segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Cuba: instantâneos


1995 se iniciava, e eu fui participar de um congresso de educação, em Havana. Como não havia linhas aéreas, os voos para lá eram fretados, para situações específicas. No caso, era um voo da Varig, fretado pela empresa de turismo que representava o congresso no Brasil. Saímos de São Paulo, no final da manhã. O voo fez uma parada na Isla Margarita, na Venezuela. Chegamos a Havana quase meia noite. No hotel onde tinha sido feita a reserva, descobri que a prática de over booking era normal, e não havia vagas para mim e boa parte dos participantes do congresso. Ficamos no hall, aguardando alguma solução. Havia um grande salão, com música e dança. Transitavam, por ali, homens bem vestidos, que logo ganhavam a companhia de belas mulheres usando roupas com brilhos e sandálias de plataforma altíssimas. Lá pelo meio da madrugada, fomos transferidos para outro hotel, de médio porte, onde fomos acomodados razoavelmente: Hotel Copacabana.

A abertura do congresso foi no Teatro Karl Marx. Depois que toda a audiência foi cuidadosamente acomodada na estrutura grandiosa do prédio, num momento solene a cortina do palco ergueu-se ao som do hino de Cuba. Ao centro, Fidel Castro, em pé, com seu uniforme de cor cáqui. A expressão firme mirava um horizonte além daquele lugar. À sua volta, ministros e funcionários de sua confiança, acompanhando-o no cenho. A cena era simples e contundente. Confesso que estremeci diante da sua intensidade.

Mais tarde, Fidel podia ser facilmente encontrado entre os participantes do congresso, no Centro de Convenções de Havana, conversando com uns e outros. Carismático, seduzia em papel de anfitrião hospitaleiro, com gestos e movimentação muito bem calculados. Os estrangeiros ficaram muito impressionados com aquela aproximação. Numa das noites do congresso, ouvimos um dos famosos discursos do comandante. Soube que nem foi dos mais longos. Deve ter durado pouco mais de duas horas de fala.

Eu conheci uma professora e um professor, irmãos, de Ciego de Ávila, uma cidade localizada mais ao centro da ilha. Ela usava sapatos sem salto, um vestido singelo. Notei que seu calçado era muito comum entre as professoras cubanas. Não vi ninguém com calçados parecidos com os das moças avistadas no hotel da primeira noite. A professora me explicou que elas eram garotas de programa. Seus clientes pagavam em dólares norte-americanos. Por isso podiam comprar aqueles calçados. Ela, como as demais professoras e outros trabalhadores, recebiam em pesos cubanos. Só conseguiam comprar o que havia disponível nos mercados populares, quando havia alguma coisa para comprar. Entreguei a ela parte dos sabonetes, material escolar e outros itens que eu levara para fazer doação. Então ela me perguntou quanto eu pagara pela passagem aérea. Ao ouvir o valor, perdeu-se em pensamentos. Depois comentou que nem reservando o salário dela de anos conseguiria reunir o valor correspondente em pesos cubanos.

Na ilha circulavam dólares norte-americanos entre os que tinham autorização para atender turistas, prestar serviços etc. Muito poucos tinham esse acesso. Logo aprendi que os turistas eram conduzidos cuidadosamente para certas regiões do mapa, e impedidos de circular nas demais. Do mesmo modo, poucos cubanos tinham permissão para o convívio com os estrangeiros. Tudo era mantido sob intenso e rigoroso controle.

Visitei a Escola de Belas Artes da Universidade. Visitei uma escola do ensino fundamental, onde policiais brincavam com as crianças. Visitei as ruínas de um forte. Tudo dentro da programação oficial. Aos poucos, algumas pessoas do lugar foram me mostrando como esse controle era estabelecido, de modo a regular as relações entre a população com os mensageiros do mundo lá de fora. A professora e o professor de Ciego de Ávila começaram a me sondar sobre a possibilidade de eu recebe-los em minha casa, no Brasil, em caso de uma fuga.

Uma senhora de meia idade, funcionária do hotel, falou-me longamente sobre sua admiração ao comandante. Ela, do mesmo modo que muitos outros cidadãos, referia-se a ele como a um membro da família. Grata pelo que ele fizera à sua família, assegurando alimento, moradia, educação, saúde, se desdobrava em elogios e votos de vida longa ao seu líder. Multiplicavam-se os jovens que não poupavam críticas à rigidez do controle estabelecido pelo governo, ao profundo desnível econômico entre a elite do governo e a população, ao fechamento da ilha. Um taxista, engenheiro de formação, mas sem emprego para atuar nessa área, vendia seus livros reunidos no decurso de sua história, escondidos porque proibidos. Comprei-lhe alguns exemplares. E outros, antigos, dispostos em calçadas, a preço de peso cubano. Trouxe, na bagagem, Los cuentos negros de Cuba, de Lydia Cabrera. Amor à primeira vista.

O taxista engenheiro ofereceu-se para me levar a Varadero. Embora eu não quisesse ir, aproveitei para ouvir seu relato sobre o ponto turístico. Explicou-me que ele tinha autorização para ir, em razão de sua formação escolar. Mas nem todos podiam. E as prostitutas credenciadas ficavam numa região específica, longe da orla, para atender aos turistas. Havia, também, os rapazes que se dispunham a acompanhar mulheres que viajavam sozinhas. Não era o meu caso. Em geral, eles experimentavam certa dose de esperança para, quem sabe, conseguir sair da ilha como esposo de alguma estrangeira.

Conheci uma brasileira que fazia o curso de medicina em Havana. Fui almoçar na casa onde ela morava, pagando um dinheiro que complementava a escassa renda da família que a acolhera. A dona da casa esmerou-se para me receber. Conseguiu economizar algumas batatas da cota semanal, e um pouco de carne moída encontrado nalgum mercado, por pura sorte. Entendi que era um banquete caríssimo, uma extravagância da parte deles. Senti-me honrada com o modo como fui recebida, naquele apartamento mínimo, num prédio sem elevador, localizado na parte velha de Havana, onde não são previstos tours para turistas.

Soube, então, que, ainda que alguma família vivesse numa casa com quintal, não poderia plantar hortas ali, ou criar galinhas, para evitar comercialização de alimentos entre a população fora do controle do Estado. Deveriam, sim, aguardar pelas cotas do governo. Mesmo quando elas ficassem mais minguadas, pelo aprofundamento da crise econômica no país. Durante o congresso, descobri, também, que havia uma região, em Cuba, com alta incidência de pessoas surdocegas.

Aprendi que a população de uma nação não coincide com a estrutura da instituição estatal. Ou seja: o governo não é o mesmo que a população de um país. O povo cubano tem uma energia vibrátil acima e mais forte que qualquer forma de governo.

Vida longa ao povo cubano!





segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Eta vida besta




Cidadezinha qualquer
             Carlos Drummond de Andrade


Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.


Alguma poesia (1930)








quarta-feira, 16 de novembro de 2016

abstrações








Outra árvore de Natal?!!!


cenário 
Na grande loja de departamentos, entre louças para sanitários e portas de alumínio, há muitas mudas de plantas para jardim. Samambaias, palmas, bandeiras brancas, orquídeas. Até mudas de parreiras podem ser adquiridas a preços razoáveis. Com a aproximação das festas de fim de ano, dentre as mais populares estão os pés de tuia, em tamanhos entre pequeninos e médios, com folhas oscilando entre verde escuro intenso e verde abacate.

a cena
O pai empurra o carrinho de compras, enquanto conversa com o filho com cerca de 5 anos. Observa os pés de tuia, analisa alguns, e escolhe um dos maiores, acomodando-o no carrinho. O menino pergunta: outra árvore de Natal? Ao que o pai responde: como outra? Então o pequeno explica: mas no ano passado a gente já comprou uma... agora vamos comprar outra? Pois é, explica o pai, a do ano passado já não existe mais, vamos comprar outra para este ano.

memória 
Lembrei-me da árvore de Natal da minha infância, feita com galhos secos de goiabeira, enfeitada com bolas de Natal, mas também cascas de cigarra, pequenas bromélias secas, e outros adornos que íamos inventando no decurso da vida. A árvore nunca era desmontada. Assim, era sempre Natal no canto da sala. Ela ia se modificando no mesmo passo com que nós também nos modificávamos.

obsolescências
Olhei para os pés de tuia, verdes, e pensei no destino provisório que os aguardava. A árvore que poderiam chegar a ser não se realizaria. Por algum tempo, seriam suporte para os enfeites das festas, até perecer pela falta de cuidados como água, terra adubada, luz solar. E então, descartados, seriam substituídos por outros pés de tuia, no ano seguinte, ano após ano, num tempo em que tudo, ou quase tudo, se torna obsoleto tão logo comece a existir. Inclusive as relações entre as pessoas.




terça-feira, 8 de novembro de 2016

Já vem o Natal



A Estrela de Natal, ou Flor de Natal, não deixa esquecer!
Quem precisaria de árvore de Natal, com essa florada no jardim?




terça-feira, 1 de novembro de 2016

A menina, o balão com gás hélio e o sentimento de perda

p/ Maria e Thais

A menina saiu do espetáculo de teatro exultante. Levava consigo, preso a um fio quase invisível, um balão cheio com gás hélio. Esses balões exercem um encantamento à experiência de crianças e adultos. Talvez por não levarem em consideração as leis da gravidade, e se desvencilharem dessas amarras invisíveis que nos matêm aprisionados ao chão. Talvez por serem capazes de partir. Talvez por nos lembrarem da leveza.

A menina saiu do espetáculo levando um pouco de leveza presa às suas mãos por um fino e delicado fio. Como esses fios que quase não percebemos, mas estabelecem vínculos de afeto.

No pátio, enquanto as últimas conversas preparavam as despedidas, a menina observava o movimento das pessoas. O balão flutuava sobre sua cabeça. Então ela levantou os olhos, e o viu distanciando-se, acima de todos. Por alguns instantes, não compreendeu o que se passava. Em seguida não quis acreditar. Mas olhou as suas pequenas mãos, de onde se desprendera o delicado fio, e então caiu em pranto, abraçada ao ventre da mãe.

O balão foi subindo, leve e lentamente, entre a noite sem estrelas da cidade movimentada. Ela não quis mais olhar.

A mãe amorosa lhe disse que poderiam comprar outro. Naquele momento, nada a consolaria. O balão comprado seria outro. Aquele que se lhe escapara portava mais que leveza: estava impregnado das cenas do espetáculo ao qual assistira. Partindo, levara as histórias para brilhar no firmamento. Não haveria outro.

Talvez, além de portar histórias e leveza, o papel do balão tivesse sido propiciar a aprendizagem da perda, cuja dor poderia ser amenizada pelas histórias, pela leveza, mas principalmente pelo tempo...

Olhei a noite, tentando adivinhar o destino do balão. E encontrei-me criança novamente, olhando na direção da estrada, tentando adivinhar como seriam os lugares para onde iam aqueles que partiam. Imaginar esses lugares era também um modo de amenizar a dor da perda, a solidão de quem fica.

Não demorou para que chegasse a minha vez de partir. Pelo caminho, multiplicaram-se as partidas e as perdas. Nem sempre portadoras de leveza...