segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Sobre ser gorda... ou ser um monstro... ou ser um carro da Fórmula 1...


Desde criança, sempre fui considerada gorda. Tanto ouvi que era gorda, afinal acreditei no que me falavam. Hoje, vejo fotos antigas minhas... e dou-me conta do absurdo de que fui convencida. Nessa perspectiva, vivi muitas situações discricionárias, desrespeitosas, violentas. Mas esse é um assunto sobre o qual a maior parte das pessoas se cala. Inclusive nós, as mulheres gordas.

Duas circunstâncias envolvendo profissionais da saúde foram especialmente marcantes. Sobretudo porque as interlocutoras eram mulheres... 

Na primeira, eu tinha por volta de 22 anos, vestia manequim 44, fazia aulas de dança, era professora, em plena atividade. Por ter ouvido excelentes referências, fiz consulta de rotina com uma médica, clínica geral que também era homeopata. No retorno à consulta, levei-lhe os exames solicitados. Os resultados eram todos excelentes. Ela os leu, anotou, disse que estava tudo muito bem, mas eu tinha uma questão urgente a tratar. Foi incisiva: eu tinha um rosto angelical, mas meu corpo era de um monstro. Eu precisava tomar providências urgentes para emagrecer. Aquilo me impactou de tal forma, que saí meio zonza do consultório. Não retornei mais.

Mas, no decurso do tempo, a acusação de ser gorda (sim, é sempre uma acusação, uma culpa) vinha acompanhada do apontamento de uma possibilidade de redenção: restrição alimentar para o emagrecimento. Basta fechar a boca! Ou fazer o bom uso de medicamentos... Não, senhoras e senhores, não é bem assim!

Minha alimentação sempre foi muito cuidada, sempre fui ativa, envolvida com várias práticas corporais que passavam pelo teatro e pela dança. Tive várias doenças, sobretudo as virais e também infecções por bactérias. Mas, no geral, minha saúde sempre esteve bem melhor do que a saúde de minhas colegas mais magras, algumas magérrimas.

Já perto dos 40 anos, conheci uma nutricionista que me ajudou a equacionar algumas coisas da minha alimentação. Sem maiores mirabolâncias, tudo foi feito de modo muito simples. Ela trabalhava num hospital público. Durante um ano, estive com ela poucas vezes, umas quatro, no máximo. Mas havia outros vetores envolvidos. De modo que, naquele período, tudo parece ter convergido para uma estabilização do meu peso, e eu me senti um pouco melhor. O que significa eu ter me sentido melhor? Sobretudo, eu tinha a aprovação das pessoas que me olhavam e diziam coisas que poderiam ser traduzidas para "agora sim, finalmente você não está mais tão gorda!"

Mas, em seguida, iniciei novo percurso profissional, em outra cidade, e o corpo retomou também a linha lenta e continuamente ascendente no peso. Por indicação e insistência de pessoas próximas, acabei agendando consulta com uma médica nutróloga que me recebeu já advertindo: eu precisaria cortar a cerveja, a coca cola e o guaraná. Brinquei com ela dizendo que o desafio dela era ainda maior, pois eu não usava nenhuma dessas bebidas. Fiz todos os exames solicitados. Ela surpreendeu-se com os resultados excelentes. Disse-me que eu tinha um carro da Fórmula 1 (referindo se ao meu organismo como uma máquina), mas me apontou o dedo dizendo que eu estava tratando mal esse super carro. Em nenhum momento ela considerou o fato de que os exames mostravam bons resultados exatamente porque eu me cuidava. Ou seja: ser gorda não era um indicador de falta de saúde, mas um traço biotípico. Ao contrário, ela me acusava de ter a sorte de ser proprietária de uma máquina invejável, e de trata-la de modo negligente, sendo gorda.

Também a esse consultório não retornei. 

Situações como essa se repetiram algumas vezes, com diversos profissionais que deveriam cuidar da saúde...

O contexto cultural em que vivemos padece de uma espécie de esquizofrenia sistêmica. Nossos corpos se esgarçam entre demandas contraditórias, assimétricas. Precisam responder a exigências estapafúrdias, cobranças, culpas e acusações. O corpo é tido como coisa, objeto, natureza a ser dominada por um projeto de sociedade cheio de fissuras, fraturas, mortes... Nesse contexto, o corpo é propriedade, mas não me pertence. E eu, que sou tudo junto, sou corpo-afetos-pensamento-percepção-mundo, preciso desenvolver estratégias de sobrevivência, jogando entre as culpabilizações (no mais das vezes silenciosas, mas nem por isso menos contundentes) e as possibilidades de me encontrar plena nos territórios e caminhos por onde transito, nos contextos de meu pertencimento, sendo mulher, sendo o que sou.