segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

III Guerra Mundial


De saída, devo informar que não me sinto confortável com a expressão “guerra mundial”, se pensamos em abrangência planetária, envolvendo embates entre a espécie humana (ainda que tais embates repercutam mortalmente entre outras espécies de vida). Não cabe a uma guerra entre humanos a alcunha de mundial... 

Mas, vamos lá: não é de hoje que os medos sobressaltam pessoas nos cinco continentes, com a possibilidade de que se inicie a III Guerra Mundial, quando os traumas e as sequelas causadas pelas I e II Guerras ainda não foram totalmente sanadas. Como seria a III edição da guerra? Qual seria o seu disparo? Quais as armas?

Suspeito que, presa a imaginação a modelos anteriores de guerra, não se tenha percebido que há estamos imersos na III Guerra Mundial em pleno curso.

Mulheres são mortas em crimes horrendos de feminicídio em escala crescente, a despeito de legislações, mobilizações, pedidos de socorro.

Populações negras são assassinadas nas periferias das cidades, em atos crescentes de desprezo às suas existências.

Comunidades indígenas vêm sendo eliminadas, apagadas, no continente americano desde a chegada dos europeus.

Populações e etnias de quantos países não têm direito de voltar a suas casas, em confrontos bélicos, mas também religiosos, que se estendem à violência contra mulheres, contra orientações sexuais não dominantes, racismos e processos de escravização de toda ordem. A morte é só uma das etapas de sua desterritorialização radical, de sua dor, do castigo que que é impingido pelo crime que cometem por viverem.

E o Corona Vírus 19 comparece dando celeridade a uma guerra já em curso, manifestada em múltiplas faces e feições.

As duas primeiras guerras configuraram-se entre estados-nação. Ao final do século XX, falou-se tanto sobre o enfraquecimento dos estados-nação ante os processos de radicalização da economia global, e ante o poder do capital multinacional. Por que haveríamos de esperar, então, uma guerra entre estados-nação, e não uma guerra que, embora pautada e supostamente performada por estados-nação, seja regida, de fato, pelo capital, que não reconhece outras fronteiras geopolíticas que não as de seus próprios ativos?

O capital avança sobre as mulheres, os pretos, os pobres, os índios, as florestas, o deserto, o gelo, os elefantes, os tigres, as onças pintadas, as águas, os peixes, os outros, os diferentes, os não sabidos, os estranhos... seu rastro é de morte. Devem morrer, mas é preciso que não morram todos, para assegurar a manutenção de mão de obra, de populações para serem escravizadas, de mulheres para a reprodução e para serem estupradas, violadas...

Sim, estamos em plena vigência de uma guerra que envolve os estados-nação regida pelo capital. Os cadáveres se acumulam por todas as partes. A dor me atravessa o peito e já quase não consigo respirar. Os mortos não são apenas vítimas da COVID-19. Ao contrário. A pandemia é apenas mais um vetor.


 

PS.: A propósito, é preciso admitir: o Corona Vírus é uma substância viva altamente inteligente. Rapidamente tem se adaptado ao comportamento da espécie humana, reconhecendo nossa insanidade e beligerância, e jogando com elas. Talvez, hoje, o Corona Vírus conheça mais do nosso comportamento do que nós mesmos.

 




sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dar presentes como experiência poética


 

Para Jossier, Julia, Marcelo, Alice, Maitê, Renato, Lorena, Martin, Etel, Leda, Maria, Meyre, Néia, Bruno, Ita, Vandimar, Nara, Rafael, Mariana, Alzira, Carla, Adriane, Juan, Bráulio, César, Jota, Ruth, Luciano, Laís, Rosângela, Mara, Paulo, Paul, Lara, José, Muniz, Juliana, Diná, Hugo, Neila, Seu Osorinho, Iana, Carol, Cátia, Lutiere, Zaldo, Emile, Alda, Luciana, Vanessa, Rita, Bárbara, Matheus, Diego, Seu Zagati, Diana, Rúben, Fernando, Gonzalo, Adriana, Norberto, Vagna, Márcio, Iria, Yunna, Helô, Anaí, Talita, Aline...

 

Já no ônibus, de Querétaro para a Cidade do México, em 2015, conversei um pouco com meu marido, por videochamada. Uma senhorinha idosa, sentada ao meu lado, também conversava ao telefone com um filho que aguardava sua chegada à capital mexicana. Ouvi quando ela lhe contou estar sentada ao lado de uma estrangeira. E explicou não saber a origem, pois não entendia nada do que “a estrangeira estava falando”. Diverti-me com sua observação. Algum tempo depois, fiz-lhe alguma pergunta em espanhol, para seu espanto. Então iniciamos uma conversa animada que se estendeu por toda a viagem. No desembarque, ela decidiu que o filho me levaria até o hotel onde eu tinha reserva. Relutei, sinceramente. Mas ela foi irredutível. Então embarcamos no carro: ela e o filho à frente, eu e a namorada do filho no banco de trás. Passamos, primeiro, na casa do filho, quando fui informada que no restante do percurso eu seria conduzida pela namorada do filho. Maria era seu nome. Uma artista visual. Ela foi gentil, graciosa. Levou-me ao seu bairro, mostrou-me onde vivia. Depois foi até o hotel, dando-me orientações sobre cuidados que eu deveria ter na região, acessos a diversos pontos da cidade, etc. Já no hotel, ela comentou sobre minhas botas, dizendo que gostara delas. Eram umas botas de cano baixo, muito confortáveis, com as quais fiz boa parte das minhas viagens durante muito tempo, até que elas se desfizeram. Perguntei-lhe o número que calçava, trocamos endereços eletrônicos, e nos despedimos.

Já no Brasil, voltei à loja onde comprara as minhas botas, e encontrei um par no número que Maria calçava. Fiquei feliz. Ela me informou seu endereço residencial e, algum tempo depois, recebeu o pacote com o presente. Não se demorou para que eu recebesse uma foto sua, calçada com o par de botas. Trocamos notícias muito eventualmente. Por ocasião dos terremotos, soube que havia se separado do filho da senhorinha minha companheira de viagem. E mais: mãe e filho teriam voltado definitivamente para Querétaro, de modo que estariam a salvo dos tremores.

Presentes são assim: mais que o objeto, ou a ação em si, o valor de um presente está em todas as circunstâncias que o envolvem. Importa o momento quando emerge o desejo de presentear. Depois, a decisão sobre com o que e como presentear. Trata-se, afinal, de um projeto ao qual presenteadores se dedicam, empenhando tempo, afetos, habilidades, expectativas. A execução propriamente dita está no ato de fazer com que a pessoa presenteada receba o mimo. Esse momento pode ser considerado o ápice, mas não é a finalização, conquanto as reverberações se façam sentir nos desdobramentos.

Afinal, presentear é se fazer presente, firmar presença no aqui agora em relação à pessoa presenteada, à pessoa diante de quem alguém se faz presente. E isso se refere não ao estabelecimento de vínculos, mas ao modo como se tratam os vínculos estabelecidos, reafirmando-os, atribuindo-lhes qualidade. Em Ensaio sobre a dádiva (1974), Mauss argumenta que, em muitas sociedades consideradas arcaicas, os vínculos comunitários são alimentados pelas dinâmicas que envolvem dar, receber, e retribuir, a que o antropólogo atribuiu o sentido da dádiva. E a dádiva produz alianças. Tomados num sentido mais amplo, os processos de dar, receber e retribuir podem ser observados em todas as instâncias do viver social, e envolvem desde favores, objetos, trabalhos, contratos, compadrios, conhecimento, até presentes. E, mais uma vez, os presentes envolvem objetos, mas também ações, disponibilidades, presenças de diversas naturezas.

Presenças. Há pessoas cuja presença é presente em nossas vidas...

É necessário frisar, contudo, nos princípios da dádiva e das alianças, a ênfase dada, além da premissa de dar, também a disponibilidade para receber, bem como a responsabilidade em retribuir, uma vez recebida a dádiva. Ou seja, quem recebe deve retribuir. Não necessariamente para quem lhe propiciou a dádiva, podendo ser, a retribuição oferecida a outrem.

Não cometamos ingenuidades: há relações de poder organizadas em torno a tais dinâmicas. As próprias relações comerciais podem ser pensadas nesses termos. No entanto, antes disso, prefiro pensar o ato de presentear em sua dimensão poética. Há uma trama de poiesis e aesthesis no ato de conceber um presente, executá-lo, dá-lo, recebê-lo, vivenciá-lo. Um gesto, uma sonoridade, uma palavra, uma lembrança, uma imagem, uma embalagem...

Uma abóbora madura cuidadosamente depositada no batente da porta para me surpreender no momento quando eu chegasse à casa. Um bolo de jatobá acompanhado das cascas das frutas de onde foi tirada a farinha. Um bolo de maçãs feito numa forma com desenho de mandala. Uma mandala feita com furos de agulha em papel canson. Um bolo de abacaxi. Um bolo de jabuticaba. Uma máscara. Um retrato encravado na madeira, para uma xilogravura. Um chá perfumado. Uma música. Um almoço. Uma traquinagem. Uma gargalhada no meio da tarde. A solução para um problema. Um silêncio acolhedor. Uma oitiva. Uma fotografia. Orquídea florida. Azaleia cor-de-rosa. Um livro. Pães. Folhas de ora-pro-nóbis. Torrões de chá. Um LP do Tom Waits. Um espetáculo. Um pedaço de madeira. Um olhar que sorri. Uma caveirinha que ri escandalosamente. Um bordado...

Presentes se comunicam por meio da visão, do gesto, do perfume, do sabor, da textura, da memória, das luzes, dos afetos, das temporalidades... da respiração...

Depois de uma semana tensa, um final de semana angustiado, eu estava ansiosa, o peito apertado. Atrapalhei-me à saída, rumo à casa de minha irmã e minha mãe. Acabei me esquecendo de muitos itens importantes da bagagem: smartphone, carregadores de baterias, encomendas, livros que deveriam ser lidos. Esqueci-me de passar na portaria do edifício para me despedir dos funcionários, e receber um presente que me aguardava...

Três dias se passaram até que os itens esquecidos chegassem ás minhas mãos. Dentre eles, um bordado diante do qual fui tomada de espanto. Espanto é condição de aesthesis. Espanto é o que nos toma quando nos deparamos com o não sabido, com o imprevisível, com aquilo que está fora do esperado. Com o que toca os nossos sentidos, modificando os modos como nos percebemos no mundo. A experiência estética, que decorre do espanto, é condição de abertura ao não sabido, e à produção de conhecimento. Do saber, palavra que partilha sua raiz com a palavra sabor.

Escolho não ter pressa diante do espanto, diante da experiência estética que me move. Sobretudo quando esse espanto resulta de uma dádiva, um presente. Não posso atropelar os meus sentidos, tentando prematuramente decifrar ou fixar a experiência.

O bordado, feito à mão, com linha muito fina, agulha tão fina quanto, delineou no tecido o meu retrato. Para degustá-lo, eu deveria demorar, pelo menos, o mesmo tempo que ele demorou para ser feito.

Retrocedo no tempo e me recordo da manhã (ou teria sido uma tarde?) quando fiquei a brincar diante da câmera montada pela Cátia, tendo como pano de fundo a brise amarela que cobre as janelas da faculdade. Rimos, fiz caretas, imaginei intenções. Uma das fotos, um misto de deboche com dúvida e riso, foi adotada como assinatura para várias comunicações. No bastidor que se encontrava em minhas mãos, ela ganhou as marcas do bordado. Minha imagem bordada vem guardada por folhas e flores de espada de São Jorge, entre outras vegetações. Quase sinto-lhes o perfume.

Recebo o presente, que é uma dádiva. Recebo e o integro ao que sou. Sem dizer muito obrigada, me comprometo a retribuir. Talvez não o faça na forma de bordado. Mas nalguma forma outra de experiência estética, de aesthesis atrelada à poiesis. Nalguma forma de estar presente, e alimentar vínculos, e inventar sentidos ao viver-estar-no-mundo, em comunidade.

 

 

 

 

MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In : MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. v. II. São Paulo: Edusp. 1974.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

E então novamente é Verão. E então é Natal mais uma vez.


Na quinta feira, dei aula a manhã toda. Era a segunda aula do semestre com a turma ingressante no curso de licenciatura em artes visuais. Uma turma grande, plural, cuja interlocução me estimulava. Tínhamos um percurso a cumprir juntos, na disciplina Fundamentos da Arte na Educação.

Mas já havia uma expectativa no ar, relativa à pandemia, em curso. Ninguém tinha uma ideia do que aconteceria a seguir. Ainda não se tem. Acho que nunca se terá.

Na parte da tarde, ainda na universidade, encontrei alguns orientandos e orientandas. Conversei com uma professora que participava de um projeto comigo. Dei vários encaminhamentos que ganharam feições de preparação para o extraordinário, ainda que não fosse essa a intenção.

Maria me procurou. Tínhamos agendado uma reunião de orientação para a segunda feira seguinte. Desmarcamos, pois a universidade já tinha acenado para a suspensão das atividades a partir da semana próxima. Aguardaríamos os desdobramentos, para agendar novo encontro.

No final da tarde, saí à porta da faculdade. Avistei a cidade, ao longe, sob o sol morno daqueles que ainda eram dias de verão. Na mata, ao lado, a bicharada fazia algazarra. Despedi-me das pessoas que também cumpriam suas jornadas por ali. Alguns cachorros espreguiçavam nas calçadas. O carro saiu aos solavancos no trecho de terra que liga o edifício à rua de acesso.

Levava a expectativa a respeito do que se abateria sobre nós. Não era possível supor. Desde então, não retornei à faculdade. Alguns dias depois daquela quinta feira, teve início o Outono. Falava-se, então, que a suspensão das aulas iria até o final do primeiro semestre. Parecia muito. Mas o tempo correu mais rapidamente do que se supunha. E levou, consigo, um número cada vez mais crescente de vítimas da COVID-19. Os prazos foram se alargando progressivamente. Algumas atividades acadêmicas foram sendo retomadas, buscando-se alternativas em suas formas e dinâmicas. Outras atividades não tiveram interrupção.

E veio o inverno. A universidade acabou retomando as atividades quase que plenamente, no segundo semestre. Com as atividades remotas, o calor insuportável, a baixa umidade, as aulas da graduação foram retomadas. A turma com que eu estivera naquela quinta feira quando ainda era verão retomou as aulas, agora com outras dinâmicas. Muitas pessoas desistiram de estudar neste momento. Foram muitas as perdas. Mas também se conquistou a possibilidade de cumprir a jornada até o final, apesar das dores, com quem tenha conseguido reunir forças, energia e determinação suficientes para não desistir.

Aulas, reuniões, bancas, orientação, encontros, eventos, seminários, cursos, oficinas, eleições, tudo, tudo, tudo migrou para os ambientes digitais. Rapidamente, os écrans tomaram conta do quotidiano, numa infinidade de links, sobreposições de agendas, regras de conduta, interlocuções de toda natureza.

A Primavera nos encontrou exaustos. E continuamos exaustos até que chegamos novamente ao Verão. No segundo dia da nova estação, tomou posse a diretoria da Faculdade de Artes Visuais, para cumprir nova gestão de quatro anos. O diretor, reconduzido para o cargo, se investe de sensibilidade e coragem para essa travessia com desafios extras cujas dimensões ainda não podemos mensurar. O vice-diretor, jovem, com carreira iniciante, se lança à empreitada, evocando o espírito de colaboração, com garra e coragem.

Daqui a dois dias, será véspera de Natal. Uma semana depois se iniciará a contagem dos dias de um novo calendário, referente ao ano 2021 da era cristã. Ainda estamos em pandemia. Nossas atividades acadêmicas e escolares presenciais ainda estão em suspenso. Mas o funcionamento da universidade prossegue, a pleno vapor. Intenso.

Noutro dia, soube que aumentou o número de família das corujas buraqueiras no Campus II. Queria saber também sobre as outras famílias, dos quero-queros, dos pica-paus, das curicacas... e dos pés de jacarandá mimoso, de ipê, de flamboyant... E como andariam os macacos-prego? Os cães continuam guardando o prédio da faculdade. Ainda bem!

Nesses tempos, fortaleceram-se alguns vínculos com pessoas de outros países. Vamos nos descobrindo, aprendendo a compartilhar inquietações e sonhos. Não, não estamos sós, embora também estejamos. Penso nas e nos estudantes que iniciaram o curso duas semanas antes da suspensão das atividades presenciais. Teria ficado feliz se quem desistiu tivesse condições de permanecer, ou de voltar. Penso nos meus orientandos, nas minhas orientandas; nas professoras e nos professores parceiros; nas parcerias de pesquisa, naquelas pessoas que não abandonaram as trincheiras.

Rapidamente, nos aproximamos, no Brasil, da marca dos 200.000 mortos pela COVID-19.

Além do corolário de mortes, o Verão trouxe as chuvas, e manteve o calor. Traçamos planos para o futuro, mas já não para futuros distantes. Mesmo dos futuros próximos já não conseguimos ter mínimas certezas. Tememos. O que planejar para o próximo Outono? Que estejamos vivos, talvez. Que possamos nos reencontrar depois do próximo Inverno, quem sabe? Melhor ater os projetos na possibilidade de celebrar este dia, agora, esta luz diáfana, o frescor deste vento, as sonoridades que se dissipam no espaço... os afetos que aquecem o coração.

E então novamente é Verão! E então é Natal mais uma vez!

 

 

domingo, 18 de outubro de 2020

Da dádiva e da gentileza


Nestes tempos tão obtusos (e me pergunto o que eu teria, de fato, contra os ângulos obtusos? O que seria, afinal, dos ângulos agudos não existissem os obtusos?...), o desalento muitas vezes nos toma de assalto, e permanece, sem querer nos deixar. Das questões macro às relações interpessoais quotidianas, não faltam sustos, inquietações e preocupações a desestabilizar quaisquer projetos de calma.

Mas também é nesses tempos tão obtusos que pequenos gestos ganham uma dimensão particular, assegurando a ancoragem de sentidos possíveis aos nossos dias. Foi assim quando a vizinha deixou uma abóbora no batente da porta de casa, e ligou avisando. Ou quando a outra vizinha deixou dependurada uma sacolinha com doces jabuticabas e, na semana seguinte, uma sacola com pequi. E o pão caseiro deixado por um casal de amigos queridos, que já haviam deixado, anteriormente, um bolo. E o outro bolo com sabor e cheiro de laranja trazido por um amigo e uma amiga, com um livro de poemas, e eu ainda não sei qual é mais doce: o bolo, o livro, o afeto, ou tudo junto... E o que falar da caixinha com torrõezinhos de chá de erva-cidreira? E da camiseta com o anjo da história? E do bolo de jatobá, feito a seis mãos, quatro das quais tão pequeninas e sábias? E o bolo de maçã, assado numa forma que mais parece uma mandala? E a azaleia cor de rosa florida, parceira da orquídea lilás? E as mudinhas de onze horas vicejando na chaleira que virou vaso de plantas sobre a mesa? E a pombinha que, na varanda, cuida já de sua segunda ninhada de filhotes? 

Pois ontem foi dia de mais um gesto de dádiva e gentileza: recebi, de presente, um CD com o encarte e uma máscara que integram um projeto belíssimo realizado pelo Frederico Carvalho. Com direito também a um sorriso fraterno, num fim de tarde com alguma chuva, e algum frescor.

Por vezes, tendo a me alinhar aos discursos que argumentam ter sido, este, um ano perdido. Mas quando me aninho com esses gestos de afeto tão especiais, porque são necessários tanto quanto água e ar, entendo que não tenho o direito de ser injusta. Nas travessias mais duras encontram-se também as manifestações mais potentes daquilo que nos dá ânimo para não desistir.

Se, a cada gesto de dádiva de que somos destinatários, nos cabe acolher e retribuir (na velha equação que diz: dar, receber, retribuir), neste ano tenho visto ampliar-se o rol das minhas responsabilidades de partilha, para corresponder à possibilidade de manifestações de afeto que dizem: estamos aqui, somos melhores se estivermos juntos, se formos capazes de multiplicar gestos de gentileza.

Obrigada Mary Elza, Ivones, Renato, Lorena, Juan, Bruno, Naras, Rafael, Mariana, Denilson, Julia, Marcelo, Alices, Maitê, Alzira, Iana, Leda, Bráulio, Fred, Cátia, Jossier, Carol, Carla, Bárbara, Aline, Matheus, Gabrielas, Adriane, Henrique, Zaldo, Emile, César, Anai, Nilo, Jota, Ruth, Marias, Néia, Yunna, António, Márcias, Maurício, Muniz, Vagna, Adalto, Iria, Helô, Josés, Anas, Adrianas, Esau, Sofía, Fernandos, Gonzalo, Diana, Rubén, Norberto, Wanderley, Mara, Tony, Reginaldo, Cleuzinha, Vi, Lara, Hélio, Antonella, Katia, Vanessas, Lauras, Gabriéis, Taísa, Luti, Paulo, Ro, Juliana, Márcio, Lu, Talita, Renata, Neila, Aristein, Dheniffer, Ayme, Valéria, Lilian, Noeli...

 


domingo, 27 de setembro de 2020

Breves apontamentos sobre Vilém Flusser e Walter Benjamin


Passados 80 anos da morte de Walter Benjamin (26 de setembro de 1940), enquanto tentava cruzar a fronteira entre a França e a Espanha, também são cumpridos 80 anos da migração de Vilém Flusser para o Brasil, tendo saído de Praga no ano anterior. E, neste mesmo ano de 2020, Vilém Flusser completaria 100 anos (ele nasceu em 20 de outubro de 1920, 5 anos depois de meu pai, que nascera em 20 de outubro de 1915).

Não por acaso, há tantos elementos que se entrecruzam na vida e na obra desses dois pensadores tão instigantes, Benjamin e Flusser. Ambos de origem judia, transitaram entre os horrores do nazismo. Vilém Flusser sobreviveu graças à fuga com a família de seu amor de infância, Edith Barth, que se tornaria sua esposa. Saíram de Praga em 1939, passaram pela Inglaterra e França. Deixaram uma Europa em escombros para trás, e chegaram ao Brasil, onde constituiu família, trabalhando com o sogro numa empresa de importações e exportações. Sem deixar a atividade intelectual, dedicou-se a indagar sobre a vida, se ela mereceria ou não ser vivida. Isso porque, já em terras brasileiras, teve informações sobre a morte dos pais, irmã e avós, que fariam parte da trágica história de Auschwitz.

Algum tempo depois, deixou as atividades comerciais para atuar como professor de filosofia da linguagem e da ciência, e teoria da comunicação. Entre o final dos anos 50, a década de 1960 e o início dos anos 70, produziu a primeira etapa de sua obra densa e múltipla. No trato com a palavra encontrara a estratégia na qual investiria todos os seus esforços, buscando compreender o incompreensível: os caminhos pelos quais a cultura ocidental resultou em Auschwitz, tendo o campo de concentração como uma de suas obras máximas, ao lado da bomba atômica e dos computadores.

É de se notar que, se Vilém Flusser considerou sua condição de estrangeiro uma das bases existenciais e de articulação de seu pensamento, ele também foi um outsider em relação à sua formação intelectual. Tendo estudado filosofia na Universidade Carolina, em Praga, entre 1938 e 1939, seu percurso transcorreu, sobretudo, refratário aos rituais protocolares das instituições acadêmicas.

Entre os anos 1960, 1970 e 1980, o Brasil também atravessou territórios de horrores. E, constatando que a esperança se encolhia à sua volta, bem como sua expectativa em torno do “novo homem” possível, Vilém Flusser decidiu migrar de volta para a Europa, instalando-se na França. Contudo, manteve os vínculos com o Brasil, para onde continuou vindo com regularidade. Esse período foi marcado por sua produção mais profícua, e também passou a ganhar maior repercussão. O tema das imagens técnicas passou a figurar em seus escritos, de modo que ganhou a alcunha de filósofo das mídias (o que acaba por ser um reducionismo em relação à complexidade e abrangência de sua produção).

Walter Benjamin nasceu em 1892, em Berlin. E, no ano do nascimento de Flusser, ele já defendera seu doutorado havia um ano, na Universidade de Berna. Em meados da década de 1920, aproximou-se da Escola de Frankfurt. Contudo, sua produção também se caracterizou por uma certa autonomia em relação às instituições acadêmicas e seus protocolos. Talvez autonomia não seja a melhor palavra atribuída ao seu trabalho, considerando-se que a universidade e demais instituições acadêmicas não acolheram a produção de Benjamin. Um desses indicadores pode ser constatado na rejeição de sua tese de livre docência pela Universidade de Frankfurt. Talvez possamos também notar que suas relações com o grupo de intelectuais da Escola de Frankfurt, do mesmo modo, frequentemente deparavam-se com dissenções (o que, ressalte-se, não alterou a estreita relação entre ele e Theodor Adorno). 

No início dos anos 1930, com a ascensão do regime nazista, Walter Benjamin migrou para a França, onde viveu e produziu parte importante de sua obra. No entanto, não demorou para que jornais e revistas alemãs começassem a se recusar a publicar seus escritos. Como a maioria dos judeus, perdeu a cidadania alemã. Na tentativa de fuga para a Espanha, de onde supostamente poderia seguir para os Estados Unidos da América do Norte, foi barrado na fronteira, morrendo em 26 de setembro de 1940.

Há quem diga que a morte o poupou de testemunhar os campos de concentração (ou talvez de sucumbir a eles), bem como a bomba atômica, e também a derrocada da modernidade. Vilém Flusser não só testemunhou isso tudo como sofreu com a perda dos seus. E esforçou-se por inventar modos de digerir cada fragmento dessa experiência, em seus escritos. Talvez em razão da tragédia, mesmo tendo retornado para a Europa no início dos anos 1970, e viajado por vários países para ministrar palestras e cursos, demorou-se muito para voltar à sua cidade natal. Em novembro de 1991, foi convidado para proferir uma palestra no Goethe-Institut de Praga. Ao lado de Edith, só então foi reencontrar-se com as ruas, os prédios, os lugares de sua infância e juventude. Esse relato está em seus últimos escritos. Na viagem de volta, ambos sofreram um acidente, fatal para ele. Foi enterrado no Novo Cemitério Judeu de Praga. Em 2014, o corpo de Edith foi sepultado no mesmo túmulo. Na lápide consta a seguinte inscrição: “Não morreremos conjugados. “Nós” nunca morreremos, porque apenas eu e tu, a solidão é para a morte”.

No alto de uma colina, no cemitério de Portbou, na Espanha, de frente para o oceano e para as ruinas do bunker alemão, há um túmulo com a inscrição do nome de Walter Benjamin. No entanto, seu corpo não está enterrado ali. Quando ele morreu, foi enterrado naquele cemitério, num jazigo pago para um período de 5 anos. Ao final desse desse prazo, seus restos mortais foram jogados numa vala comum. O túmulo, construído pela prefeitura de Portbou, é simbólico.

 




 

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Sobre ser gorda... ou ser um monstro... ou ser um carro da Fórmula 1...


Desde criança, sempre fui considerada gorda. Tanto ouvi que era gorda, afinal acreditei no que me falavam. Hoje, vejo fotos antigas minhas... e dou-me conta do absurdo de que fui convencida. Nessa perspectiva, vivi muitas situações discricionárias, desrespeitosas, violentas. Mas esse é um assunto sobre o qual a maior parte das pessoas se cala. Inclusive nós, as mulheres gordas.

Duas circunstâncias envolvendo profissionais da saúde foram especialmente marcantes. Sobretudo porque as interlocutoras eram mulheres... 

Na primeira, eu tinha por volta de 22 anos, vestia manequim 44, fazia aulas de dança, era professora, em plena atividade. Por ter ouvido excelentes referências, fiz consulta de rotina com uma médica, clínica geral que também era homeopata. No retorno à consulta, levei-lhe os exames solicitados. Os resultados eram todos excelentes. Ela os leu, anotou, disse que estava tudo muito bem, mas eu tinha uma questão urgente a tratar. Foi incisiva: eu tinha um rosto angelical, mas meu corpo era de um monstro. Eu precisava tomar providências urgentes para emagrecer. Aquilo me impactou de tal forma, que saí meio zonza do consultório. Não retornei mais.

Mas, no decurso do tempo, a acusação de ser gorda (sim, é sempre uma acusação, uma culpa) vinha acompanhada do apontamento de uma possibilidade de redenção: restrição alimentar para o emagrecimento. Basta fechar a boca! Ou fazer o bom uso de medicamentos... Não, senhoras e senhores, não é bem assim!

Minha alimentação sempre foi muito cuidada, sempre fui ativa, envolvida com várias práticas corporais que passavam pelo teatro e pela dança. Tive várias doenças, sobretudo as virais e também infecções por bactérias. Mas, no geral, minha saúde sempre esteve bem melhor do que a saúde de minhas colegas mais magras, algumas magérrimas.

Já perto dos 40 anos, conheci uma nutricionista que me ajudou a equacionar algumas coisas da minha alimentação. Sem maiores mirabolâncias, tudo foi feito de modo muito simples. Ela trabalhava num hospital público. Durante um ano, estive com ela poucas vezes, umas quatro, no máximo. Mas havia outros vetores envolvidos. De modo que, naquele período, tudo parece ter convergido para uma estabilização do meu peso, e eu me senti um pouco melhor. O que significa eu ter me sentido melhor? Sobretudo, eu tinha a aprovação das pessoas que me olhavam e diziam coisas que poderiam ser traduzidas para "agora sim, finalmente você não está mais tão gorda!"

Mas, em seguida, iniciei novo percurso profissional, em outra cidade, e o corpo retomou também a linha lenta e continuamente ascendente no peso. Por indicação e insistência de pessoas próximas, acabei agendando consulta com uma médica nutróloga que me recebeu já advertindo: eu precisaria cortar a cerveja, a coca cola e o guaraná. Brinquei com ela dizendo que o desafio dela era ainda maior, pois eu não usava nenhuma dessas bebidas. Fiz todos os exames solicitados. Ela surpreendeu-se com os resultados excelentes. Disse-me que eu tinha um carro da Fórmula 1 (referindo se ao meu organismo como uma máquina), mas me apontou o dedo dizendo que eu estava tratando mal esse super carro. Em nenhum momento ela considerou o fato de que os exames mostravam bons resultados exatamente porque eu me cuidava. Ou seja: ser gorda não era um indicador de falta de saúde, mas um traço biotípico. Ao contrário, ela me acusava de ter a sorte de ser proprietária de uma máquina invejável, e de trata-la de modo negligente, sendo gorda.

Também a esse consultório não retornei. 

Situações como essa se repetiram algumas vezes, com diversos profissionais que deveriam cuidar da saúde...

O contexto cultural em que vivemos padece de uma espécie de esquizofrenia sistêmica. Nossos corpos se esgarçam entre demandas contraditórias, assimétricas. Precisam responder a exigências estapafúrdias, cobranças, culpas e acusações. O corpo é tido como coisa, objeto, natureza a ser dominada por um projeto de sociedade cheio de fissuras, fraturas, mortes... Nesse contexto, o corpo é propriedade, mas não me pertence. E eu, que sou tudo junto, sou corpo-afetos-pensamento-percepção-mundo, preciso desenvolver estratégias de sobrevivência, jogando entre as culpabilizações (no mais das vezes silenciosas, mas nem por isso menos contundentes) e as possibilidades de me encontrar plena nos territórios e caminhos por onde transito, nos contextos de meu pertencimento, sendo mulher, sendo o que sou.

 

 

 


quinta-feira, 28 de maio de 2020

Cindidos















imagem de arquivo pessoal



 imagem encontrada aqui


imagem encontrada aqui

Nasci na fronteira. A fronteira é parte constituinte do que sou. Eu não glamourizo a fronteira: ela é sempre tensa, prenhe de conflitos, mas também nos ensina a transitar entre as diferenças, na diversidade. Na fronteira se formam trincheiras, em tempos de guerra. Mas também se constroem as feiras de compras e vendas, as trilhas que levam a encontros, a falares de muitas línguas.

A fronteira, de onde eu vim, é marcada pela guerra. A guerra mais perversa impetrada na América do Sul, que resultou num genocídio do qual não se pode olvidar. As memórias da guerra pulsam em territórios insuspeitados. Mas sobre ela constroem-se, ou buscam-se construir relações outras, capazes de cultivar esperanças e alegrias.

Na minha infância, uma das alegrias tinha o nome de coquito: um biscoito redondo, crocante, comprado no Paraguai, numa padaria que ficava muito próxima da nossa casa, do lado brasileiro.

Muitos anos mais tarde, já na adolescência, habitante do Planalto Central, caminhava pela Esplanada dos Ministérios, com a sensação de mergulho nos verdes e azuis daquela paisagem imensa. Avistar os edifícios logo ali adiante, e descobrir que tinham enganado minha visão no tocante às lonjuras dava uma sensação de liberdade embriagante. De deslimite. Não por acaso a capital federal também foi escola de encontro com o outro: todos não éramos dali, e experimentávamos esses deslimites, em nossas diferenças.

De algum tempo para cá, isso tudo ficou fraturado. A dor que sinto hoje, provocada por essa fratura, sequestra qualquer esperança de que, em algum momento, se possa recuperar a possibilidade do encontro na diversidade pautado pela ética, pelo respeito, pela civilidade.

Visualmente, posso localizar essa fratura em dois momentos.

O primeiro, ocorrido em 2016, quando, em razão das manifestações populares durante as votações para o afastamento da Presidenta da República, foi erguida uma parede longitudinal ao meio da Esplanada dos Ministérios. Tinha o objetivo de evitar o enfrentamento corporal de manifestantes enraivecidos, já incapazes de encontrar o outro.

Ainda sem essa informação, passava distraída pelo lugar, quando me deparei com a parede. A parede fraturou a sensação de lonjuras, de deslimite, de possibilidades múltiplas. A parede fraturou minha relação com aquele lugar. Desde então, entendi que éramos gentes cindidas, e que talvez sequer tivéssemos uma ideia de como resolver esta cisão. Talvez muitas gentes prefiram mesmo continuar cindidas...

Quatro anos depois, nos encontramos em meio a uma guerra que vai muito além de fronteiras geopolíticas, e da qual depende nossa sobrevivência. Uma pandemia provocada por um vírus sobre o qual quase nada se sabe. E voltamos ao cenário político local, em que nos deparamos com uma política nacional construída a partir da cisão. Assim, em estado de guerra em razão da pandemia, precisamos nos salvar, mas nos encontramos num cenário com aprofundamento das fraturas visualizadas desde a construção daquela parede em plena Esplanada nos Ministérios.

Assustamo-nos diante da publicação de cada novo relatório do número de mortos. "No hay muerto que no me duela", cantarola Jorge Drexler, "No hay un bando ganador... No hay nada más que dolor, y otra vida que se vuela..." Superamos já todos os países em número de mortes diárias. Subimos ao podium. Nossas feições são de medo, desalento, desamparo. Recebo mensagens de amigos de outros países. Querem nos fortalecer. Querem dizer que vamos superar. Que somos fortes. E eu já não estou certa disso.

Então me deparo o segundo momento, também traduzido em imagem para compor a narrativa da fratura. O governo paraguaio fechou as fronteiras. Entre as duas cidades de onde eu venho, foi aberta uma vala, foram estendidos fios de arames farpados e colocados pneus nas passagens. Guardas armados garantem a preservação da integridade de seus cidadãos, evitando que brasileiros os contaminem com o novo vírus, tendo em conta, sobretudo, o modo caótico com que a questão tem sido tratado do lado de cá das fronteiras.

Vale notar que boa parte dos meus conterrâneos costumava buscar atendimento de saúde do lado paraguaio, dada a precariedade do atendimento público brasileiro, e o caráter mercantil das instituições médicas e hospitalares de natureza privada. Dentre os inumeráveis exemplos, estão os quantos brasileirinhos que foram trazidos à luz em hospitais paraguaios.

Eu não poderia imaginar, no pior dos pesadelos, ou na mais imaginativa distopia, uma cena assim traçada. Nela, já não me seria dado comprar coquitos do outro lado da rua.

Em tempo: a palavra diabo chegou ao português contemporâneo por via do latim diabolus, do grego clássico διάβολος ‎(diábolos), vocábulo constituído pelo prefixo διά ‎(diá) e por βάλλω ‎(bállō), «atirar». O referido prefixo exprime separação, divisão, pelo que diabo, literalmente, indica aquele que desune, que inspira ódio ou inveja. (informações buscadas em Ciberdúvidas da Língua Portuguesa)







terça-feira, 12 de maio de 2020

De pitahayas, mimos e afetos (para o Bruno, meu sempre querido Bruno)



Tempos estranhos, estes. Lembro-me de ter ido à universidade numa quinta-feira. Dei aulas a manhã toda, almocei, e à tarde encontrei com alguns orientandos, resolvi questões administrativas de rotina, preenchi relatórios. Acabei desmarcando um encontro agendado para a sexta-feira. Havia outro agendado para a segunda-feira seguinte, mas confirmaríamos durante o final da semana. Voltei para casa no final da tarde. E não retornei mais à universidade, há mais de 70 dias, mês de maio adentro. 

Tampouco saí da universidade: docentes, estudantes, técnicos e gestores, todos continuamos a trabalhar, desde nossas casas, pelas vias digitais. E já vamos ficando exaustos nesse exercício de compressão de todas as nossas atividades acadêmicas nas janelas dos aparatos tecnológicos das redes digitais de comunicação...

Saudades de encontrar as pessoas queridas pelos corredores, dos debates em sala de aula, dos abraços fraternos... Ah, os abraços!

Dia desses recebi uma mensagem por uma das redes digitais de relacionamento social: tem uma coisa para você na portaria do seu prédio. Seu Walmir, o porteiro, confirmou: um rapaz deixou uma coisa aqui para a senhora.

Coloquei a roupa e o calçado destinados para as breves saídas (cada vez mais raras), deixei o álcool próximo à porta para a desinfecção no retorno, coloquei a máscara de algodão duplo, e desci. Numa sacola, uma pitahaya rosa, enorme. Sorri. Pitahaya é a outra palavra com que, agora, posso nominar o gesto do abraço. Abraço grande, adocicado, que aquece o coração.

Demorei para decidir saboreá-la. Queria que a pitahaya permanecesse ali, no tempo. Afeto que fica.

Para quem ainda não experimentou seu sabor: pitahaya, ou pitaya, ou ainda pitaia, velha conhecida da cultura asteca, é o fruto de algumas espécies de cactos nativos da América Latina. A palavra pitahaya significa “fruta escamosa”, e pertence à língua taína, da família linguística macroarahuacana, que se estende desde a América do Sul, até o Caribe. Sua flor, branca e intensamente perfumada, abre-se apenas durante a noite. Por isso é chamada de rainha da noite.





sexta-feira, 8 de maio de 2020

Dos que habitam esta casa, e sobre um filhote de lagartixa, mais especificamente.




Em fala comum, recorrente, eu diria que sou dona desta casa. "A minha casa" é uma expressão que traduz bem esse sentimento de posse e pertencimento. Ela foi adquirida há pouco mais de 13 anos, desde quando eu a habito. Sou portanto, sua proprietária...

Quanto engano, o meu!

Uma miríade de vidas habita estes aposentos. Algumas passíveis de serem percebidas pela minha visão, quantas outras não! Podemos pensar sobre essas vidas por escalas. Comecemos pelas plantas, muitas das quais eu sou a responsável pelo plantio, mas várias outras vieram sem serem trazidas por mim. Embora, em escala de percepção imediata ao olhar eu possa dizer que são facilmente constatáveis, seu comportamento não, conquanto observem outras escalas temporais. Ou seja, seus movimentos, suas reações seus avanços e recuos não são facilmente observáveis na medida em que exijam outra noção de ciclos temporais. Estão ali, e eu as vejo. Só que não...

Já entre elas, miríades de pequenos seres coabitam, entre os galhos, as terras, os vasos, as flores: desde formigas e pequenos seres voejantes, até os micro-organismos inalcançáveis à minha visão. E eu nem saí da varanda...

Pela casa adentro, mais minúsculas formigas coabitam a casa, mesmo quando eu julgue tê-las extinguido. Pequenos besouros, borboletinhas, insetos de toda sorte, além de mais miríades de micro-organismos... tão ou mais proprietários destes territórios do que eu...

E as lagartixas domésticas constituem um caso à parte. Desde que aqui cheguei, já nem sei com quantas gerações delas terei compartilhado os aposentos, principalmente da sala e biblioteca. Vez ou outra, em períodos razoavelmente espaçados para a minha escala de tempo, deparo-me com uma delas, que foge, assustada. Em tempos de pandemia e distanciamento social, suponho que estejam incomodadas com nossa presença ininterrupta na casa. Perderam, em muito, a possibilidade de circular sem maiores riscos.

Sim, sempre há riscos... O convívio nem sempre é amigável, com consequências diversas, seja para as demais formas de vida, seja para as formas de vida da espécie humana...

Ainda ontem, entrei no sanitário, à noite. Quando acendi a luz, percebi o pequenino ser próximo à porta. Era um filhotinho de lagartixa. Como não fugia à minha presença, cheguei mais perto para observar. Eu esmagara seu rabo, e ela estava colada ao chão. Acho mesmo que não vou esquecer de seus olhos muito negros a saltar do pequeno corpo, fixos em mim. Exercitando, na medida do possível, alguma empatia, me imaginei em seu lugar, e pensei no pânico que estaria sentindo. Com cuidado, fui descolando do chão o rabo esmagado, enquanto a lagartixinha agitava as patinhas, tentando se desvencilhar de mim. Escapou, meio desequilibrada, saiu arrastando a cauda destruída. Parou entre a cesta de roupas e a parede. Ficou ali, paradinha, sem se mover. E eu parada a observá-la, querendo muito que ela sobrevivesse ao desastre provocado por mim.

Algum tempo depois, quando retornei para ver como estava a minha vítima, já não a encontrei. As lagartixas comportam-se assim: muitas vezes fazem-se de mortas, até passar o perigo. Depois fogem, para cuidar de si. Espero, sinceramente, que ela possa restaurar o rabo o mais prontamente! E possamos nos reencontrar em situações menos desastrosas, para ela e para mim...







sábado, 4 de abril de 2020

Afetos, abóbora e gratidão







O dia foi marcadamente mais angustiado do que tem sido até aqui. Acho que ter assistido ao filme O Poço, ontem, deixou meu pensamento com inquietudes extras. Some-se a isso a leitura de uma reportagem alertando para o fato de que São Paulo, Ceará, Rio de Janeiro, Amazonas e Distrito Federal estariam enveredando, a estas alturas, já para a segunda fase do processo de contaminação pelo covid 19, chamada de “aceleração descontrolada”, a mais agressiva. O Distrito Federal destoa ainda mais nesse cenário, apresentando o coeficiente de incidência mais alto, de 13,2 infectados para cada 100 mil habitantes, enquanto a média nacional é de 4,3 infectados para cada 100 habitantes.

Aceleração descontrolada... Em algum momento houve algum tipo de controle no expoente multiplicador do processo de contaminação por esse vírus? Em algum momento, governantes, autoridades sanitárias, empresários, responsáveis pela saúde pública, e mesmo as populações em geral tiveram algum controle sobre a aceleração desse avanço?

Pela manhã, confeccionei uma máscara para mim, com algodão duplo, com estampas de flores. Não importa se são portadoras de humor, se são graciosas, se posso combinar com os óculos ou a roupa, são as novas burcas, de uso obrigatório: devem ser usadas toda vez que formos à rua. 

No final da tarde, recebi a mensagem de uma amiga contando que uma conhecida sua, técnica de enfermagem, jovem com 38 anos, morrera em decorrência do vírus, ainda hoje pela manhã. Pensei na sua morte, nas mortes em decorrência do covid 19: mortes solitárias, sem afagos, sem alento. Funerais aligeirados, sem testemunhas...

Sem conseguir me desfazer de sustos e indagações, tentei dar curso a algumas atividades inadiáveis: relatórios, projetos, textos, cuidados com a casa, e me perdi no tempo, sem me aperceber.

Já passava das 20 horas, quando ouvi a campainha tocar. Fui tomada de sobressalto. Quem, em tempo de isolamento social, tocaria a campainha de casa num sábado à noite, sem se anunciar? Algum morador do prédio precisando de ajuda? Ouvi uma voz de mulher, chamando pelo meu nome. Reconheci a voz de uma vizinha muito querida. Abri a porta rapidamente, enquanto ela me dizia: Só uma palavrinha, mas de longe! Ela estava apoiada na parede oposta à da porta, olhos afetuosos, um sorriso que eu podia adivinhar por trás da máscara. No batente da porta, uma abóbora. “Trouxe da roça, acabei de chegar de lá! Está bem lavada, higienizada!”. Contou-me dela, contei-lhe de mim, em breves palavras trocadas, entre alegrias contidas. Perguntou se eu gostava de abóbora. Que sim, respondi, adoro! Disse-me que gosta de assar. Eu já pensava mesmo em assá-la com outros legumes. Sentia-lhe já o cheiro do assado.

Queria tê-la abraçado. Tentei fazê-lo com meu olhar. Recolhi a abóbora que terá sabor de afeto.







sábado, 21 de março de 2020

Triste



Queria construir explicações para o momento, como fazem tantos teóricos, como ensaiam pesquisadores... De nada serviriam. As explicações construídas sobre a experiência em curso não explicam, de fato: elas tentam dar algum alento, talvez apontem alguma salvação, talvez nos digam que não sobreviveremos, mas não foi por nossa culpa.

Elas não explicam, nem mostram saídas. Talvez porque não haja saídas...

As explicações tão somente reiteram nossas posições prévias, reafirmam nossos sistemas de crenças. As explicações, em lugar de nos ajudar a ver, aprofundam a dificuldade de perceber o que quer que seja um pouco além do que permite nossa miopia antropocêntrica...

Tenho medo. De que? Da morte? Difícil dizer que não seja da morte. Mas não estou certa de que seria. Talvez pareça arrogância de minha parte, mas olho no espelho e, no fundo dos meus olhos refletidos, não vislumbro que eu tenha medo da minha morte. Tenho, sim, medo da morte à minha volta, me rejeitando, e ceifando os demais. Tenho medo da dor, do desamparo, da desesperança. Tenho medo do odor fétido do ódio, da crueldade que rege as ações de governantes e demais lideranças políticas e econômicas.

Pela rua, um rapaz passa, em sua bicicleta. Vai desatento, pelos poucos carros que circulam. Há bem pouco tempo havia mais movimento, e muitas vozes se deslocavam animadas pelas calçadas. Um vento fresco atravessa a casa. Deixo-lhe janelas e portas abertas. Queria que arejasse esta tristeza...

Preciso fazer alguma coisa. E tudo à minha volta repete: sim, precisamos fazer, com urgência; e o que temos a fazer é exatamente não fazer...

O medo pede tão somente meu silêncio. Nenhum gesto a mais, qualquer um que seja.

No mais, estou triste. E é tudo.


Gwavira Gwayá
Planalto Central do Brasil,
Segundo dia do outono de 2020, sexto dia de reclusão continuada.






terça-feira, 17 de março de 2020

Isolamento social



Decisão voluntária, absolutamente necessária.
É hora de conferir, na prática, o significado de livre arbítrio.
E de responsabilidade social, quando uma decisão aparentemente desimportante afeta a vida dos outros.



sábado, 18 de janeiro de 2020

Savana, Sebastian e outras Saudades


  
Lá pela primeira metade da década de 1990, nós conhecemos um lugarzinho delicioso, onde podíamos tomar café e conversar. Conversar entre nós, com outras pessoas que estivessem por ali, e com o trio proprietário do café: Ana, Claudia e Marcelo. Era o Café Savana, localizado no canto de um bloco comercial da Asa Norte, em Brasília. Era pequenino, cabia apenas uma ou duas mesas no espaço interno, com outras mesas na área externa.

A certa altura, as meninas decidiram fazer voo próprio. Cada uma vendeu a sua parte para o Marcelo. Ele comprou a sala ao lado, e ampliou o espaço do café. Mais tarde, agregou outra sala na lateral oposta, formando um L. O Café Savana ganhou a cara do Marcelo, no decurso de mais de duas décadas. Aos poucos, ele foi acrescentando atividades: lançamento de livros, exposições, e outros eventos culturais que reuniam, sobretudo, os frequentadores do espaço. Dentre esses, nós.

Quando as meninas saíram da sociedade, abriram outro espaço numa quadra também na Asa Norte. Era o Sebastian Café. Elas próprias estavam no comando de todas as etapas da produção do espaço, que oferecia inclusive café da manhã nos finais de semana. Era mais intimista, numa loja voltada para o interior da quadra. Assim, não ficava exposto à intensa movimentação comercial. No mesmo bloco onde se instalaram, havia uma loja de discos de vinil e CDs, onde, eventualmente, eu encomendava músicas importadas. Naqueles tempos ainda era um pouco complicado comprar coisas importadas. A dificuldade dava um certo charme ao processo. Cada CD que chegava era uma conquista.

Frequentávamos os dois lugares. Eventualmente, Ana e Cláudia iam ao Savana tomar um café. Ganhamos um adesivo do Sebastian, que colei na lateral da minha geladeira.

No comecinho da segunda metade da década de 1990, Ana e Cláudia fecharam o Sebastian, para atuar em outras frentes profissionais. Na verdade, passaram a trabalhar em campanhas para eleições, na área da publicidade. No Café Savana, Antony, que trabalhava com Marcelo, nos dava notícias delas, quando passava algum tempo sem que as pudéssemos ver. Mas o tempo tem seus rigores.

À medida que avança, vai desfazendo pequenas fibras de conexão. Antony saiu do Café Savana, para trabalhar numa universidade. Marcelo passou a nos falar delas, cada vez menos. E nós também não mais as vimos. Até porque, tendo mudado de cidade de residência, passamos também a frequentar menos o Savana.

Mesmo assim, toda vez que estávamos em Brasília, um dos lugares obrigatórios de estar era o Café. Para dar um abraço no Marcelo, para conversar com sua equipe, para comer um quiche, o melhor filé grelhado que eu já experimentei, ou uma salada de legumes. Tudo tão saboroso quanto estar ali, naquele lugar que exalava uma atmosfera de pluralidade, elegância, charme, bom humor.

No início deste ano, voltamos ao Savana. Estava fechado. Lembrei-me, então, que o Marcelo costumava dar um recesso coletivo no início do ano. Alguns dias depois, voltamos. Fomos informados que o Marcelo vendeu o ponto. No mercado, um café, uma loja, é apenas um ponto comercial, que se vende, que se passa à frente. E isso é tudo.

Alguns funcionários foram mantidos pelo novo proprietário. Estão preocupados. Ouviram a promessa de que cerca de 70% do cardápio será mantido. Isso para preservar a clientela acostumada ao lugar há mais de duas décadas. As mudanças devem ser promovidas aos poucos, como boas novidades, até que o novo proprietário coloque o lugar ao seu jeito.

Marcelo decidiu assumir o papel de professor, e foi atuar na área de Educação de Jovens e Adultos. Surpreendente. Não suspeitava desses desejos do Marcelo. Mas talvez esteja aí uma das explicações para as afinidades estabelecidas por tantos anos.

A propósito da referência aos tantos anos, o adesivo do Sebastian está ali, na lateral da minha geladeira que já marca mais de três décadas comigo (por quanto tempo ainda resfriará nossos alimentos e sucos?). Risão, de braços abertos, parece imerso entre anotações de telefones que também de tão antigos já não funcionam mais. Sebastian aviva percursos da vida que, de singelos que são, ancoram os sentidos mais fundos.

Que sejam bons os caminhos trilhados por Ana, Cláudia, Antony, Marcelo. E também pelo novo proprietário do Café.

Em tempo1: no dia quando soubemos da venda do Café Savana, encontramos o Capeta, andando de bicicleta pela cidade. Ele nos acenou e gritou: Está fechando tudo! Durante décadas, o Capeta integrou o grupo de proprietários do Café Martinica, fechado no início de 2019.

Em tempo2: A loja de discos de vinil e CDs importados, que era vizinha ao Sebastian, também fechou há um bom tempo. Também, já não fazia sentido, mesmo: agora, importamos tudo pela internet...

Em tempo3: quando somos mais jovens, temos muitos projetos a executar, a vida inteira para conquistar. Nosso olhar vislumbra o que há de vir. Envelhecer também é passar a ter cada vez mais histórias para contar. Do já vivido. Até chegarmos à etapa quando começamos a nos esquecer...

Café Savana
 imagem buscada aqui









segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Coisas do homem da cobra



Noutro dia, ouvi a expressão “fala mais que o homem da cobra”, e fiquei me perguntando se as pessoas, hoje, sabem a que se refere. Há muito tempo não vejo nenhum homem da cobra, acho mesmo que já não existem mais esses profissionais da cultura popular, em atuação nos meios urbanos.

Tratava-se de um homem que, instalado em praça pública, portava uma mala e outras tranqueiras. Falando alto, e muito, sem parar, anunciava que tinha uma cobra na mala. Normalmente contava muitas potocas a respeito da tal cobra: seria venenosa, mas no caso daquela especificamente não ofereceria perigo, pois ele a teria adestrado, e dominava completamente seus humores, mas isso era coisa que só ele conseguia, e que logo ele mostraria ao público. Dizia para que não tivessem medo, que estava tudo sob controle. Enquanto ele falava, as pessoas se aglomeravam em torno dele formando um círculo, curiosas para saber mais sobre a tal cobra guardada na mala. Mas ele adiava por tempo indeterminado esse momento, prendendo a atenção do público, e aproveitando para vender coisas outras: desde descascadores de frutas até remédios com múltiplas funções, capazes de curar, numa só tomada, unha encravada, tumor no cérebro e os males da menopausa. Sim, já existiram desses remédios milagrosos que provavelmente tenham sido extintos por intrigas da indústria farmacêutica.

Assim, o homem da cobra passava uma, duas horas, boa parte da manhã ou da tarde, segurando o público em plena praça, vendendo suas tranqueiras, com a promessa de mostrar a cobra, guardada na mala. Muita gente se achegava e logo ia embora, por falta de tempo, ou porque sabia que o desfecho se demoraria. Afinal, se tratava do homem da cobra! Mas outros, ficavam por ali, acompanhando toda a movimentação. E muitos compravam um ou mais itens de sua venda.

Já esgotada a argumentação, ele abria a mala, e retirava dali uma cobra (que existia, de fato). Mexia com ela, e a enrolava no pescoço. Eventualmente dava pequenos sustos da audiência, avançando com cobra e tudo em direção às pessoas. Provavelmente a cobra tivesse arrancadas as prezas, não oferecendo, de fato, nenhum perigo. Com certeza, o IBAMA perseguia o evento, tendo em vista a inquestionável situação de maltrato à qual o animal era submetido. Essa deve ser uma das razões pelas quais não se vejam mais esses performers da cultura popular atuando.

Mas ficou a expressão: falar mais que o homem da cobra. Vai conversar fiado assim lá no raio que o parta!





sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Sobre meus desentendimentos com Madame História com Agá Maiúsculo e outras socialáites...


Sempre gostei de ouvir histórias. E de contá-las. Desde muito cedo devorei livros: romances de José de Alencar, gibis, histórias sem fim de Malba Tahan, enciclopédias com verbetes que davam conta da história dita universal, revistas, fotonovelas... havia tanto a saber e a imaginar sobre o mundo!

Quando comecei a estudar numa escola regular, me encantava a possibilidade de saber ainda mais coisas. Então a professora pediu que escrevêssemos um trabalho sobre a vida de Tiradentes. Eu li as informações no livro. Ouvi, nalguns programas de rádio, histórias sobre ele, e deixei minha imaginação trilhar caminhos possíveis pelos quais o herói pudesse ter também transitado. Foi assim que, com dez anos, escrevi umas quantas páginas de caderno, contando uma história possível sobre Tiradentes: dados biográficos corretamente buscados no livro didático, o restante da vida, e mais interessante, recheei com visitas à namorada, passeios em praças, e quitutes de feiras tão típicas dos territórios mineiros.

Enquanto meus colegas tinham apenas copiado os dados que constavam no livro, preenchendo no máximo meia página, eu escrevera várias páginas de uma história que todos queriam ler. Eu estava feliz. Mas logo descobri que não deveria: a professora não só não gostou do que eu fizera, como deu-me uma bronca pública, diante de toda a turma. Aprendi, ali, que não poderia sair uma linha sequer das informações que constavam do livro didático de história adotado pela escola. Um texto chato, informações que não tinham qualquer relação com a minha vida. Descobri, muito cedo, que Madame História com Agá Maiúsculo era muito chata. E passei a cumprir o mínimo necessário para passar de ano, dali até concluir o ensino médio.

Na universidade, tive aulas de história da arte. Também eram muito chatas. Numa sala escura, com as paredes pintadas de preto, a professora, com voz monocórdica, ia passando slides de obras de arte dos diversos períodos históricos europeus, e ia descrevendo cada slide: este pavão significa... esta cor azul representa... a composição assimétrica... o contraste de luz... Era difícil manter a concentração. Muitos dos meus colegas dormiam tanto que eventualmente até roncavam. Eu não conseguia dormir. Mas achava que aquelas aulas não precisavam ser tão distantes da nossa vida, daquilo que era palpável para nós.  Mas também fui sendo aprovada, porquanto respondesse o necessário para tanto.

Foi no mestrado que voltei a me bater de frente com Madame História com Agá Maiúsculo. Dessa vez, de modo mais contundente e arriscado. Minha dissertação tratou do uso de desenhos reproduzidos nos processos de alfabetização. A pesquisa foi longa e complexa, envolvendo quase um ano de acompanhamento quase diário de uma turma de alfabetização numa escola pública da periferia da cidade, entrevistas nas escolas de formação das professoras dessa turma, e pesquisa sobre a história da educação, com recorte nas relações entre imagens e aprendizagens, particularmente nos processos de letramento. Então, havia um capítulo em que eu fazia alguns recortes desse uso de imagens nos projetos educativos, desde a Grécia antiga até aquele final do século XX, dando alguns saltos pela Idade Média, nas guildas, passando por algumas abordagens propostas por Comenius do século XVII, e chegando ao contexto brasileiro, num trânsito entre questões relativas ao ensino de arte e formação de professores para o início de escolarização.

Durante a defesa da dissertação, uma professora que integrava a banca examinadora (e era rival da minha orientadora, coisa que só fui descobrir depois) questionou minha suposta “abordagem histórica”, dizendo que eu tinha feito uma bagunça do ponto de vista das categorias adotadas bem como da orientação epistemológica. Os saltos em diversos períodos temporais e em diversos contextos pareceu-lhe uma heresia. E, para sustentar seus argumentos, ela evocou o fato de ter sido aluna de Demerval Saviani. Estaria, portanto, autorizada a fazer tais críticas: esse era o pressuposto.

Eu sabia que, em parte, ela tinha razão. Mas minha dissertação não tinha abordagem histórica. Naquele capítulo, eu tão somente tinha buscado algumas referências, fragmentos, para identificar as bases do ideário para uma orientação pedagógica que eu observara em sala de aula. Parece que eu não me entendia, mesmo, com Madame História com Agá Maiúsculo. Minha irritação ficou maior quando, em lugar de argumentar, a professora evocou a chancela de Demerval Saviani, para me questionar. Ora, se ela era discípula dele, eu também tinha lá minhas mestras e, em minha resposta, decidi evoca-las também. Então, iniciei dizendo que, infelizmente eu não tivera o privilégio de ser aluna de Demerval Saviani, mas tinha aprendido a contar histórias com as bordadeiras e as tecedeiras, que misturam os fios, as texturas, que trabalham com diagonais, transversais, além da urdidura, que brincam com as tramas para criar tessituras diversas. Aquele capítulo fora escrito dessa maneira, esclareci.

Meu erro foi me sentir vitoriosa no embate pelo fato de ter sido aplaudida em cena aberta. Eu não estava atuando numa peça de teatro, embora o ritual de passagem também tenha seus componentes de espetáculo. O aplauso em cena aberta sangrou o orgulho da pedagoga que se pretendia historiadora. Na reunião fechada, ela resistiu bravamente no propósito de me reprovar. O que estava em jogo não era exatamente minha resposta, mas o fato de que minha postura poderia servir como exemplo para os demais pós-graduandos. E isso seria inadmissível. Mas fui defendida por duas outras mulheres também fortes, que não deixaram vingar o projeto de reprovação.

Enquanto isso, eu, que não supunha o que pudesse estar se passando na reunião fechada, celebrava em festa com colegas e amigos, enquanto esperava o resultado final. Mal poderia imaginar que Madame História com Agá Maiúsculo tramava contra mim, naquele instante.

Anos mais tarde, fui salva por Vilém Flusser, o filósofo que, para os demais filósofos é considerado um bom poeta, e que, em suas discussões problematiza a própria noção de história, provocando a ira de historiadores também. Com ele, aprendi duas coisas fundamentais: Madame História com Agá Maiúsculo produz uma narrativa que exclui mais de 95% da humanidade. Sua narrativa é limitada, e opera com alguns parâmetros que interessa a contextos muito específicos. Madame História com Agá Maiúsculo tem seus méritos, que devem ser respeitados. Mas não tem a palavra final sobre as sagas da humanidade, muito menos sobre as sagas da vida neste planeta. A natureza “universal” de sua narrativa está restrita a uma faixa territorial estreita, e a um modo de pensar o mundo muito específico. Não é, portanto, universal.

Mais recentemente, assistindo ao filme “God exists, her name is Petrunya” (direção: Teona Strugar Mitevska, 2019), que no Brasil foi chamado “Deus é mulher e seu nome é Petúnia”, essas questões foram reavivadas em minha memória. As histórias que são contadas, com assinatura masculina, precisam ser confrontadas. Não negadas, nem apagadas, mas questionadas. Respeito muito historiadores e suas investigações. Madame História com Agá Maiúsculo tem todo meu respeito, mesmo considerando que, embora substantivo feminino, seja concebida a partir de pontos de vista majoritariamente masculinos... (e só essa questão já dá muito o que pensar!). Ressalto, contudo, que sua narrativa não é exclusiva. Há tantas outras tão legítimas quanto, mesmo quando divergentes das suas. Tão potentes até mesmo porque divergentes!

Respiro com alívio e alguma alegria. Pressinto que, mesmo intuitivamente, desde o princípio venho estabelecendo uma relação crítica e necessária em relação aos discursos dogmáticos relativos a essa senhora. E a outras senhoras da High Society também, tais como Madame Arte com A Maiúsculo, Madame Filosofia com Éfe Maiúsculo, e todas as demais socialáites da cultura, das ciências e do mundo do conhecimento.

Que essa brisa nunca me deixe!