Por que amanheci me lembrando dessa história? Por que suas imagens rebrilham na minha imaginação a todo momento, nesta manhã de domingo? Talvez escrever sobre ela possa aliviar sua intensidade e insistência em meus pensamentos...
Contou-me minha mãe, ela conheceu a família, ainda em sua infância, já há uns muitos pares de anos.
O casal morava numa casa pobre, na roça. Tinha três filhos, meninos. O mais velho devia ter uns 9 anos, o do meio uns 7, e o mais novo, era bebê, com não mais que 3 meses. A vida era dura, trabalho braçal diário, sem conhecer domingo ou feriado. O marido trabalhava na roça, cuidava dos poucos animais que serviam para o trabalho e para o alimento da prole. A mulher cuidava dos filhos, da casa, do marido, das plantas, dos animais domésticos.
Naquela noite, depois de jantarem arroz com charque, feijão e mandioca, e tomarem o leite que tinha sobrado do almoço, e depois de ela ter lavado todas as vasilhas, recolheram-se para dormir. Os meninos maiores numa cama de solteiro num quarto, e no outro quarto, o casal, numa cama maior, com o pequeno numa rede acima dos pais. A parede de madeira separava os ambientes, mas não isolava os sons. Logo que a lamparina foi apagada, o filho mais velho começou a reclamar do mais novo, que estava beliscando suas costas. Que parasse, determinou o pai. O mais novo contestou, defendendo-se que não estava beliscando o irmão. Ficaram ali, nos queixumes, e o mais velho aquietou-se. Então o mais novo começou a reclamar, que agora era o mais velho a lhe beliscar as costas. Que parassem logo com isso, insistiu o pai, já bravo. E logo a calma tomou conta da noite, e todos dormiram.
O pai levantou-se muito cedo, ainda escuro. Acendeu a lenha no fogão, esquentou a água, fez seu mate. Depois foi tirar o leite da única vaca que estava com cria por aqueles dias. Tomou uma caneca ainda morna, e foi para a roça. Avistou a mulher, que trocava as roupas do bebê, para começar as atividades do dia. O sol já ganhava alguma força em brilho e calor, mas nada dos meninos darem as caras. Então, com o pequenino nos braços, foi chamá-los, pois precisava que a ajudassem. Encontrou-os mortos, na cama, e entre eles uma cobra venenosa aninhada. Compreendeu, então, que os beliscões da noite anterior eram as mordidas da serpente. Desesperada, deixou o bebê num cochinho preparado para abrigá-lo, que ficava no chão da cozinha, e saiu correndo, aos gritos, chamando o marido. Ele, ouvindo a voz da mulher tomada por um horror que jamais ouvira antes, largou as ferramentas de trabalho em meio à plantação, e saiu correndo ao seu encontro. Esquecido das armadilhas que ele mesmo preparara para pegar animais silvestres, tropeçou no fio que acionou o gatilho da espingarda, cujo tirou fatal lhe atingiu no peito. Morto ficou ali, em meio à corrida.
A mulher, assustada com o tiro, foi ao seu encontro. Nem teve tempo para compreender que a viuvês chegara à sua vida num átimo de tempo, ouviu o choro intenso do bebê vindo da casa, e uma movimentação pouco normal protagonizada pelos animais. Instintivamente, deixou seu homem ali, caído, e voltou, encontrando o corpo do filho mais novo estraçalhado, sendo disputado pelos porcos, no quintal.
Qualquer sentido possível do viver lhe escapou nesse momento. Qualquer razão já não significava nada. Ficou ali, parada, numa solidão inexplicável, inimaginável. Foi encontrada por vizinhos, mais tarde, parada no mesmo lugar. Não tinha para onde ir. Não tinha o que fazer. Apenas recontava a sequência de fatos que se abatera sobre seu corpo franzino, mas parecia que não se tratava dela própria. Ela mesma já não sabia de si, já não estava ali, esvaziada de vontades, de possibilidades, de caminhos. Não retornaria, não voltaria a compreender nada mais.
Histórias,estórias... Que ótimo você ter publicado,apesar dessa imensa tragédia a envolver toda a cena contada no seu texto. Até por que ,um espaço desses não pode ser ocupado apenas com sonhos e devaneios, em maior parte ( o que não seria o caso dos seus,sempre riquíssimos de vigor em estilo e contares,claro.) dos textos que lemos em blogs e dispositivos assemelhados... Essa é uma crônica que aponta um testemunhal cujo liame nos leva a contextualizar as condições da vida no campo,que,via de regra, é 'customizada','glamurisada',atenuada,tipo 'reality-show,a fazenda', de maneira a sempre aparecer enquanto uma espécie de 'alegoria obrigatória,meio-jéka,meio-jóia'... É de realidades assim relatadas que a verdade é tecida e se tem melhor noção do que se viva, em realidade,diária,efetiva,no campo, na roça, na fazenda,no eito duro a tirar o seu sustento,no nosso Brasilzão-de-dentro,esquecido,postergado,quase 'invisível' - aí,também os seus atores,aos 'meios de comunicação' - Sinceríssimos PARABÉNS !...
ResponderExcluirObrigada, meu querido, por sua leitura apurada e sensível.
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