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Já no ônibus, de Querétaro para a Cidade do México, em
2015, conversei um pouco com meu marido, por videochamada. Uma senhorinha
idosa, sentada ao meu lado, também conversava ao telefone com um filho que aguardava
sua chegada à capital mexicana. Ouvi quando ela lhe contou estar sentada ao
lado de uma estrangeira. E explicou não saber a origem, pois não entendia nada
do que “a estrangeira estava falando”. Diverti-me com sua observação. Algum tempo
depois, fiz-lhe alguma pergunta em espanhol, para seu espanto. Então iniciamos
uma conversa animada que se estendeu por toda a viagem. No desembarque, ela
decidiu que o filho me levaria até o hotel onde eu tinha reserva. Relutei, sinceramente.
Mas ela foi irredutível. Então embarcamos no carro: ela e o filho à frente, eu
e a namorada do filho no banco de trás. Passamos, primeiro, na casa do filho, quando
fui informada que no restante do percurso eu seria conduzida pela namorada do
filho. Maria era seu nome. Uma artista visual. Ela foi gentil, graciosa. Levou-me
ao seu bairro, mostrou-me onde vivia. Depois foi até o hotel, dando-me orientações
sobre cuidados que eu deveria ter na região, acessos a diversos pontos da
cidade, etc. Já no hotel, ela comentou sobre minhas botas, dizendo que gostara
delas. Eram umas botas de cano baixo, muito confortáveis, com as quais fiz boa
parte das minhas viagens durante muito tempo, até que elas se desfizeram. Perguntei-lhe
o número que calçava, trocamos endereços eletrônicos, e nos despedimos.
Já no Brasil, voltei à loja onde comprara as minhas botas,
e encontrei um par no número que Maria calçava. Fiquei feliz. Ela me informou
seu endereço residencial e, algum tempo depois, recebeu o pacote com o presente.
Não se demorou para que eu recebesse uma foto sua, calçada com o par de botas. Trocamos
notícias muito eventualmente. Por ocasião dos terremotos, soube que havia se
separado do filho da senhorinha minha companheira de viagem. E mais: mãe e
filho teriam voltado definitivamente para Querétaro, de modo que estariam a
salvo dos tremores.
Presentes são assim: mais que o objeto, ou a ação em si, o
valor de um presente está em todas as circunstâncias que o envolvem. Importa o
momento quando emerge o desejo de presentear. Depois, a decisão sobre com o que
e como presentear. Trata-se, afinal, de um projeto ao qual presenteadores se
dedicam, empenhando tempo, afetos, habilidades, expectativas. A execução propriamente
dita está no ato de fazer com que a pessoa presenteada receba o mimo. Esse momento
pode ser considerado o ápice, mas não é a finalização, conquanto as
reverberações se façam sentir nos desdobramentos.
Afinal, presentear é se fazer presente, firmar presença no
aqui agora em relação à pessoa presenteada, à pessoa diante de quem alguém se
faz presente. E isso se refere não ao estabelecimento de vínculos, mas ao modo
como se tratam os vínculos estabelecidos, reafirmando-os, atribuindo-lhes
qualidade. Em Ensaio sobre a dádiva (1974), Mauss argumenta que, em
muitas sociedades consideradas arcaicas, os vínculos comunitários são
alimentados pelas dinâmicas que envolvem dar, receber, e retribuir, a que o
antropólogo atribuiu o sentido da dádiva. E a dádiva produz alianças. Tomados num
sentido mais amplo, os processos de dar, receber e retribuir podem ser observados
em todas as instâncias do viver social, e envolvem desde favores, objetos,
trabalhos, contratos, compadrios, conhecimento, até presentes. E, mais uma vez,
os presentes envolvem objetos, mas também ações, disponibilidades, presenças de
diversas naturezas.
Presenças. Há pessoas cuja presença é presente em nossas
vidas...
É necessário frisar, contudo, nos princípios da dádiva e
das alianças, a ênfase dada, além da premissa de dar, também a disponibilidade para
receber, bem como a responsabilidade em retribuir, uma vez recebida a dádiva. Ou
seja, quem recebe deve retribuir. Não necessariamente para quem lhe propiciou a
dádiva, podendo ser, a retribuição oferecida a outrem.
Não cometamos ingenuidades: há relações de poder
organizadas em torno a tais dinâmicas. As próprias relações comerciais podem
ser pensadas nesses termos. No entanto, antes disso, prefiro pensar o ato de
presentear em sua dimensão poética. Há uma trama de poiesis e aesthesis
no ato de conceber um presente, executá-lo, dá-lo, recebê-lo, vivenciá-lo. Um gesto,
uma sonoridade, uma palavra, uma lembrança, uma imagem, uma embalagem...
Uma abóbora madura cuidadosamente depositada no batente da
porta para me surpreender no momento quando eu chegasse à casa. Um bolo de jatobá
acompanhado das cascas das frutas de onde foi tirada a farinha. Um bolo de
maçãs feito numa forma com desenho de mandala. Uma mandala feita com furos de agulha em papel canson. Um bolo de abacaxi.
Um bolo de jabuticaba. Uma máscara. Um retrato encravado na madeira, para uma
xilogravura. Um chá perfumado. Uma música. Um almoço. Uma traquinagem. Uma gargalhada no meio da tarde. A solução para um problema. Um silêncio
acolhedor. Uma oitiva. Uma fotografia. Orquídea florida. Azaleia cor-de-rosa. Um
livro. Pães. Folhas de ora-pro-nóbis. Torrões de chá. Um LP do Tom Waits. Um espetáculo. Um
pedaço de madeira. Um olhar que sorri. Uma caveirinha que ri escandalosamente. Um
bordado...
Presentes se comunicam por meio da visão, do gesto, do
perfume, do sabor, da textura, da memória, das luzes, dos afetos, das
temporalidades... da respiração...
Depois de uma semana tensa, um final de semana angustiado,
eu estava ansiosa, o peito apertado. Atrapalhei-me à saída, rumo à casa de
minha irmã e minha mãe. Acabei me esquecendo de muitos itens importantes da
bagagem: smartphone, carregadores de baterias, encomendas, livros que deveriam
ser lidos. Esqueci-me de passar na portaria do edifício para me despedir dos
funcionários, e receber um presente que me aguardava...
Três dias se passaram até que os itens esquecidos chegassem
ás minhas mãos. Dentre eles, um bordado diante do qual fui tomada de espanto. Espanto
é condição de aesthesis. Espanto é o que nos toma quando nos deparamos
com o não sabido, com o imprevisível, com aquilo que está fora do esperado. Com
o que toca os nossos sentidos, modificando os modos como nos percebemos no mundo.
A experiência estética, que decorre do espanto, é condição de abertura ao não
sabido, e à produção de conhecimento. Do saber, palavra que partilha sua raiz
com a palavra sabor.
Escolho não ter pressa diante do espanto, diante da experiência
estética que me move. Sobretudo quando esse espanto resulta de uma dádiva, um
presente. Não posso atropelar os meus sentidos, tentando prematuramente decifrar
ou fixar a experiência.
O bordado, feito à mão, com linha muito fina, agulha tão
fina quanto, delineou no tecido o meu retrato. Para degustá-lo, eu deveria
demorar, pelo menos, o mesmo tempo que ele demorou para ser feito.
Retrocedo no tempo e me recordo da manhã (ou teria sido uma
tarde?) quando fiquei a brincar diante da câmera montada pela Cátia, tendo como
pano de fundo a brise amarela que cobre as janelas da faculdade. Rimos, fiz
caretas, imaginei intenções. Uma das fotos, um misto de deboche com dúvida e
riso, foi adotada como assinatura para várias comunicações. No bastidor que se
encontrava em minhas mãos, ela ganhou as marcas do bordado. Minha imagem
bordada vem guardada por folhas e flores de espada de São Jorge, entre outras
vegetações. Quase sinto-lhes o perfume.
Recebo o presente, que é uma dádiva. Recebo e o integro ao
que sou. Sem dizer muito obrigada, me comprometo a retribuir. Talvez não o faça
na forma de bordado. Mas nalguma forma outra de experiência estética, de aesthesis
atrelada à poiesis. Nalguma forma de estar presente, e alimentar
vínculos, e inventar sentidos ao viver-estar-no-mundo, em comunidade.
MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas
sociedades arcaicas. In : MAUSS,
M. Sociologia e Antropologia. v.
II. São Paulo: Edusp. 1974.