burgueses, pensa, sem confessar.


A greve foi se espalhando: entre professores, funcionários técnico-administrativos, estudantes. As discussões foram ganhando espaço: educação pública, financiamento da educação, a universidade que queremos, etc. Novas gerações de professores e estudantes, que nunca haviam participado de mobilizações antes, começaram a construir novas aprendizagens.


O professor marxista, que não declarou nem a adesão nem o voto contrário à greve, marcou prova para os alunos de sua turma. No silêncio da unidade acadêmica esvaziada, os mais assustados compareceram, temendo represálias. O professor não quer correr o risco de ter prejudicada uma viagem internacional programada desde antes da greve.


Burgueses...


PS.: ele não está sozinho...





segunda-feira, 25 de junho de 2012

hibisco (*)







(*) Por um descuido na postagem, esqueci da letra "h" na palavra hibisco. Que me perdoem os que observaram o lapso, finalmente corrigido. Os hibiscos continuam belos... ainda bem. Obrigada, Encantado, pela observação!



sábado, 23 de junho de 2012

Para aprender uma cidade



Para Tereza Caniatti, Luiz Marques de Lima, e minha amada Rutinha, que me apresentou a Brasília, e nela construiu um lar aconchegante, no qual há um cantinho guardado para mim, há mais de três décadas.

Não demora muito e já se terão passado 40 anos da primeira vez que estive em Brasília. Era grande a expectativa para conhecer a capital do país, ainda cheirando a nova, anunciando o futuro, endereço certo dos sonhos de quantos brasileiros... Mas, quando cheguei, custei a ver a cidade: casas e prédios poucos, baixos, dispersos entre árvores do cerrado. Aquilo era a cidade? Tinha até manchas de pasto jaraguá na área central!

Durante quase 30 anos, meu pés encardiram-se naquela terra vermelha, e os olhos se queixaram da baixa umidade do ar, sobretudo entre os meses de agosto e outubro. Da adolescência à vida adulta, a cidade cresceu, a população multiplicou-se, muitos prédios foram construídos, as ruas passaram a ser disputadas por um número cada vez maior de veículos (a bem da verdade, essas foram as feições que se imprimiram a todos os centros urbanos nas últimas décadas). Em seus espaços públicos, aprendi a participar das mobilizações populares, a construir cidadania, a integrar as cenas da arte e da cultura: grandes concertos abertos, grupos de teatro minimalistas, cinema em praça aberta, exposições de gravuras sobre o gramado. Tomando a rodoviária como ponto de partida, transitei pelo país, indo e vindo: áreas indígenas, comunidades diferenciadas, o Brasil de dentro, o Brasil do litoral. Atuando como professora, instalei-me numa de suas cidades satélites mais distantes, e dali, usuária dos ônibus urbanos, cumpria o percurso centro-periferia diariamente. O trânsito era garantia também de renovação, respiração, transformação. Anos mais tarde, voltei a ser moradora do Plano Piloto, mas continuei trabalhando na cidade satélite, invertendo os sentidos e horários de trânsito, nos velhos ônibus urbanos de que continuava sendo usuária. Uma coleção de histórias se acumula em minha memória, relativa a esse período: inusitadas, assustadoras, dolorosas, alegres, engraçadas. Como é a vida, afinal.

Aos poucos, fui aprendendo as demais cidades satélites. A interlocução com as escolas, seus professores e alunos, o encontro com as comunidades e suas produções artístico-culturais me davam a dimensão humana e sensível das gentes e seus viveres. As viagens de ida e de volta, cansativas quase sempre, impunham-me a condição de reflexão, meditação... Como é possível meditar a bordo de ônibus lotados, que vão soluçando pela estrada, de parada em parada? Como é possível meditar, quando se está cansada, com sono, a ponto de, por força das condições, aprender a dormir em pé, mal e mal apoiada na barra de metal por trás do banco mais próximo? Essa é das nossas, sorri meu aluno quando ouve minhas histórias. Morador de periferia, gasta mais de duas horas para chegar à universidade, todos os dias.

Foi assim, que eu aprendi a cidade. Cidades são como poemas, como romances: a gente lê, estranha o jeito da escrita, insiste na leitura, aprende, e constrói afinidades, ou não. As cidades são construídas, quotidianamente, pelas pessoas que nelas vivem. E não é com tijolo e cimento: é com suas próprias vidas pulsantes. Nossos afetos pela cidade nutrem-se dos vínculos que estabelecemos com quem compartilhamos esse viver na cidade.

Quando me mudei para outra cidade, fui estabelecendo os novos vínculos, necessários para que eu me encontrasse nela e com ela. Para aprendê-la, foi necessário decifrar seus fluxos, suas escritas, seus tempos; conhecer suas gentes, seus modos, seus acordes; atentar para as paletas de cores, as pausas, as texturas. Inserir-me nela, a despeito de todo estranhamento inicial que ela tenha provocado às minhas expectativas.

Moro quase no centro, trabalho quase fora da cidade. Os fluxos de trânsitos cada vez mais me parecem insanos (em qual cidade com mais de um milhão de habitantes esses fluxos não são insanos?). Com as chuvas, as ruas transformam-se em corredeiras ameaçadoras. Mas os finais de tarde quase sempre são lenitivos para os dias cansativos. E os falares das gentes embalam os ouvidos, com críticas humoradas, observações curiosas, olhares pausados.

Ao contrário de Brasília e seus traçados quase cartesianos, as escritas desta cidade seguem linhas curvas, em arabescas redes de deslocamentos. Sinto vertigens, por vezes. Aprendo a me perder e me reencontrar. Aprendo a me divertir com isso. Vou plantando vínculos na cidade, de modo que me surpreendo caminhando rapidamente, sem pensar para onde vou, internalizado em meus passos o mapa dos percursos. E reconheço a voz da vendedora antes de avistar-lhe as feições. Pertenço. Assim como pertenço a Brasília, instalada em mim como espaço-tempo, vínculos, escrita, movimento. Porque aprendi.

E estando fora, aprendi o que ainda não tinha aprendido sobre Brasília, enquanto estive dentro: que a ela não são endereçados apenas os sonhos do futuro, da terra prometida, mas dela são cobrados esses sonhos. E como ela é não mais que uma metrópole a mais nos conturbados cenários metropolitanos contemporâneos, a frustração dos sonhos custa-lhe mais cara do que às outras cidades. Sobre ela sobrepesam, de um lado, o desconsolo que resultou da perda, pelo Rio de Janeiro, do status de capital do país, de outro, o desamparo ante a constatação de que Utopia é não-lugar, e seu endereço não está no Planalto Central.

Nos últimos anos tenho intensificado trânsitos: Rio de Janeiro, São Paulo, Vitória, Recife, Campo Grande, Brasília, Goiânia, Belo Horizonte, Salvador, outras cidades de menor porte... Todas com escritas tão peculiares... Cada qual a articular complexos romances jamais escritos, entretecidos nas histórias sem fim de suas gentes, que se encontram e desencontram nos olhares, nos falares, nos cantares, nas salas e alcovas, nas ruas, nas calçadas descontínuas, nos passos apressados, em pausas necessárias, em balcões e vitrines, no curso dos dias, no sol posto, nas sombras das noites e seus mistérios...

Brasília é assim... As cidades são assim... Convites vivos à leitura, e à participação ativa em seus enredos. As cidades são nossos escritos em suas faces, por dentro de suas veias.

Afinidades se constroem, muito mais por escolha que por contingência. O viver nas cidades se aprende, como se aprende a compor poemas, melodias, tatuagens sobre a pele...




terça-feira, 19 de junho de 2012

o Sistema Solar e o átomo…



... não consigo parar de pensar no Sistema Solar como um átomo...
de que molécula de que tecido de que organismo faríamos parte, afinal?




domingo, 17 de junho de 2012

Algumas memórias (nem um pouco glamurosas) da ECO 92




Eu trabalhava na antiga Fundação Educacional do Distrito Federal. Nós professores estávamos em greve, num embate muito difícil com o governo distrital. E a situação da equipe por mim integrada era particularmente delicada, pois participávamos de um projeto que atendia meninos e meninas em situação de risco, em funcionamento num circo no centro da cidade. Dele tomavam parte várias Secretarias: de Saúde, do Serviço Social, de Segurança, de Cultura, além da área de Educação. Mas entendíamos que nossa posição política também era referência de formação para os nossos estudantes, e por isso decidimos lidar com as tensões que a situação nos colocava.

Ao mesmo tempo, o país se mobilizava para participar, no Rio de Janeiro, da ECO 92. E a direção do projeto decidiu que um grupo dos nossos estudantes não ficaria de fora do acontecimento. Dois professores de teatro prepararam uma apresentação cênica que tratava da condição dos meninos, de animais ameaçados de extinção, de meio ambiente. Foram providenciadas algumas participações do grupo em programações paralelas ao evento oficial. Eu fui chamada a acompanhar o grupo, considerando que era coordenadora pedagógica do setor de escolarização, e tinha ascensão sobre os meninos. Dada a excepcionalidade da situação, acolhi a missão.

Fui informada que teria hospedagem no Rio de Janeiro, e contaria com o suporte dos professores responsáveis pela formação do grupo e produção da apresentação. Éramos duas professoras, três professores, e doze alunos, todos rapazinhos.

Quando chegamos, de ônibus, ao Rio de Janeiro, soubemos que ficaríamos hospedados na antiga FEBEM, em Quintino Bocaiúva, todos num único alojamento coletivo, dormindo em beliches, sem acesso a telefone e outros modos de comunicação. Dias muito difíceis se desenrolariam, então. A cidade encontrava-se numa espécie de convulsão: gentes de todas as partes não queriam perder o melhor lugar na arquibancada para assistir alguma coisa que ninguém, de fato, sabia ao certo o que seria, mas que acreditavam ter uma importância história e uma potência transformadora – de que mesmo? Os meninos foram contaminados pela febre coletiva, e nós, que os acompanhávamos, éramos responsáveis por sua segurança, em uma situação de muita vulnerabilidade, sem dispor de muitos recursos para lidar com aquela situação.

Desde esse lugar periférico, marginal, internados numa instituição voltada para menores infratores, a ECO 92 nos parecia uma farsa de mau gosto, capaz tão somente de provocar desconforto, além do espetáculo midiático que atendia a projetos outros, de natureza política e econômica, dos quais não tínhamos qualquer participação. As apresentações do grupo de teatro aconteceram de modo precário, para públicos distraídos.

Ao final de alguns dias, retornamos para o Distrito Federal. Os meninos vinham radiantes, depois de terem conhecido o mar, a Lapa, o Pão de Açúcar, Copacabana... Eu retornei ao movimento grevista, que durou mais algum tempo. Sua conclusão também resultou em frustração: voltamos ao trabalho, às rotinas de reposição de aulas, sem quaisquer dos ganhos reivindicados. Durante a última assembleia, sentindo o peso da frustração, decidi que não sucumbiria a lamentações, que não gastaria minhas energias com queixumes: trabalharia duro para sair daquela situação, buscando condições mais dignas para atuar.

Seria coincidência (penso que não) o que acontece exatos vinte anos depois? Hoje, junho de 2012, a Rio+20 capitula frustrando expectativas de militantes, sonhadores, gente que alimentava algum entusiasmo com o evento. Hoje, também, nós professores das universidades federais estamos em greve, juntamente com os funcionários da área técnico-administrativa, e os estudantes, para explicitar a necessidade de se rever as condições salariais, de trabalho, os projetos do ensino superior, público e de qualidade.

A FEBEM, em Quintino Bocaiúva, no Rio de Janeiro, agora se chama Fundação Centro Brasileiro Infância e Adolescência Quintino Bocaiúva. Se mudaram os nomes, a situação dos menores em situação de risco no país não conheceu melhora desde então. Tampouco a dos professores...



sábado, 16 de junho de 2012

Libélulas



antes de acasalar
duas libélulas brincam
nas águas do ducha-car


Terra Gwayá, 2 de junho de 2012



quinta-feira, 14 de junho de 2012

luz do sol



Luz do sol que a folha traga e traduz
em verde novo, em folha, em graça,
 em vida, em força, em luz...
Caetano Veloso



quarta-feira, 13 de junho de 2012

O trem da História só passa uma vez



Para os  estudantes que vão redescobrindo
 o poder político de seu grito,
 de seu gesto, de sua determinação.

Ingressei na universidade no primeiro semestre de 1980. Tinha ainda 17 anos, e logo me deparei com uma greve deflagrada pelos estudantes. Os anos mais duros da ditadura militar começavam a perder força, mas ainda não tínhamos o direito ao exercício democrático nas diversas instituições. Mas no DCE, o direito à voz era assegurado, e as decisões eram tomadas com base no voto. Mesmo sabendo que havia os dedo-duros infiltrados, que denunciavam militantes, ações programadas, etc.

As primeiras lições de cidadania foram logo ganhando lugar. O trem da História só passa uma vez, e é preciso assumirmos posição.

Àquele tempo, nosso antagonista tinha feições claras, vociferava ameaças abertamente, e cumpria o prometido quase sempre. Nossas assembléias mobilizavam milhares de estudantes, e não raro eram compartilhadas por políticos de esquerda que nos apoiavam. Em volta, centenas de soldados com cães nos vigiavam, prontos a atacarem, à menor alteração de humor, ao menor indício de que já fosse a hora de dar um basta.

Durante os quatro anos do meu curso de graduação, atuei num grupo de teatro estudantil, participei de um sem número de assembléias, e lancei-me com força a toda a mobilização de coisa de duas ou três greves de estudantes. Nessas greves, não contávamos com o apoio dos professores, que registravam nossas faltas nas aulas, e ameaçavam nos reprovar, o que poderia redundar em jubilamento. As palavras de ordem pediam contratação de professores, verbas para os cursos, e democratização da instituição, entre outras coisas.

Muitos jovens saíram do movimento para assumir carreiras políticas. Alguns ocupam, hoje, cargos executivos no governo federal. Seus discursos mudaram um tanto. Suas práticas ainda mais. Nem tudo é linear, nem todas as relações são claras. Eu não cometeria a ingenuidade de pensar que todos, àquela época, fossem movidos pelo mesmo ideário que me movia, e que vinha marcado por valores morais e éticos depurados. Muitos interesses nem sempre revelados estavam em jogo. Mas havia uma força outra, do coletivo, que parecia prevalecer, uma solidariedade que imprimia o tom das mobilizações acima de motivações outras, possíveis, prováveis.

Concluído meu curso, afastei-me da vida acadêmica durante uma década, atuando na educação básica. Ali também as greves ocupavam os calendários letivos, em embates que, embora sofridos, potencializavam nossa energia e vontade de lutar por uma sociedade mais democrática, justa, por um projeto de educação de qualidade, por condições melhores para se ensinar e aprender. Foram muitas as passeatas pelo centro da cidade, assembléias em frente ao Congresso Nacional, no estacionamento do Estádio Mané Garrincha. Milhares de professores levantavam a voz e o braço. Eu fazia parte daquilo, e isso me dava força para prosseguir.

Em meados dos anos 90, voltei à universidade, para fazer o curso de Mestrado. O reitor, nesse período, já era eleito pelo voto de professores, estudantes e funcionários. A democracia chegara à instituição universitária, afinal, como sonháramos há pouco mais de uma década. Contudo, surpreendi-me com a informação de que o DCE se havia desarticulado. Pior: nas últimas eleições, não havia candidaturas que representassem de fato o corpo discente, e não houve votação mínima para legitimar qualquer resultado.

Tive a impressão de que, instaurado o processo de eleição do reitor e diretores das unidades acadêmicas, os estudantes tinham perdido a clareza sobre porque lutar, quando lutar, contra quem lutar. Eram os professores que faziam greve, sob as críticas e os queixumes dos estudantes, preocupados, estes, em obter logo seus diplomas e se verem livres do suplício de estudar.

Durante o curso de Mestrado, houve uma greve longa de professores, e um deles fez greve de fome. Foi uma luta intensa. Temi por sua integridade, em vários momentos. Esses professores, alguns deles, foram estudantes universitários nos anos 60 e 70, e haviam trazido de lá a vontade de lutar. Os estudantes, ingressados na universidade já democratizada, não viam razão para embates. E se opunham à luta dos professores.

Desde então, percebo que se perdeu uma aprendizagem necessária no decurso das duas últimas décadas: a de que o exercício de cidadania deve tomar parte de nossas formações, em qualquer instância, a todo momento. E que é preciso explicitarmos as posições que assumimos ante a sociedade, compreendermos as responsabilidades que nos cabem atuando nos vários segmentos das dinâmicas sociais. É preciso, sobretudo, percebermos que, muitas vezes, a ansiedade pelo cumprimento de certas metas de curto prazo desqualifica nossa inserção no percurso da história, desqualifica o projeto social de que tomemos parte. Não podemos viver como meros consumidores que reclamam no balcão de atendimento do supermercado para que alguém – quem será? – tome a providência necessária – qual será?

Cabe a nós mesmos tomar as providências necessárias, e aprender a negociar nas diversidades, compreender os diferentes pontos de vista, sem delegar responsabilidades.

Hoje constato que os corpos estudantis se esqueceram de sua força como categoria. Os estudantes perderam-se de seus projetos sociais coletivos: urgenciam diplomas que assegurem seu ingresso no mercado, não importa a que preço. É a sociedade de consumo dando o tom dos comportamentos.

Por isso, entre inquietações que me assaltam neste momento, alegro-me em constatar o retorno de um viço capaz de mobilizar estudantes, de levantar sua voz, de devolvê-los à cena, como protagonistas, e não como meras vítimas de processos políticos outros que não lhe dizem respeito.

Estudantes fazem greve, sim! Estudantes são a razão da existência das instituições universitárias! Os estudantes devem discutir os destinos dessas instituições, do mesmo modo como projetam seus próprios destinos! Este é o momento de aprendermos a fazê-lo, este é o momento de exercitarmos!

O trem da História só passa uma vez. Que ninguém perca a viagem. E se perder, que não fique se lamentando, entre queixumes, na estação, acusando outrem por ter sido deixado para trás.




segunda-feira, 11 de junho de 2012

o paraíso dos pássaros





o paraíso dos pássaros deve ser pródigo em água fresca, 
tardes ensolaradas e árvores com frutos maduros...



domingo, 3 de junho de 2012

uma tragédia antiga, assustadora


Por que amanheci me lembrando dessa história? Por que suas imagens rebrilham na minha imaginação a todo momento, nesta manhã de domingo? Talvez escrever sobre ela possa aliviar sua intensidade e insistência em meus pensamentos...

Contou-me minha mãe, ela conheceu a família, ainda em sua infância, já há uns muitos pares de anos.

O casal morava numa casa pobre, na roça. Tinha três filhos, meninos. O mais velho devia ter uns 9 anos, o do meio uns 7, e o mais novo, era bebê, com não mais que 3 meses. A vida era dura, trabalho braçal diário, sem conhecer domingo ou feriado. O marido trabalhava na roça, cuidava dos poucos animais que serviam para o trabalho e para o alimento da prole. A mulher cuidava dos filhos, da casa, do marido, das plantas, dos animais domésticos.

Naquela noite, depois de jantarem arroz com charque, feijão e mandioca, e tomarem o leite que tinha sobrado do almoço, e depois de ela ter lavado todas as vasilhas, recolheram-se para dormir. Os meninos maiores numa cama de solteiro num quarto, e no outro quarto, o casal, numa cama maior, com o pequeno numa rede acima dos pais. A parede de madeira separava os ambientes, mas não isolava os sons. Logo que a lamparina foi apagada, o filho mais velho começou a reclamar do mais novo, que estava beliscando suas costas. Que parasse, determinou o pai. O mais novo contestou, defendendo-se que não estava beliscando o irmão. Ficaram ali, nos queixumes, e o mais velho aquietou-se. Então o mais novo começou a reclamar, que agora era o mais velho a lhe beliscar as costas. Que parassem logo com isso, insistiu o pai, já bravo. E logo a calma tomou conta da noite, e todos dormiram. 

O pai levantou-se muito cedo, ainda escuro. Acendeu a lenha no fogão, esquentou a água, fez seu mate. Depois foi tirar o leite da única vaca que estava com cria por aqueles dias. Tomou uma caneca ainda morna, e foi para a roça. Avistou a mulher, que trocava as roupas do bebê, para começar as atividades do dia. O sol já ganhava alguma força em brilho e calor, mas nada dos meninos darem as caras. Então, com o pequenino nos braços, foi chamá-los, pois precisava que a ajudassem. Encontrou-os mortos, na cama, e entre eles uma cobra venenosa aninhada. Compreendeu, então, que os beliscões da noite anterior eram as mordidas da serpente. Desesperada, deixou o bebê num cochinho preparado para abrigá-lo, que ficava no chão da cozinha, e saiu correndo, aos gritos, chamando o marido. Ele, ouvindo a voz da mulher tomada por um horror que jamais ouvira antes, largou as ferramentas de trabalho em meio à plantação, e saiu correndo ao seu encontro. Esquecido das armadilhas que ele mesmo preparara para pegar animais silvestres, tropeçou no fio que acionou o gatilho da espingarda, cujo tirou fatal lhe atingiu no peito. Morto ficou ali, em meio à corrida. 

A mulher, assustada com o tiro, foi ao seu encontro. Nem teve tempo para compreender que a viuvês chegara à sua vida num átimo de tempo, ouviu o choro intenso do bebê vindo da casa, e uma movimentação pouco normal protagonizada pelos animais. Instintivamente, deixou seu homem ali, caído, e voltou, encontrando o corpo do filho mais novo estraçalhado, sendo disputado pelos porcos, no quintal.

Qualquer sentido possível do viver lhe escapou nesse momento. Qualquer razão já não significava nada. Ficou ali, parada, numa solidão inexplicável, inimaginável. Foi encontrada por vizinhos, mais tarde, parada no mesmo lugar. Não tinha para onde ir. Não tinha o que fazer. Apenas recontava a sequência de fatos que se abatera sobre seu corpo franzino, mas parecia que não se tratava dela própria. Ela mesma já não sabia de si, já não estava ali, esvaziada de vontades, de possibilidades, de caminhos. Não retornaria, não voltaria a compreender nada mais.