sábado, 30 de abril de 2011

Pratos de plástico azul escuro


p/ a Néia, o Cláudio, e todas as merendeiras e crianças
 que ainda lancham nas escolas da minha memória.

Depois que os dois filhos ficaram mais taludinhos, e já estão frequentando regularmente a escola, ela e o marido voltaram a estudar também. Trabalham durante o dia, e à noite seguem para suas aulas na educação de jovens e adultos. Duro exercício, esse, de reativar a memória para a escrita, para as operações matemáticas, o registro de datas, nomes, conceitos, depois de tanto tempo ocupados com outros afazeres. Canetas e cadernos pesam mais que o cabo da vassoura, ou a máquina de preparar o cimento na construção civil. Mas é com alegria que cumprem o novo desafio. O esforço tem a medida da fome de conquistar outros espaços, de saber mais sobre o mundo. Fome que também aperta o estômago findo o dia, e é saciada com o lanche servido todas as noites, em meio à jornada de estudos. Há décadas, desde as minhas primeiras incursões nas escolas, o arroz com carne seca, o macarrão com sardinha, a canjica, a sopa, o achocolatado com biscoitos vêem em pratos e canecas de plástico cor azul escura, acompanhados de colheres do mesmo material. Sinto, vivos na memória, o cheiro e a textura das vasilhas, e também dos cardápios oferecidos a estudantes e professores nas escolas públicas.

Nesta última semana ouvi de um professor que a escola, nos aspectos do espaço físico e suas dinâmicas de funcionamento, não teria mudado no decorrer das décadas. Retruquei, defendendo que, se há aqueles pontos nos quais ela não mudou, em outros ela não se parece em nada com o que fora há algum tempo. Talvez eu quisesse me agarrar a alguma esperança de transformação. Talvez eu nem fizesse essa afirmação com otimismo, pensando mesmo nas coisas que pioraram nessas três décadas em que venho interagindo com as instituições escolares. O fato é que, desde os anos 80, ao que me lembre, o lanche tem o mesmo cardápio, e é servido nas mesmas vasilhas de plástico azul escuro. Seja para crianças, seja para adultos...


quarta-feira, 27 de abril de 2011

Milonga del moro judio





(...)
Yo soy un moro judío
Que vive con los cristianos,
No sé que dios es el mío
Ni cuales son mis hermanos.
                                Jorge Drexler
(...)




segunda-feira, 25 de abril de 2011

Ovos caipiras



A embalagem transparente com 6 ovos anunciava, em seu texto, as qualidades do produto: ovos caipiras orgânicos. Por isso mesmo, eram mais caros. Examinei o conteúdo, lembrando que, em geral, ovos genuinamente caipiras são irregulares no tamanho e na forma, e um pouco sujos. A memória da voz de minha mãe ressoou aos meus ouvidos: “isso nunca foi ovo caipira...”. Ainda e assim, acomodei o produto entre as demais compras, e segui para a fila dos caixas. Uma moça graciosa me atendeu. Trazia uma flor de crochê cor-de-rosa nos cabelos. Pegou a embalagem com os ovos, e aproximou do rosto, olhando vários aspectos do seu conteúdo. Depois me perguntou “a senhora acha, mesmo, que estes ovos são caipiras?” Eu achei graça, e ela prosseguiu, sem esperar pela minha resposta: “se for caipira, não foi posto no mato, pois está limpo demais! E devem ter sido todos postos pela mesma galinha, pois são todos do mesmo tamanho! Geralmente, ovo que é caipira, mesmo, é irregular, e meio sujinho, não é?” Diagnóstico feito por quem tem conhecimento de causa. Concordei com suas observações, mas lhe disse que decidira correr o risco. Desejei-lhe felicidades pelo Domingo de Páscoa, no que ela me retribuiu, desejando, ainda, boa sorte com os ovos. E tive mesmo: mais tarde, ao preparar o bolo, constatei, com satisfação, que as gemas eram densas e escuras, como costumam ser os ovos caipiras.


sábado, 23 de abril de 2011

... de barulhos, está cheia a cidade!...


Aguardávamos pelo bonde, o elétrico. A senhorinha impacientava-se com a demora, e resmungava consigo – “se tivesse ido a pé, já estaria em casa!...” Um princípio de chuva – que já passara – a fizera decidir tomar o elétrico. Tive a impressão de ouvi-lo, parecia que se aproximava. Falei-lhe, então, tentando animá-la: – “ouvi um barulho, acho que é dele!” Ela riu-se, deu de ombros e sentenciou: – “... de barulhos, está cheia a cidade!...”. Em seguida tomou o rumo de sua casa, caminhando por antigas calçadas, entre o trânsito intenso de veículos barulhentos. Algum tempo depois, chegou o elétrico, apinhado de passageiros.



quinta-feira, 21 de abril de 2011

Em memória de meu pai



Manhã de 21 de abril de 2011. Há exatos 34 anos, meu irmão chegou à porta, vindo da rua, nos olhou e disse: -“Ele não resistiu”. Esperávamos já pela notícia. Ele estava em coma há alguns dias. Aquela fala ressoou encerrando meses de sofrimento e luta. A penumbra da sala adensou-se um pouco. Olhei pela janela entreaberta, que dava para uma janela do prédio vizinho, de cor cinza envelhecida. Não havia horizonte à vista. Alguma coisa vibrava em mim, denunciando que, definitivamente, eu não tinha a menor ideia sobre o que aquilo tudo pudesse de fato significar para a minha vida. Mais tarde, seguimos à capela do hospital. O corpo muito magro, maltratado pelo câncer e pelo tratamento, não lembrava o vigor do trabalhador de campo que fora meu pai. Ali, recostado sobre o mármore, entre velas que ardiam lentamente, parecia não encontrar aconchego. Nenhum carinho amenizaria suas feições cansadas. Na manhã seguinte, seguimos para casa, cumprindo os funerais. Durante a viagem, enquanto olhava pela janela do avião, experimentava uma estranha sensação no corpo. O desconhecido se impunha a mim com peso físico. Aquela travessia me levaria a novos territórios que eu não imaginava quais fossem. No aeroporto da pequena cidade natal, uma multidão de pessoas nos aguardava. Seguimos para a missa de corpo presente, depois ao cemitério. Tudo se passava fora de mim, e por dentro a sensação de ausência e estranhamento. Pouco depois, já tentava retomar alguma normalidade no curso dos dias. Teriam se passado uns dois meses, quando, numa discussão com um colega na escola, ele me disse: -“‘tá pensando o que, garota, você nem pai tem!” A fala rude arrancou-me ao torpor. Funda era a solidão instalada à minha volta. No deserto, os lobos uivavam. Se havia de atravessá-lo – e eu o faria – precisava apertar o passo e redobrar a atenção. Não voltaria a contar com a mão firme do meu pai em minha defesa. Mas traria sempre comigo sua memória, seu olhar duro, sua ética, sua saudade...


terça-feira, 19 de abril de 2011

Mande notícias do mundo de lá



Mande notícias
Do mundo de lá
Diz quem fica
Me dê um abraço
Venha me apertar
Tô chegando...
Coisa que gosto é poder partir
Sem ter planos
Melhor ainda é poder voltar
Quando quero...


 Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega prá ficar
Tem gente que vai
Prá nunca mais...
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai, quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar

E assim chegar e partir...
São só dois lados
Da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem
Da partida...

A hora do encontro
É também, despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar
É a vida...

Encontros e despedidas (Milton Nascimento)


sábado, 9 de abril de 2011

Avançados no tempo



Eu tinha 5 anos quando meu irmão deixou a casa paterna, e seguiu para estudar e trabalhar fora, numa cidade longínqua que eu não sabia onde era, mas imaginava coisas incríveis a respeito. Dois anos depois, minha irmã também seguiu para uma capital federal que, à época, cheirava ainda a canteiro de obras. Em relação a Brasília, minha imaginação pulsava ainda com mais intensidade. E quando eles retornavam, no final do ano, por alguns poucos dias, traziam presentes e histórias para contar. Mas havia e uma expressão no seu olhar que os distanciava, aos poucos, da terra natal. Minha curiosidade não cabia em mim: como viveriam? Como seriam suas casas? De que pensamentos se ocupariam? De uma coisa eu tinha certeza: os lugares onde eles viviam eram muito avançados em relação ao nosso, pois até os relógios que vinham de lá marcavam uma hora à frente dos nossos relógios! 


sábado, 2 de abril de 2011

Um girassol



Próximo ao meio dia, sol escaldante, eu caminhava cabisbaixa, com pressa, rumo ao carro estacionado, para tomar a direção de casa. Trânsito intenso, detive-me junto ao semáforo, aguardando o sinal abrir para os pedestres. Na pausa, meu olhar encontrou o tronco de alguma planta que brotou no vão entre o cimento da calçada e o metal do poste. Um tronco verde, aveludado, cheio de viço. Fui acompanhando seu talhe, até chegar ao alto. A pouco mais que um palmo do meu rosto, um lindo girassol iluminava o cenário. Fui tomada por uma súbita alegria. Por um instante, todo o movimento à volta desapareceu, e a vida se resumiu ao meu encontro com aquele girassol. No dia seguinte, retornei ao mesmo lugar, só para vê-lo novamente. Encontrei apenas a haste cortada rente ao pé. Algumas alegrias são assim: intensas e breves, podadas por mãos alheias...