sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Boas vindas, com uma pitada de saudade e cheiro de esperança.



p/ Felipe e Nana.

Embarquei no final da tarde, num ônibus que seguiu em direção a São João d’El Rei. Pouco depois das 3h da manhã, desembarquei em Divinópolis. Aguardei na rodoviária pelo ônibus que saiu, às 5h, rumo a Bom Despacho. Eram 7h da manhã quando desembarquei na praça do centro, em Araújos. O sol ainda estava baixo, e sua luz atravessava as folhagens das árvores e outros arbustos, com raios doces em tom amarelado. A temperatura amena, confortável, motivava os transeuntes já em atividade. Na calçada, ele me aguardava. Sapatos pretos, bem engraxados, bermuda e camisa de algodão, bem passados, os cabelos molhados penteados para trás, perfume de banho recém-tomado. Uma rosa vermelha nas mãos. Estava compenetrado no cumprimento do ritual de espera. Senti o coração bater forte, e uma onda de ternura me inundar. Meu amigo querido me recebia, elegante, amoroso. Felipe não tinha mais que 7 anos, à época. Sorriu-me, entregou-me a flor. Eu desejei fixar o instante em minha memória, para não me perder daquele sentido de afeto e amizade. Depois seguimos para a casa da sua tia, onde eu ficaria hospedada. Conversamos, brincamos, não percebemos o passar das horas. Hoje, moço feito, está por concluir o curso superior. Há alguns anos não o encontro. Mas aprendi, com ele, que podemos acolher quem chega com afeto, com cuidado, e isso é pouco, e isso vale tanto, e esse amor marca para sempre...

Que possamos desembarcar em 2012 assim, numa praça inundada pela luz da manhã, e encontrá-lo cheio de frescor, perfumado, pronto para nos acolher. E que possamos também acolhê-lo, brincar com ele, ouvir-lhe as histórias, aprender caminhos para construir o futuro, juntos.


quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

demolição


p/ Wolney e Adriane

derrubam mais uma casa
sonhos ao desabrigo
memórias que perdem as asas

Gwavira Gwayá
Terra dos Gwayá, dez. de 2011




Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos, Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. in Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. v. l. São Paulo, Brasiliense, 1994.


segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Um ingresso por uma casa para Néia



Sempre achei muito caros os ingressos cobrados pelo Cirque Du Soleil. Mas nunca tive dúvidas quanto ao potencial de encantamento dos seus espetáculos, quantos deles marcando de modo indelével nossos imaginários. Tudo fruto de trabalho primoroso e exaustivo desenvolvido a longo prazo, envolvendo doses equilibradas de técnica, tecnologia e paixão. Por isso, naquele ano decidi que iria ao Cirque, e essa seria a celebração do meu aniversário.

Foi por aqueles dias, também, que encontrei a Néia cheia de angústia. Estava morando com os dois filhos pequenos e o marido numa casa alugada, localizada num bairro distante, sem água, nem segurança. Acabava passando os dias com a mãe, e temia que lhe roubassem suas poucas coisas, enquanto estava ausente. Precisavam decidir se valia a pena cavar um poço, ou investir o dinheiro – de que não dispunham – para arrumar um barraco nos fundos da casa de sua mãe, dando condições mínimas de habitação. O que falta? Portas e janelas, e fiação para puxar a luz. Assim, já seria possível a família ocupar o espaço da casa. Tudo o mais poderia ser ajeitado depois aos poucos. De quanto precisariam para essa primeira etapa? Pouco mais do que o valor de um ingresso para o espetáculo do Cirque Du Soleil...

Naquele ano, pedi ao meu marido, como presente de aniversário, que se juntasse a mim para participar do trabalho que asseguraria condições à nova morada da Néia e sua família. Não fomos ao Cirque. O valor dos dois ingressos foram convertidos em material de construção. Depois confessamos, um ao outro, a alegria em estado puro que nos assaltou, tomada a decisão.

Um ano e meio depois, as paredes já estão todas rebocadas e pintadas, o piso com cerâmica, água nas pias, no tanque, no sanitário. No mês vindouro, começarão a construir mais um cômodo, para desmembrar a área da sala de estar da cozinha.

O Cirque está em mais uma tournê pelo Brasil.


chuva em Villa Boa de Goyaz

nuvens baixas cobrem a serra
água suja do rio vermelho
maritacas alardeiam a manhã







quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Para cultivar seu amor pela vida toda...



P/ Miriam e Luiz, mestres também no amor

Aguardava à porta de saída da faculdade, quando ela passou por mim. Pequena estatura, elegantemente simples, cabelo bem cuidado, acenou-me finda a jornada do dia. Parou a meio caminho e voltou para perguntar se eu esperava pelo meu marido. Confirmei. Ela se entusiasmou: "Faça isso sempre, mesmo quando não precisar. Eu faço isso com o meu. Às vezes, eu preciso até arrumar uma desculpa, para que ele venha me pegar. Ele fica feliz com isso, e eu também. É uma forma de ficarmos juntos um pouco mais, de compartilharmos mais uma parte do dia, e também um modo de eu mostrar que ele é importante para mim, que eu preciso dele, que esse sentimento é mútuo...". A essas alturas, seu esposo já a aguardava no estacionamento. Enquanto ela se despedia de mim, ele conversava com o guarda de segurança, velho conhecido seu. Ela o encontrou com um beijo, embarcou no lado do passageiro, ele fechou a porta dela num gesto cavalheiro. Seguiram, contentes.

Nestes dias que antecedem o Natal, a cidade anda mais nervosa do que o normal. E embora o verão se inicie hoje, o dia amanheceu muito chuvoso. A temperatura não passou dos 20ºC. Seu velho companheiro partiu pela manhã, sozinho. Ela aguardou por esse momento em prantos quase silentes que se prolongaram por meses, em pausas entre os cuidados que lhe dedicou nesses dias sofridos.



Ciclos



... e chove...
Estiagem? Por estas terras já houve estiagem?...


Quem diria que chegará o tempo quando terei a sensação 
de há uns 200 anos não chove por aqui...


terça-feira, 20 de dezembro de 2011

... eh, vidão!

... não quero outra vida, pescando no Rio de Jereré...


... quando no terreiro, faz noite de luar
e vem a saudade me atormentar
eu me vingo dela tocando viola de papo pro ar...


quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Exercícios de alteridade - preto e branco



Dominante preto
No princípio estava a escuridão. Era abafado, e não se avistava nada em qualquer direção. Toda luz sugada no decurso dos tempos fazia-se energia contida. O vórtice encheu-se de todas as luzes em suas múltiplas cores, e inchou-se a tal ponto, que, a certa altura, começou a regurgitar de volta fiapos delas. Aos poucos, os fiapos ganharam volume, e jorravam em arcos de luzes coloridas sobre o vazio. O espaço começou a se mostrar, em transparências. Azuis, amarelos, vermelhos, verdes, roxos, laranjas, libertos das vísceras da noite, expandiram-se nesse espaço-tempo.

Dominante multicolorido
Aprisionadas no preto durante tanto tempo, as luzes, diversas em suas cores, alongaram-se em várias direções, a experimentar o espaço, em contínuo movimento. Refletiram em superfícies espelhadas, multiplicaram-se. Aos poucos foram ganhando familiaridade. Dançantes, e ruidosas, descobriram que podiam brincar entre si, transmutando tonalidades, ganhando mais luminosidade, mais energia.
Energia fluida acelera frequências, e aumenta a rotação dos corpos. Cada vez mais agitadas e alegres, crescentemente mais claras e mais efusivas, tenderam a fundir suas vibrações. Fontes intensas de luz, chegaram a ofuscar-se, entre si.

Dominante branco
Dançando uma dança eletrizante, misturando-se umas às outras em frenesi, não se via mais que luz branca em expansão, a eliminar quaisquer vestígios de sombra, um leve tom cinza que fosse. A luz branca, que jorra com intensidade, ofusca a vista. O sem fim do mundo confunde-se com o logo ali, pois não se vêem distâncias, volumes, formas, proximidades e lonjuras.
Apenas movimento intenso, e luzes refletidas, devolvidas, sem trégua.

Dominante da alteridade
A exaustão apoderou-se das luzes, desejosas de retomarem suas propriedades diferenciais. Na desaceleração, redescobriram-se amarelas, lilazes, verdes, azuis, vermelhas, alaranjadas, em passagens entre-cores de várias tonalidades.
Em comum acordo, passaram a alternar luminosidades, abertas à possibilidade de, eventualmente, serem absorvidas pelo preto, ou serem devolvidas em aceleração máxima pelo branco... podendo, sempre, retornar ao movimento suave dos dias e das noites.



segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Assentamento Digital: meninada de Varjão, ano que vem tem mais!


O Projeto Assentamento Digital, coordenado pela professora Alice Fátima Martins, da Faculdade de Artes Visuais (FAV) e pelo professor Marcelo Costa, da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia (Facomb), foi aprovado na Chamada Pública de Apoio à Capacitação no Uso das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação para a Juventude Rural do Ministério das Comunicações. A chamada pública estava aberta a projetos de extensão universitária com jovens de assentamentos de reforma agrária ou comunidades tradicionais e tinha 3 linhas temáticas. O projeto que foi aprovado enquadra-se na linha 3, de Tecnologias da Comunicação e Informação direcionadas à Comunicação Digital nas áreas rurais.

O projeto propõe-se a realizar atividades educativas de comunicação comunitária com jovens do Assentamento Palmares do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Varjão (GO). Por meio de oficinas que envolvem fotografia, vídeo e internet, serão apresentadas novas tecnologias da comunicação para que os jovens se apropriem para a produção de narrativas visuais e textuais abordando a experiência de viver em um Assentamento de Reforma Agrária, contribuindo assim para o registro da história do local e para a construção de novas representações sobre o movimento. Será criado um centro digital de comunicação na sede do assentamento, com acesso a internet, onde serão realizadas as atividades e instalados equipamentos. O projeto tem duração prevista de 16 meses e com início para o primeiro semestre de 2012.

Desde o início do segundo semestre deste ano, vem sendo desenvolvido outro projeto de extensão cadastrado na Proec, o Cotidianos de uma infância: experiências fotográficas. Coordenado pela professora Alice Fátima Martins, conta com a participação de alunos da FAV e da FACOMB e é parte do projeto de mestrado da aluna Julia Mariano Ferreira, do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual.

Quem quiser, pode ver esta notícia aqui


segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Um certo espírito de Natal...


  
Desavisada, saí à rua, e dei de cara com o Natal!
Levei um susto!
É por isso que os supermercados estão cheios
os consumidores, cada vez mais ansiosos,
atropelam-se em busca do melhor produto com menor preço:
biscoitos, panetones, vinhos, perus, pernis...
pessoas se apinham nas lojas de bugigangas
comprando coisas baratas para presentear:
amigos ocultos, parentes, caixinhas de Natal.

Nas ruas, todos têm pressa.

São muitas as despesas para o mesmo salário,
muito trabalho para preparar a ceia,
para confraternizar...

E, por que todos têm pressa,
podem avançar o sinal vermelho,
não esperar o pedestre atravessar na faixa,
ultrapassar “ess’outro lerdo que emperra o caminho!

Faltam sorrisos, gentileza, cuidados, 
sobram sacolas, pacotes, correria,
semblantes fechados.

Então, já é Natal!
Acho mesmo que vou ficar quieta, esperando isso tudo passar,
para, só então, reencontrar as pessoas queridas, 
abraçá-las com calma,
e dizer-lhes, simplesmente, do carinho que lhes tenho,
e que podem, sempre, contar comigo.

Feliz Natal!


Zygmunt Bauman - Fronteiras do Pensamento







sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Resultado do Edital de Publicação de Livros FUNAPE/Editora UFG - 2011



Foi divulgada hoje a relação de obras selecionadas no EDITAL 01/2011 - FUNAPE/Editora UFG. O resultado foi homologado pelo Conselho Editorial do CEGRAF/UFG, que será responsável pelo projeto gráfico, revisão e editoração desses livros, seguindo os padrões da própria Editora UFG. Todas as despesas relacionadas ao processo seletivo e publicação das obras selecionadas serão financiadas com recursos próprios da FUNAPE.
Após o término do período para recursos, que vai até o dia 06/12, serão apresentados os pareceres de cada Comissão, constituídos de justificativas que embasem as escolhas, bem como sugestões para revisão.
Segue abaixo a lista das obras selecionadas com seus respectivos autores:

Área 1 - Linguística, Letras e Artes
1-Alice Fátima Martins. Catadores de sucata da indústria cultural. 204 p.

Área 2 - Educação, Sociologia e Correlatas
2-Anegleyce Teodoro Rodrigues. A universidade como instituição social de formação e como organização administrativa: confronto de sentidos nas reformas acadêmicas do ensino de graduação da Universidade Federal de Goiás entre 1983 e 2002. 145 p.
3-Flávia Martins dos Santos e Suely Henrique de Aquino Gomes. Do segundo corpo: reflexões sobre os investimentos na imaterialidade. 140 p.
4-Pedro Santos Mundim. Imprensa e voto nas eleições presidenciais brasileiras de 2002 e 2006. 148 p.
5-Sandra Valéria Limonta. Formação de professores no curso de pedagogia: história, concepções e possibilidades curriculares. 102 p.

Área 3 - Geografia, História, Economia e Correlatas
6-Ana Cristina da Silva. O Pensamento geográfico brasileiro na travessia do século XX para o XXI: o território na trama das significações imaginárias. 143 p.
7-Cleber Augusto Gonçalves Dias. Epopéias em dias de prazer: história e formação do lazer na natureza (1789-1838). 137 p.
8-Raimundo Agnelo Soares Pessoas. Gente sem sorte: a invenção dos mulatos no Brasil Colonial. 194p.
9-Tadeu Pereira Alencar Arrais. A produção do território goiano: economia, urbanização, metropolização. 143 p.

Área 4 - Ciências Exatas e Engenharia e da Terra
10-Daniel de Lima Araújo. Projeto de ponte em concreto armado com duas longarinas. 148 p.

Área 5 - Ciências Biológicas, Agrária e da Saúde
Sem aprovação.

Data: 02/12/11 
Disponível aqui



quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Açucena



Singela e branca flor...




açucena quando nasce, ai, ai...
toma conta do jardim...
eu também ando caçando, ai, ai...
quem tome conta de mim, benzin...



segunda-feira, 21 de novembro de 2011

1ª Série de mostras de cinema da CODE, realizada pelo Ipea e parceiros

Para quem esteja em Brasília nesta semana, vale a pena conferir!
No Pavilhão de Exposições, do Parque da Cidade.
Valeu, Allex!


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Noite de premiação



p/ Martins Muniz, meu querido amigo, que ontem recebeu a Medalha de Mérito Cultural, concedida pelo Governo do Estado de Goiás.

Ele era um dos homenageados. Quando chegou, com a mulher, o filho e uma netinha, avistou a multidão apinhada em torno das mesas, numa sala apertada, abafada e calorenta. Hesitou. Não era afeito a esses acontecimentos, tampouco aos rituais sociais. O primeiro impulso a lhe ocorrer foi de ir-se embora. Mas ficou ali, parado, a meio caminho, tenso. As mãos frias, o coração disparado. O público não parava de chegar. Mulheres com seus melhores vestidos, cuidadosamente maquiadas, homens trajando ternos e blazers elegantes. Voltou ao jardim, onde se podia respirar ar fresco. A netinha, vestida de boneca, brincou com a bolsa da esposa dele, acompanhada pelos olhos cuidadosos do filho, que também o observava. Quando se iniciaram os discursos, encheu-se de coragem, e voltou ao saguão, observar a multidão. Comentou comigo que antes não sentia essa fobia. Perguntou onde os homenageados deveriam se posicionar. Ao fundo do salão, onde fora instalado o púlpito. Ponderou que não conseguiria chegar lá. Pensou em designar a alguém a tarefa de receber a medalha e o diploma em seu lugar. Ofereci-me para ir à frente, abrindo caminho, assim ele poderia chegar ao ponto, minimizadas as dificuldades para o seu deslocamento. Assim fizemos. Respirou fundo, encheu-se de coragem, e seguiu-me, com o passo miúdo e frágil, as articulações enrijecendo pela atrofia progressiva e os efeitos do mal de parkinson avançando. Ao meio do salão, tomou novo ânimo, e encaminhou-se, determinado, até uma cadeira desocupada, onde estavam alguns conhecidos que o acolheram. Sentou-se, e ficou ali, aguardando o momento de ser chamado. Recebeu a medalha e o diploma das mãos do governador, sob os olhares de muitas lentes, e os aplausos dos presentes. Em seguida, retomou o caminho para fora do salão. Mostrou o prêmio para a família e os amigos mais próximos. Aguardou algum tempo nos jardins, e foi-se embora. No salão, o som alto, o calor e a festa prosseguiram, sem que lhe dessem pela falta.

No caminho de casa, pensava nas providências a serem tomadas para fazer o próximo filme. O tumulto, o calor e as gentes que ocupam o set de gravações parecem-lhe bem menos ameaçadores... ao contrário...


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Memórias da guerra, pequenas corrupções, feridas abertas: fraturas sociais



Onde eu nasci, as dores da guerra ainda fazem tremer a carne, embora as pessoas insistam em não lembrar, fingindo que o motor do progresso seja capaz de apagar tensões, fechar feridas abertas.

Depois da sangrenta Guerra Grande, o governo brasileiro adotou políticas para a ocupação da fronteira avançada sobre uma faixa de terra onde antes era território paraguaio.

Famílias de colonos migraram da região sul, distante, com a promessa de ganhar a posse da terra ocupada e cultivada. Comboios viajavam por meses a fio, anos até, com cavalos, carros de boi, abrindo estrada entre a mata fechada, que se fechava de novo depois de terem passado. E se fechava, também, sobre as covas dos que morriam a caminho, e eram enterrados pelos seus, deixados após.

Havia bugres na região, era como se dizia. A convivência entre eles e os novos colonos nem sempre era tranquila. Prevalecia o preconceito tanto em relação à população paraguaia, quanto aos índios guarani, a etnia dos bugres, então. Com o tempo, foi chegando mais gente, ocupando mais terras, enterrando seus mortos nas coxilhas. Os índios, espalhados, foram recuando. Muitos recolheram-se em direção ao Paraguai. Outros reuniram-se em algumas regiões específicas, que muito mais tarde vieram a formar reservas indígenas: poucas e pequenas. Muitas famílias, contudo, estabeleceram relações com os chegantes, assumindo postos de empregados, agregados criados, semi-escravos... desgarraram-se de seus grupos.

Nos anos 70, uma nova grande migração vinda do sul estabeleceu novas fronteiras naquela região, a fronteira agrícola da lavoura intensiva, principalmente dedicada ao plantio de soja. A paisagem mudou radicalmente: as matas e os campos foram derrubados, marcos memoriais se perderam, tratores e outras máquinas as mais estranhas ocuparam o lugar dos velhos carros de boi.

Poucos trechos de mata foram preservados nesse processo. Estes poucos, por sua vez, tornaram-se alvos do desejo dos grandes fazendeiros, por suas terras mais férteis que as dos campos, portanto mais produtivas. Mais recentemente tornaram-se alvos, também, de estratégias desastrosas adotadas por funcionários públicos de gabinete e ONGs ocupados em implementar pseudo-políticas de assentamento de grupos indígenas, cujos benefícios acabam sendo endereçados, de fato, a personagens escusas, devidamente preservadas de quaisquer publicidades.

A assistente social chegou com o missionário. Contaram ao cacique que poderiam levar o grupo para um lugar onde já havia uma aldeia montada. Reuniram as famílias num ônibus, e as conduziram até certo ponto da estrada, onde foram orientados a descer. Cruzaram a cerca de arame fechada, pisotearam a plantação verdejante, caminharam até o fundo do terreno, chegando à mata. Instalaram-se às margens do córrego.

A assistente social e o missionário foram-se.

Não havia aldeia. Eles ficaram ali, acampados. Passados alguns dias, os fazendeiros em volta começaram a se mobilizar, para retomar a área. A assistente social voltou, acompanhada da polícia federal, e uma planilha na mão. Fez ameaças, anotações, escreveu um relatório dando conta do sucesso do assentamento de 80 famílias. Essa informação, encaminhada à sede dos órgãos federais renderia verbas extras ao seu departamento – verba que jamais chegaria àquelas famílias... A funcionária cobrou, “por fora”, a visita aos fazendeiros, com o argumento de que estivera ali para pacificar as relações, acalmar os ânimos. Recebeu em dinheiro. Foram-se, novamente.

As famílias indígenas começaram a passar fome. As chuvas elamearam o chão e sujaram a água do córrego. As mutucas proliferaram-se. A permanência ali começou a se tornar inviável.

Os fazendeiros entraram em contato com um líder indígena de outra aldeia próxima, que se dispôs a negociar o acolhimento, por sua comunidade, das famílias. Cobraria por isso. O grupo invasor aceitou a proposta. Precisavam encontrar uma saída minimamente digna para a situação constrangedora em que se viram. Não poderiam retornar à antiga aldeia, sob pena de serem rejeitados por lá. Desterrados, viram nessa nova aldeia notícias alvissareiras acenando possibilidade de nova instalação. Apenas uma família insistiu na permanência ali, até que comparecesse o missionário que os acompanhara até ali, no primeiro momento. Queriam cobrar-lhe o cumprimento do prometido. Buscado, descobriu-se que ele estava em viagem de férias. Longas férias de três meses...

Século XXI adentro, agricultores e comunidades indígenas não são, de fato, inimigos. São lançados, contudo, uns contra os outros, em conflitos regidos e agenciados por outrem, em função de interesses alheios, devidamente dissimulados por discursos que pregam justiça social.

A esses, interessa, sim, que as feridas abertas não se fechem, jamais.

Instituições na berlinda: FUNAI, CIMI, IBAMA.



domingo, 13 de novembro de 2011

... passar a limpo...


primeiro a sensibilidade,
depois o rascunho...
para então passar a limpo
versos encharcados de poesia...


Minha mãe revisa suas produções escritas, preparando o próximo livro...



sexta-feira, 11 de novembro de 2011

filhotes de quero-quero

No gramado em frente à casa, alguns casais de quero-queros fiziam ninhos onde chocavam os ovos, gestando suas crias.

Nesse mesmo gramado, meu pai reunia o gado periodicamente, para que comessem sal mineral enriquecido, depositado em cochos de madeira preparados para isso, e dispostos espaçadamente em toda a área.

Muitas vezes, o gado pisoteava os ninhos, esmagando os ovos, ou mesmo os filhotes recém-nascidos. Os quero-queros adultos lutavam contra os animais desproporcionalmente maiores que eles. Depois nos atacavam, aos moradores da casa, quando cruzávamos o gramado.

Tanto tempo depois, num recanto da metrópole, acompanho uma família de quero-queros cuja luta cotidiana não é menos desafiadora. Encontrei uma fêmea em choco, num ponto próximoi à toca de outra família de aves, no caso, corujas buraqueiras. Depois de tê-la observado por alguns dias, fui surpreendida pelo movimento tímido de quatro filhotes (os que consegui avistar) sob os cuidados da mãe e o olhar severo do pai, pronto a atacar qualquer visitante indesejado, inclusive outros quero-queros não pertencentes àquele núcleo familiar.

Pouco tempo depois, os reencontrei com a ninhada reduzida a um único filhote. Assisti aos adultos nervosos com as movimentações em torno, e no ataque declarado a outras aves a pequena e mesmo grande distância, enquanto a cria se esconde entre a grama alta, à espera dos piados maternos que acalmam e chamam de volta para o gramado mais raso, passados os perigos.

O que terá ocorrido aos demais filhotes? Que predadores terão vencido o cerco de cuidados do casal de quero-queros?

Nutro a esperança de que o filhote sobrevivente atravesse o período crítico, e se imponha aos riscos. E vou acompanhando seu desenvolvimento, observando-o cada vez mais esperto tanto para catar bichinhos com que se alimentar, como para se esconder rapidamente entre as folhagens. Escapando-me à visão. E à dos inimigos outros...


quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Sinal vermelho





Olá, como vai? Eu vou indo, e você, tudo bem? Tudo bem, eu vou indo correndo, pegar meu lugar no futuro, e você? Tudo bem, eu vou indo em busca de um sono tranquilo, quem sabe... Quanto tempo... Pois é... Quanto tempo... Me perdoe a pressa... É a alma dos nossos negócios... Oh, não tem de que! Eu também só ando a cem... Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí! Pra semana, prometo, talvez nos vejamos... Quem sabe? Quanto tempo... Pois é... Quanto tempo... Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas... Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança... Por favor, telefone... Eu preciso beber alguma coisa, rapidamente... Pra semana... O sinal... Eu espero você... Vai abrir... Por favor, não esqueça... Adeus...
(Sinal fechado, Paulinho da Viola)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

trierinho...





caminhos de ir...
... e vir...




Cotidianos de uma Infância: Experiências Fotográficas


No dia 5 de novembro, Júlia Mariano realizou a exposição de fotografias realizadas por crianças da comunidade do assentamento Palmares, em Varjão/GO. Esse trabalho faz parte da primeira etapa do seu projeto de pesquisa intitulado "Cotidianos de uma infância: Experiências Fotográficas". Foi uma bela celebração.

 
    Fotógrafos prontos para a festa

Marcelo, seu Lázaro, e pequenos ajudantes montam a exposição

 Mariana Capeletti e Júlia Mariano montam a exposição, sob olhares curiosos

Olha esta, quem fez? 

 Enquanto se monta a exposição, se prepara o lanche delicioso, os homens conversam na manhã calorenta

 Visitantes, familiares e fotógrafos deliciam-se com as fotografias, uma a uma...



Por falar em delícia, a mãe da Júlia organiza a mesa do lanche... hummmm...

 Os pais observam as fotos dos filhos

 Pri-Pri! A menina elétrica do sorriso bonito!

 A exposição sendo montada sob os olhares curiosos e entusiasmados...

 Calma, Julinha, tudo deu certo, foi lindo, viu?

E tem mais: tudo foi devidamente gravado...

 ... e fotografado... por gente prá lá de competente!

Lucas song e seu séquito de fãs... 

  
... fãs gravam toda a cantoria, para depois ouvir, em casa...

Os Três Mosqueteiros divertem-se comentando as fotos

 O pai da Júlia, depois de ajudar a montar a exposição, observa as fotos, com calma...

Na escada da casa da árvore, as crianças gravaram as entrevistas



Teve discurso e entrega de certificado


    

  
  
Foi, sim, uma delícia de festa!
Obrigada, Júlia!



segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Em boa companhia



Comprei a passagem de volta. Poltrona 1. Pretendia dormir durante a viagem. Mas quando embarquei, encontrei-a já bem acomodada ali. Quase uma gatinha mansa aninhada no canto. Sorriu e perguntou se eu me importaria de trocar de lugar com ela. Queria muito ir na janela, para tentar dormir um pouco, solicitou-me, com certo dengo na voz. Disse-lhe que também precisava dormir, mas que não havia problema, ela ficasse ali, eu me sentaria no corredor. Prontificou-se a ajudar na minha instalação: sugeriu que eu colocasse minha valise sob seus pés, para liberar os meus, disse-lhe que não era necessário; e recomendou que eu não esquecesse de colocar o sinto de segurança. Fiz umas duas ligações ao telefone, em seguida ela emplacou uma conversa bem divertida. Contou de sua luta para criar os filhos, de seu trabalho, da vida que levava agora. Falou mal do marido, de quem era viúva há 33 anos. Disse que o casamento fora difícil, mas ela persistira, cumprindo sua missão: levara a cruz até o calvário. E depois ficara mais leve para viver a vida. Era feliz, aos seus 90 anos. Até há pouco tempo caminhava um kilômetro por dia em torno de um parque próximo de seu apartamento. Mais recentemente, por medo do trânsito, tem preferido caminhar em volta do próprio quarteirão. Gabou-se de sua saúde, e explicou que há mais viúvas do que viúvos no mundo: "Sabe por que? Deus fez o organismo feminino mais forte e mais consistente do que o do homem, para poder gerar outra vida. Homem é mais fraco, qualquer ataque do coração, cai morto". A certa altura, lembrou-se que eu manifestara o desejo de dormir durante a viagem, e decidiu que já passava da hora de eu tirar meu cochilo: "Durma, minha filha, agora durma um pouco". Ri-me. Consegui dormir, até sonhei. Quando despertei, ela olhava a paisagem molhada de chuva por um vão da cortina - que ela manteve fechada para não fazer claridade e perturbar meu sono. Os olhos miúdos, as mãos grandes, descarnadas, a pele marcada pela idade. Na entrada da cidade, repetiu-me o roteiro que orientaria o motorista de taxi para chegar em casa. "É para eles não quererem me enganar, minha filha". Ajudei-a no desembarque, levei-a até o táxi. Despediu-se alegremente. Pela janela, acenou: "Depois nos falamos pelo telefone!"

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Exercícios de alteridade – azul



Levava uma vida relativamente tranquila, sem maiores sobressaltos. Às tantas, entediou-se. Desejou experimentar outras emoções. Na ribalta, deixou-se banhar pelas luzes derramadas das varas de spots e canhões de luz.

Um calor invadiu-lhe as partículas quando as luzes vermelhas arroxearam-no, e riu-se de cócegas quando os amarelos animaram-no em tons de verde. Quando diminuiu a intensidade das luzes, tornou-se soturno, profundo. Mas retomou a vivacidade quando as luzes derramaram-se em jorros cada vez mais intensos. Teve, mesmo, a impressão de que poderia se diluir no branco.

Já não estava tão certo a respeito de sua tonalidade original. Afinal, o azul que julgava ser não era, de fato, absoluto. Sofria os efeitos, também, das relações que estabelecia com o meio, oscilando de acordo com as luzes e as sombras sobre ele projetadas no decurso dos dias e das noites.


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

terça-feira, 1 de novembro de 2011

domingo, 30 de outubro de 2011

deixem quietos os demônios


p/ Nana, minha querida amiga.
 
"Então uma pessoa não tem o direito de dormir em paz, que o telefone fica tocando, tocando, até me acordar? Ah neeeeim!", reclamou com veemência, minha amiga, depois de eu tê-la, insistentemente, chamado ao telefone, no início da noite de sábado. Acordada, decidiu fazer faxina em casa. Para provocá-la, em relação à pouco usual destinação de seus horários e atividades, questionei -"E isto lá são horas de fazer faxina em casa, criatura?" Sua mãe também fica contrariada com essa mania que ela tem de limpar a casa à noite, lembrou-se. Quando resolve varrer as calçadas, já escuro, ou limpar móveis e o chão, a mãe a adverte quanto ao fato de que os demônios dormem durante o dia, e despertam à noite. Mas ficam quietos, observando tudo. Se, por descuido, você mexe com eles, eles se irritam. Não queira tê-los irritados em casa! Isso pode acontecer, por exemplo, quando você usa a vassoura durante a noite, ou tira os móveis do lugar.
Deixem quietos os demônios. Ou então, aguentem as consequências!


sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Delícias do Mercado Municipal da Rua 3


Na primeira banca, perguntei: “O senhor tem cancorosa?”. Ele me olhou, e disse, com firmeza, que não. Apontou, ainda, que eu procurasse na banca ao lado, talvez ali pudesse encontrar. Fiz a mesma pergunta ao vizinho, que também respondeu negativamente, sem hesitação. Questionado sobre onde eu poderia encontrar, apontou a banca da frente, observando: “Ela é que costuma ter essas coisas estranhas”. Compreendi, então, que ele não sabia o que era cancorosa. Achei graça, e perguntei pelo outro nome: espinheira santa. Ah, isso ele tinha! Trouxe-me um pequeno saco de plástico, com as folhas bem esmagadas. Observei que, na verdade, eu queria as folhas inteiras. Ele me explicou que as folhas inteiras ocupam muito espaço, e precisam ser embaladas em sacos maiores. Os sacos estão caros. -“A gente espatifa ela bem espatifadinha, aí elas cabe do saco menor. Fica mais barato”. Tinha espatifado tanto, que parte dela virou farinha... Insisti na preferência às folhas inteiras, e ele recomendou, novamente, a banca da D. Eulália. A velhinha é graciosa, tem uma banca cheia de folhas medicinais, artesanato, cerâmicas, e outras quinquilharias. É famosa: já apareceu em vários programas de televisão, está acostumada a ser entrevistada. Artista, ela. - “A senhora tem espinheira santa?”; - “Tenho sim, minha filha!”; -“E a que a senhora tem, é inteira ou espatifada?” (eu aprendo rápido!). Era inteira. –“Cuidado, minha filha, para não machucar sua mão com os espinhos!”. De quebra, troquei uns dedos de boa e divertida prosa, e comprei mais alguns pacotinhos de marcela amarelinha, cheirosa...

Na saída, resolvi procurar por uma caneca de alumínio de boca estreita, alta, com tampa, para fazer café. Queria presentear um casal de amigos. Na parte superior do Mercado, na primeira loja, mostrei, com as mãos, as dimensões da caneca. A senhora que me atendeu repetiu meu gesto, observando o que dispunha nas prateleiras. Não encontrou: as canecas que tinham a altura solicitada eram bem mais largas; se tinham o mesmo diâmetro, eram bem mais baixas. Não me serviam. Então sua curiosidade foi despertada. –“O que você vai fazer com ela? Vai ferver leite?” Na verdade eu não queria entrar em detalhes sobre o uso que seria feito. Bastava a informação: tem ou não. Além disso, não tinha a menor intenção de comprar uma com outras dimensões. Ela decidiu investigar o destino que eu daria à tal caneca. Tentei ser breve: - “É para fazer café”. Sabia que não deveria ter dado início às explicações. Àquelas alturas, tinha me metido numa encrenca, pois ela teria vários contra-argumentos, na tentativa de me vender alguma das que ela tinha. –“Fazer café? Mas esta dá!...”, mostrando-me outra. Expliquei que não servia. –“Mas o que você vai fazer com o café?" Eu precisava para torrar o café. –“Mas você torra o grão, ou o pó?”. Ri-me: -“Torro ligeiramente o pó, com algumas misturas...”; -“Ah, então você mistura o pó de café com outras coisas...”. Expliquei que, na verdade, era o tempero do café... Neste ponto da conversa, eu já estava na loja seguinte, e já constatara que ali tampouco havia a tal da caneca. A senhora, que me seguira até ali, acenou, simpática, para mim, de volta à sua loja: -“Você precisa me ensinar essa receita, viu?”. Encontrei a caneca na última porta, quase na boca da rampa que dá acesso à saída. Era a única na prateleira.