1995 se iniciava, e eu fui participar de um congresso de
educação, em Havana. Como não havia linhas aéreas, os voos para lá eram
fretados, para situações específicas. No caso, era um voo da Varig, fretado
pela empresa de turismo que representava o congresso no Brasil. Saímos de São
Paulo, no final da manhã. O voo fez uma parada na Isla Margarita, na Venezuela. Chegamos a
Havana quase meia noite. No hotel onde tinha sido feita a reserva, descobri que
a prática de over booking era normal, e não havia vagas para mim e boa parte
dos participantes do congresso. Ficamos no hall, aguardando alguma solução. Havia
um grande salão, com música e dança. Transitavam, por ali, homens bem vestidos, que logo
ganhavam a companhia de belas mulheres usando roupas com brilhos e sandálias de
plataforma altíssimas. Lá pelo meio da madrugada, fomos transferidos para outro
hotel, de médio porte, onde fomos acomodados razoavelmente: Hotel Copacabana.
A abertura do congresso foi no Teatro Karl Marx. Depois que
toda a audiência foi cuidadosamente acomodada na estrutura grandiosa do prédio,
num momento solene a cortina do palco ergueu-se ao som do hino de Cuba. Ao centro,
Fidel Castro, em pé, com seu uniforme de cor cáqui. A expressão firme mirava um
horizonte além daquele lugar. À sua volta, ministros e funcionários de sua
confiança, acompanhando-o no cenho. A cena era simples e contundente. Confesso que
estremeci diante da sua intensidade.
Mais tarde, Fidel podia ser facilmente encontrado entre os participantes
do congresso, no Centro de Convenções de Havana, conversando com uns e outros. Carismático,
seduzia em papel de anfitrião hospitaleiro, com gestos e movimentação muito bem
calculados. Os estrangeiros ficaram muito impressionados com aquela
aproximação. Numa das noites do congresso, ouvimos um dos famosos discursos do comandante. Soube que nem foi dos mais longos. Deve ter durado pouco mais de duas horas de fala.
Eu conheci uma professora e um professor, irmãos, de Ciego de Ávila, uma cidade localizada mais ao centro da ilha. Ela usava sapatos sem salto, um vestido singelo. Notei que seu calçado era muito comum entre as professoras cubanas. Não vi ninguém com calçados parecidos com os das moças avistadas no hotel da primeira noite. A professora me explicou que elas eram garotas de programa. Seus clientes pagavam em dólares norte-americanos. Por isso podiam comprar aqueles calçados. Ela, como as demais professoras e outros trabalhadores, recebiam em pesos cubanos. Só conseguiam comprar o que havia disponível nos mercados populares, quando havia alguma coisa para comprar. Entreguei a ela parte dos sabonetes, material escolar e outros itens que eu levara para fazer doação. Então ela me perguntou quanto eu pagara pela passagem aérea. Ao ouvir o valor, perdeu-se em pensamentos. Depois comentou que nem reservando o salário dela de anos conseguiria reunir o valor correspondente em pesos cubanos.
Na ilha circulavam dólares norte-americanos entre os que tinham
autorização para atender turistas, prestar serviços etc. Muito poucos tinham
esse acesso. Logo aprendi que os turistas eram conduzidos cuidadosamente para
certas regiões do mapa, e impedidos de circular nas demais. Do mesmo modo,
poucos cubanos tinham permissão para o convívio com os estrangeiros. Tudo era mantido
sob intenso e rigoroso controle.
Visitei a Escola de Belas Artes da Universidade. Visitei uma
escola do ensino fundamental, onde policiais brincavam com as crianças. Visitei
as ruínas de um forte. Tudo dentro da programação oficial. Aos poucos, algumas pessoas do lugar foram me mostrando como esse controle era estabelecido, de modo a
regular as relações entre a população com os mensageiros do mundo lá de fora. A
professora e o professor de Ciego de Ávila começaram a me sondar sobre a
possibilidade de eu recebe-los em minha casa, no Brasil, em caso de uma fuga.
Uma senhora de meia idade, funcionária do hotel, falou-me
longamente sobre sua admiração ao comandante. Ela, do mesmo modo que muitos
outros cidadãos, referia-se a ele como a um membro da família. Grata pelo que
ele fizera à sua família, assegurando alimento, moradia, educação, saúde, se
desdobrava em elogios e votos de vida longa ao seu líder. Multiplicavam-se os jovens
que não poupavam críticas à rigidez do controle estabelecido pelo governo, ao
profundo desnível econômico entre a elite do governo e a população, ao
fechamento da ilha. Um taxista, engenheiro de formação, mas sem emprego para
atuar nessa área, vendia seus livros reunidos no decurso de sua história, escondidos
porque proibidos. Comprei-lhe alguns exemplares. E outros, antigos, dispostos
em calçadas, a preço de peso cubano. Trouxe, na bagagem, Los cuentos negros de Cuba, de Lydia Cabrera. Amor à primeira vista.
O taxista engenheiro ofereceu-se para me levar a Varadero. Embora
eu não quisesse ir, aproveitei para ouvir seu relato sobre o ponto turístico. Explicou-me que ele tinha autorização para ir, em razão de sua formação
escolar. Mas nem todos podiam. E as prostitutas credenciadas ficavam numa
região específica, longe da orla, para atender aos turistas. Havia, também, os
rapazes que se dispunham a acompanhar mulheres que viajavam sozinhas. Não era o
meu caso. Em geral, eles experimentavam certa dose de esperança para, quem
sabe, conseguir sair da ilha como esposo de alguma estrangeira.
Conheci uma brasileira que fazia o curso de medicina em
Havana. Fui almoçar na casa onde ela morava, pagando um dinheiro que
complementava a escassa renda da família que a acolhera. A dona da casa
esmerou-se para me receber. Conseguiu economizar algumas batatas da cota
semanal, e um pouco de carne moída encontrado nalgum mercado, por pura sorte. Entendi
que era um banquete caríssimo, uma extravagância da parte deles. Senti-me honrada com o
modo como fui recebida, naquele apartamento mínimo, num prédio sem elevador,
localizado na parte velha de Havana, onde não são previstos tours para
turistas.
Soube, então, que, ainda que alguma família vivesse numa
casa com quintal, não poderia plantar hortas ali, ou criar galinhas, para
evitar comercialização de alimentos entre a população fora do controle do
Estado. Deveriam, sim, aguardar pelas cotas do governo. Mesmo quando elas
ficassem mais minguadas, pelo aprofundamento da crise econômica no país. Durante
o congresso, descobri, também, que havia uma região, em Cuba, com alta
incidência de pessoas surdocegas.
Aprendi que a população de uma nação não coincide com a
estrutura da instituição estatal. Ou seja: o governo não é o mesmo que a
população de um país. O povo cubano tem uma energia vibrátil acima e mais forte
que qualquer forma de governo.
Vida longa ao povo cubano!
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