quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Memórias da guerra, pequenas corrupções, feridas abertas: fraturas sociais



Onde eu nasci, as dores da guerra ainda fazem tremer a carne, embora as pessoas insistam em não lembrar, fingindo que o motor do progresso seja capaz de apagar tensões, fechar feridas abertas.

Depois da sangrenta Guerra Grande, o governo brasileiro adotou políticas para a ocupação da fronteira avançada sobre uma faixa de terra onde antes era território paraguaio.

Famílias de colonos migraram da região sul, distante, com a promessa de ganhar a posse da terra ocupada e cultivada. Comboios viajavam por meses a fio, anos até, com cavalos, carros de boi, abrindo estrada entre a mata fechada, que se fechava de novo depois de terem passado. E se fechava, também, sobre as covas dos que morriam a caminho, e eram enterrados pelos seus, deixados após.

Havia bugres na região, era como se dizia. A convivência entre eles e os novos colonos nem sempre era tranquila. Prevalecia o preconceito tanto em relação à população paraguaia, quanto aos índios guarani, a etnia dos bugres, então. Com o tempo, foi chegando mais gente, ocupando mais terras, enterrando seus mortos nas coxilhas. Os índios, espalhados, foram recuando. Muitos recolheram-se em direção ao Paraguai. Outros reuniram-se em algumas regiões específicas, que muito mais tarde vieram a formar reservas indígenas: poucas e pequenas. Muitas famílias, contudo, estabeleceram relações com os chegantes, assumindo postos de empregados, agregados criados, semi-escravos... desgarraram-se de seus grupos.

Nos anos 70, uma nova grande migração vinda do sul estabeleceu novas fronteiras naquela região, a fronteira agrícola da lavoura intensiva, principalmente dedicada ao plantio de soja. A paisagem mudou radicalmente: as matas e os campos foram derrubados, marcos memoriais se perderam, tratores e outras máquinas as mais estranhas ocuparam o lugar dos velhos carros de boi.

Poucos trechos de mata foram preservados nesse processo. Estes poucos, por sua vez, tornaram-se alvos do desejo dos grandes fazendeiros, por suas terras mais férteis que as dos campos, portanto mais produtivas. Mais recentemente tornaram-se alvos, também, de estratégias desastrosas adotadas por funcionários públicos de gabinete e ONGs ocupados em implementar pseudo-políticas de assentamento de grupos indígenas, cujos benefícios acabam sendo endereçados, de fato, a personagens escusas, devidamente preservadas de quaisquer publicidades.

A assistente social chegou com o missionário. Contaram ao cacique que poderiam levar o grupo para um lugar onde já havia uma aldeia montada. Reuniram as famílias num ônibus, e as conduziram até certo ponto da estrada, onde foram orientados a descer. Cruzaram a cerca de arame fechada, pisotearam a plantação verdejante, caminharam até o fundo do terreno, chegando à mata. Instalaram-se às margens do córrego.

A assistente social e o missionário foram-se.

Não havia aldeia. Eles ficaram ali, acampados. Passados alguns dias, os fazendeiros em volta começaram a se mobilizar, para retomar a área. A assistente social voltou, acompanhada da polícia federal, e uma planilha na mão. Fez ameaças, anotações, escreveu um relatório dando conta do sucesso do assentamento de 80 famílias. Essa informação, encaminhada à sede dos órgãos federais renderia verbas extras ao seu departamento – verba que jamais chegaria àquelas famílias... A funcionária cobrou, “por fora”, a visita aos fazendeiros, com o argumento de que estivera ali para pacificar as relações, acalmar os ânimos. Recebeu em dinheiro. Foram-se, novamente.

As famílias indígenas começaram a passar fome. As chuvas elamearam o chão e sujaram a água do córrego. As mutucas proliferaram-se. A permanência ali começou a se tornar inviável.

Os fazendeiros entraram em contato com um líder indígena de outra aldeia próxima, que se dispôs a negociar o acolhimento, por sua comunidade, das famílias. Cobraria por isso. O grupo invasor aceitou a proposta. Precisavam encontrar uma saída minimamente digna para a situação constrangedora em que se viram. Não poderiam retornar à antiga aldeia, sob pena de serem rejeitados por lá. Desterrados, viram nessa nova aldeia notícias alvissareiras acenando possibilidade de nova instalação. Apenas uma família insistiu na permanência ali, até que comparecesse o missionário que os acompanhara até ali, no primeiro momento. Queriam cobrar-lhe o cumprimento do prometido. Buscado, descobriu-se que ele estava em viagem de férias. Longas férias de três meses...

Século XXI adentro, agricultores e comunidades indígenas não são, de fato, inimigos. São lançados, contudo, uns contra os outros, em conflitos regidos e agenciados por outrem, em função de interesses alheios, devidamente dissimulados por discursos que pregam justiça social.

A esses, interessa, sim, que as feridas abertas não se fechem, jamais.

Instituições na berlinda: FUNAI, CIMI, IBAMA.



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