terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Uma emoção inexplicável

O ano era 1970. Eu não tinha completado 8 anos. Muito recentemente se havia instalado um rádio de mesa, a pilha, em nossa casa camponesa. O rádio se transformara no principal meio de comunicação com o restante do mundo. Ou melhor, de ter notícias do resto do mundo, ali, naquele recanto distante de quase tudo. Eu podia imaginar lugares, pessoas, acontecimentos, histórias, traduzindo as vozes e demais sonoridades transmitidas por aquele aparelho cuidadosamente acomodado numa mesa, ao canto da sala, perto da janela, alimentado por seis pilhas grandes, e conectado à área externa da casa por dois fios: um mais curto e mais grosso que se enfiava na terra (meu pai explicou que era o fio terra); outro mais fino, mais leve e bem longo, estendido entre duas madeiras bem altas, era a antena.

 

Foi ali, por meio daquele rádio, que eu pude acompanhar os jogos da copa do mundo de futebol, com transmissão desde o México, eu que não fazia a menor ideia de como fosse um jogo de futebol, e tampouco podia sequer imaginar onde ficava o México. Mas nada disso importava. Conduzida pela emoção da voz do narrador, as expectativas foram aumentando, a cada jogo, na mesma medida do entusiasmo com os resultados. Eu ia anotando, na contracapa cor laranja de um velho dicionário, os resultados de cada jogo. As anotações não observavam nenhum alinhamento, mas eu sabia identificar a sequência.

 

No último jogo, a emoção não cabia em mim. Ao final, saí à porta lateral da sala. O céu estava cinzento, chuvoso, fresco. À minha frente, as árvores em verde escuro eram lideradas por um frondoso abacateiro. Mais adiante, o curral, e além os animais pastavam. Esse foi um dos momentos, talvez o primeiro, quando senti muito orgulho por ter nascido no Brasil. Éramos campeões do mundo! Não sabia ao certo o que aquilo significava, nem como acontecera. Mas me sentia parte daquilo, e o sentimento de pertencimento me fazia feliz. Tudo competentemente conduzido pela voz de um narrador de futebol!

 

 

 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Duas candidatas, uma escolha

Para Kassia 

A primeira candidata, pele morena, etnia indígena, trouxe suas inquietações para compartilhar nas provas do concurso. Falou dos desafios de ser mulher indígena, vivendo fora da aldeia, em grandes centros urbanos; contou sobre seu trabalho com cerâmica, discutiu as relações colonizadoras da arte hegemônica. A segunda candidata, branca, filha de pai europeu, trouxe um discurso sobre decolonialidade, referenciado eu autores de língua inglesa, conhecedora de obras reconhecidas internacionalmente sobre o assunto. Defendeu posições autorreferidas como refratárias ao sistema da arte, apresentou um portfólio razoável de exposições. Foi assertiva em suas defesas.

 

A avaliação considerou o ponto de vista que, aparentemente, se articularia melhor com o projeto do mundo acadêmico. A banca aprovou a candidata que discursou sobre decolonialidade, e reprovou a candidata que trazia a decolonialidade no próprio corpo.

 


quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Estrela do mar

 


A estrelinha do mar virou flor, e veio morar no Planalto Central, na varanda da minha casa. 







quinta-feira, 25 de agosto de 2022

O milho verde para a torta

Hoje foi dia da feira aqui na minha rua. Porque inventei de fazer uma torta salgada para o almoço, decidi ir até lá, comprar milho verde. Nestes últimos 4 anos o preço do milho (não só do milho) subiu muito, aumentando o preço de outros produtos que podem mesmo ser considerados essenciais, como a pamonha, por exemplo. Mas esse é já outro assunto.

 

Cheguei à feira. Na primeira banca, milhos bem verdes, no ponto para a torta que eu imaginei. Perguntei ao rapaz pelo preço. Quatro por dez, respondeu. Ui! A escalada do preço não conhece recuo. De sete espigas por dez, não faz muito tempo, passou a seis, a cinco e agora quatro espigas pelo mesmo preço. R$ 2,50 é o valor de cada espiga.

 

Segui pela feira, buscando outros poucos itens, e também outras bancas com milho. Não havia: ele era o único vendedor de milho ali. Na volta, disse-lhe que precisava do milho, mas estava muito caro. Que estava cara para ele também, respondeu-me, explicando que as vendas cobriam apenas as despesas dele. Pensei na torta, e decidi trazer as espigas, apesar de tudo. Então pedi a ele que escolhesse para mim. Ele disse para eu escolher. Então respondi o senhor escolha como se fosse escolher para o senhor. Ele pensou um pouco. Posso lhe dizer uma coisa? Que sim, respondi. Se fosse escolher para mim, eu não comprava... Ele falou sério. Senti que estava desolado com tudo. Depois decidiu escolher, e separou logo seis espigas no lugar de quatro. Eu lhe disse mas assim não, o senhor fica no prejuízo. Ele disse que não, as espigas eram pequenas, os compradores nunca escolhem aquelas e ele acaba perdendo. Cortou os grãos, embalou, conversando comigo sobre a gravidade da situação econômica.

 

A torta até que ficou bem gostosa. Mas eu só usei a metade do milho já pouco: a outra metade, reservei para outra receita.

 

 

 

domingo, 3 de julho de 2022

Um mestre, um grande mestre.


Naquele dia, eu apresentaria meu trabalho no evento que tratava de arte e tecnologia. O tema surgira a partir das discussões nas aulas com ele, que eram de uma riqueza de debates, abertas à pluralidade de ideias, às diferenças de posição. Antes de tudo, eram aulas de civilidade, de alteridade e de paixão pelo conhecimento e pela cultura.

Quando cheguei à porta do Instituto, eu o encontrei sentado num banco de alvenaria, me aguardando. Levava consigo a inseparável pasta preta, onde guardava papéis com anotações. O cabelo muito branco refletia a luz matutina. A esposa o deixara ali mais cedo, antes de iniciar as suas aulas. Ele sorriu-me, e eu fiquei exultante com a surpresa. Seguimos juntos para o auditório. Ouviu-me, com a atenção que lhe era peculiar, falar sobre o filme Blade Runner, sobre ficção científica, imaginário social, noção de futuro. Sua presença ali foi a chancela para o projeto de pesquisa no doutorado. 

Um mestre, um grande mestre.

Fiz duas disciplinas com ele, durante o doutorado, ele participou da minha banca de qualificação. Ouvi-lo era sempre como desbravar territórios inaugurais de possibilidades de pensamento. Acompanhá-lo transitando entre as diferenças, as divergências, era sempre um conjunto de lições de diplomacia, de alteridade, de civilidade. E de afeto. E de humor.

Um mestre, um grande mestre.

Durante a pandemia, soube que estava lutando contra o mal de Parkinson, no Rio de Janeiro. Conversei algumas vezes com a professora Bárbara Freitag, sua esposa, de quem também fui aluna, e por quem cultivo especial respeito e afeto. Hoje, o professor Sergio Paulo Rouanet nos deixou. O mundo fica mais pobre nas possiblidades para viver na diversidade, para dialogar na divergência. Sou mesmo uma pessoa privilegiada: hoje perdi um mestre, mas ele permanece na pesquisadora em que me tornei, de cuja formação ele tomou parte fundamental.

Deve agora inaugurar animadas mesas de debate sobre cultura, pensamento social, política, filosofia e arte em outras dimensões.





segunda-feira, 25 de abril de 2022

Coisas de viver em Brasília

 




Fotos: Gwavira Gwayá, 2022

No último dia 21 de abril, Brasília completou 62 anos. Acabei não me manifestando a respeito, embora estivesse atenta ao processo de amadurecimento da cidade. E também embora hoje eu reconheça que se há algum lugar em relação ao qual eu tenha sentimentos muito fundos de pertencimento, esse lugar é Brasília.

E porque no mesmo dia 21 de abril eu tenha sido surpreendida por uma experiência particular e especial, decidi compartilhá-la, para esclarecer: quem desqualifica a capital federal ou não a conhece em sua dimensão de espaço de se viver, ou não tem a menor ideia do que seja qualidade de vida.

Em primeiro lugar, é necessário dizer que Brasília não é a Esplanada dos Ministérios, nem a Praça dos Três Poderes (hoje, território de guerras...). A maior parte da população que vive no Distrito Federal muito raramente transita nesses espaços. Muitos nunca chegaram até ali. Esse território, em segundo lugar, é ocupado por políticos e profissionais vindos de todas as partes do país, cuja permanência não dura muito mais do que uma gestão. Em segundo lugar, em territórios outros, que nada devem à Esplanada dos Ministérios e à Praça dos Três Poderes, as pessoas tecem os seus viveres, numa cidade que oferece condições diferenciadas para tanto.

Dona Francisca foi minha vizinha de porta durante décadas. E dedicou-se a plantar pequenos arbustos e mudas de árvores frutíferas do outro lado da calçada que separava o jardim do prédio e o grande gramado central da quadra. Ali cresceram, então, vários pés de seriguela, acerola, mamão, dentre outras. Também marquei presença com um pé de pitanga que já se tornou uma pequena árvore. As plantas cresceram, criando uma espécie de corredor de sombras frescas sobre a calçada pela qual as pessoas passam, em suas caminhadas.

Por ali, segui também eu, pelo meio da manhã do dia 21 de abril, quando me deparei com um conjunto de trabalhos de arte pousados junto aos troncos e entre os galhos daquelas árvores. Fui tomada pelo espanto: de entre o chão coberto por folhas secas, enroscados entre galhos, já modificados pelas intempéries do clima (calor, chuva, poeira, etc.), repousavam grandes flores coloridas, peixes recortados em papelão ou madeira, trabalhos realizados com material de sucata.

Soube, pelo Seu Antônio, que um senhor, também morador do prédio, precisou se aposentar precocemente em razão de problemas graves de saúde. A partir de então, passou a produzir aquela linha de trabalhos. Alguns são vendidos. Mas a maior parte é destinada a integrar a paisagem, como aqueles que me surpreenderam.

Respiro fundo e volto a caminhar. Isso é Brasília. E me faz bem.

 

 


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Breve visita

O beija-flor entrou, agitado, já findava a tarde. Voejou desde a sala de estar até o espaço de estudos, entre livros e almofadas. Voejou rápido, com breves paradas no ar e mudanças de direção. Temi por ele: como encontraria o caminho de saída do apartamento cheio de portas, janelas e mobílias? Ele voltou para a sala, veio em minha direção, e tomou o rumo de um dos quartos. Corremos abrir todas as janelas e apagar todas as luzes. Numa de suas idas e vindas dentro da casa, ganhou a área externa novamente, e se sumiu.

Ainda sinto a vibração do ar pela movimentação ligeira de suas asas. Meu coração está, ainda, quase tão acelerado quanto o dele. Ainda sinto gratidão pela breve e agitada visita.

Cheguei na bera do córgo onde azágua se espraia

As garça dá meia vorta e senta na bêra da praia

E o cuitelinho nun gosta

Que o botão de rosa caia-ia-iai...

 


 

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Palavras e imagens


Numa plataforma digital de compartilhamento de conteúdos, encontrei a replicação de uma postagem, na qual alguém contava uma história mais ou menos assim: quando criança, ele assistira a uma palestra, na escola, de um padre que trabalhava com causas sociais. Em sua fala, o padre explicava a importância da empadinha para se ajudar as pessoas pobres. Segundo o relato, o padre enfatizou muito a questão da empadinha no trabalho junto às pessoas pobres. E o rapaz teria ficado muito intrigado, perguntando-se o porquê da empadinha. Não seria mais eficiente providenciar pão e outros alimentos? Cerca de 30 anos depois, ele descobriu que o padre estava falando, de fato, de empatia, e não de empadinha.

Achei muita graça do relato, compartilhei com pessoas amigas, para também compartilhar os risos. Enquanto contava à minha irmã, constatei que durante vários dias, enquanto lia e contava o relato, eu pensava em coxinha ante a palavra empadinha. Rimos muito do caso. Então ela resolveu contar sobre um rapaz de nossa cidade natal que teria quebrado o braço, em decorrência de um acidente. Disse: “Ele estava montando...” e eu a interrompi, completando a frase: “... um burro xucro!”. Não, “ele estava montando um toldo...”. Ele trabalhava com instalação de toldos... Isso foi motivo de muitos risos.

Lembramos de outra ocasião, quando se instalaram as primeiras barreiras eletrônicas para controle de velocidade de veículos automotores, nas vias da cidade. Minha irmã me explicou, à época, que se passássemos “montados na faixa”, o sensor eletrônico não capturaria. Eu, com o repertório de imagens que conecto à palavra montar e seus derivados, fui logo imaginando alguém a trote, montando um cavalo, passando pelos sensores. E concluí que não seria capturado pelos sensores, provavelmente, pela baixa velocidade. Mas o que ela queria dizer era que se os carros passassem com uma lateral numa faixa e outra lateral noutra faixa...

Agora fico a imaginar alguém montando um cavalo xucro sendo capturado pelos sensores eletrônicos de velocidade, enquanto busca uma empadinha... (ou seria uma coxinha?) vendida sob algum toldo...