sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dar presentes como experiência poética


 

Para Jossier, Julia, Marcelo, Alice, Maitê, Renato, Lorena, Martin, Etel, Leda, Maria, Meyre, Néia, Bruno, Ita, Vandimar, Nara, Rafael, Mariana, Alzira, Carla, Adriane, Juan, Bráulio, César, Jota, Ruth, Luciano, Laís, Rosângela, Mara, Paulo, Paul, Lara, José, Muniz, Juliana, Diná, Hugo, Neila, Seu Osorinho, Iana, Carol, Cátia, Lutiere, Zaldo, Emile, Alda, Luciana, Vanessa, Rita, Bárbara, Matheus, Diego, Seu Zagati, Diana, Rúben, Fernando, Gonzalo, Adriana, Norberto, Vagna, Márcio, Iria, Yunna, Helô, Anaí, Talita, Aline...

 

Já no ônibus, de Querétaro para a Cidade do México, em 2015, conversei um pouco com meu marido, por videochamada. Uma senhorinha idosa, sentada ao meu lado, também conversava ao telefone com um filho que aguardava sua chegada à capital mexicana. Ouvi quando ela lhe contou estar sentada ao lado de uma estrangeira. E explicou não saber a origem, pois não entendia nada do que “a estrangeira estava falando”. Diverti-me com sua observação. Algum tempo depois, fiz-lhe alguma pergunta em espanhol, para seu espanto. Então iniciamos uma conversa animada que se estendeu por toda a viagem. No desembarque, ela decidiu que o filho me levaria até o hotel onde eu tinha reserva. Relutei, sinceramente. Mas ela foi irredutível. Então embarcamos no carro: ela e o filho à frente, eu e a namorada do filho no banco de trás. Passamos, primeiro, na casa do filho, quando fui informada que no restante do percurso eu seria conduzida pela namorada do filho. Maria era seu nome. Uma artista visual. Ela foi gentil, graciosa. Levou-me ao seu bairro, mostrou-me onde vivia. Depois foi até o hotel, dando-me orientações sobre cuidados que eu deveria ter na região, acessos a diversos pontos da cidade, etc. Já no hotel, ela comentou sobre minhas botas, dizendo que gostara delas. Eram umas botas de cano baixo, muito confortáveis, com as quais fiz boa parte das minhas viagens durante muito tempo, até que elas se desfizeram. Perguntei-lhe o número que calçava, trocamos endereços eletrônicos, e nos despedimos.

Já no Brasil, voltei à loja onde comprara as minhas botas, e encontrei um par no número que Maria calçava. Fiquei feliz. Ela me informou seu endereço residencial e, algum tempo depois, recebeu o pacote com o presente. Não se demorou para que eu recebesse uma foto sua, calçada com o par de botas. Trocamos notícias muito eventualmente. Por ocasião dos terremotos, soube que havia se separado do filho da senhorinha minha companheira de viagem. E mais: mãe e filho teriam voltado definitivamente para Querétaro, de modo que estariam a salvo dos tremores.

Presentes são assim: mais que o objeto, ou a ação em si, o valor de um presente está em todas as circunstâncias que o envolvem. Importa o momento quando emerge o desejo de presentear. Depois, a decisão sobre com o que e como presentear. Trata-se, afinal, de um projeto ao qual presenteadores se dedicam, empenhando tempo, afetos, habilidades, expectativas. A execução propriamente dita está no ato de fazer com que a pessoa presenteada receba o mimo. Esse momento pode ser considerado o ápice, mas não é a finalização, conquanto as reverberações se façam sentir nos desdobramentos.

Afinal, presentear é se fazer presente, firmar presença no aqui agora em relação à pessoa presenteada, à pessoa diante de quem alguém se faz presente. E isso se refere não ao estabelecimento de vínculos, mas ao modo como se tratam os vínculos estabelecidos, reafirmando-os, atribuindo-lhes qualidade. Em Ensaio sobre a dádiva (1974), Mauss argumenta que, em muitas sociedades consideradas arcaicas, os vínculos comunitários são alimentados pelas dinâmicas que envolvem dar, receber, e retribuir, a que o antropólogo atribuiu o sentido da dádiva. E a dádiva produz alianças. Tomados num sentido mais amplo, os processos de dar, receber e retribuir podem ser observados em todas as instâncias do viver social, e envolvem desde favores, objetos, trabalhos, contratos, compadrios, conhecimento, até presentes. E, mais uma vez, os presentes envolvem objetos, mas também ações, disponibilidades, presenças de diversas naturezas.

Presenças. Há pessoas cuja presença é presente em nossas vidas...

É necessário frisar, contudo, nos princípios da dádiva e das alianças, a ênfase dada, além da premissa de dar, também a disponibilidade para receber, bem como a responsabilidade em retribuir, uma vez recebida a dádiva. Ou seja, quem recebe deve retribuir. Não necessariamente para quem lhe propiciou a dádiva, podendo ser, a retribuição oferecida a outrem.

Não cometamos ingenuidades: há relações de poder organizadas em torno a tais dinâmicas. As próprias relações comerciais podem ser pensadas nesses termos. No entanto, antes disso, prefiro pensar o ato de presentear em sua dimensão poética. Há uma trama de poiesis e aesthesis no ato de conceber um presente, executá-lo, dá-lo, recebê-lo, vivenciá-lo. Um gesto, uma sonoridade, uma palavra, uma lembrança, uma imagem, uma embalagem...

Uma abóbora madura cuidadosamente depositada no batente da porta para me surpreender no momento quando eu chegasse à casa. Um bolo de jatobá acompanhado das cascas das frutas de onde foi tirada a farinha. Um bolo de maçãs feito numa forma com desenho de mandala. Uma mandala feita com furos de agulha em papel canson. Um bolo de abacaxi. Um bolo de jabuticaba. Uma máscara. Um retrato encravado na madeira, para uma xilogravura. Um chá perfumado. Uma música. Um almoço. Uma traquinagem. Uma gargalhada no meio da tarde. A solução para um problema. Um silêncio acolhedor. Uma oitiva. Uma fotografia. Orquídea florida. Azaleia cor-de-rosa. Um livro. Pães. Folhas de ora-pro-nóbis. Torrões de chá. Um LP do Tom Waits. Um espetáculo. Um pedaço de madeira. Um olhar que sorri. Uma caveirinha que ri escandalosamente. Um bordado...

Presentes se comunicam por meio da visão, do gesto, do perfume, do sabor, da textura, da memória, das luzes, dos afetos, das temporalidades... da respiração...

Depois de uma semana tensa, um final de semana angustiado, eu estava ansiosa, o peito apertado. Atrapalhei-me à saída, rumo à casa de minha irmã e minha mãe. Acabei me esquecendo de muitos itens importantes da bagagem: smartphone, carregadores de baterias, encomendas, livros que deveriam ser lidos. Esqueci-me de passar na portaria do edifício para me despedir dos funcionários, e receber um presente que me aguardava...

Três dias se passaram até que os itens esquecidos chegassem ás minhas mãos. Dentre eles, um bordado diante do qual fui tomada de espanto. Espanto é condição de aesthesis. Espanto é o que nos toma quando nos deparamos com o não sabido, com o imprevisível, com aquilo que está fora do esperado. Com o que toca os nossos sentidos, modificando os modos como nos percebemos no mundo. A experiência estética, que decorre do espanto, é condição de abertura ao não sabido, e à produção de conhecimento. Do saber, palavra que partilha sua raiz com a palavra sabor.

Escolho não ter pressa diante do espanto, diante da experiência estética que me move. Sobretudo quando esse espanto resulta de uma dádiva, um presente. Não posso atropelar os meus sentidos, tentando prematuramente decifrar ou fixar a experiência.

O bordado, feito à mão, com linha muito fina, agulha tão fina quanto, delineou no tecido o meu retrato. Para degustá-lo, eu deveria demorar, pelo menos, o mesmo tempo que ele demorou para ser feito.

Retrocedo no tempo e me recordo da manhã (ou teria sido uma tarde?) quando fiquei a brincar diante da câmera montada pela Cátia, tendo como pano de fundo a brise amarela que cobre as janelas da faculdade. Rimos, fiz caretas, imaginei intenções. Uma das fotos, um misto de deboche com dúvida e riso, foi adotada como assinatura para várias comunicações. No bastidor que se encontrava em minhas mãos, ela ganhou as marcas do bordado. Minha imagem bordada vem guardada por folhas e flores de espada de São Jorge, entre outras vegetações. Quase sinto-lhes o perfume.

Recebo o presente, que é uma dádiva. Recebo e o integro ao que sou. Sem dizer muito obrigada, me comprometo a retribuir. Talvez não o faça na forma de bordado. Mas nalguma forma outra de experiência estética, de aesthesis atrelada à poiesis. Nalguma forma de estar presente, e alimentar vínculos, e inventar sentidos ao viver-estar-no-mundo, em comunidade.

 

 

 

 

MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In : MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. v. II. São Paulo: Edusp. 1974.

3 comentários:

  1. Em 2015, eu tava andando pelo DF mexicano também. Seria um presentão encontrar vocês nesse ônibus! Que texto belíssimo! Só de imaginar o sorriso de quem recebe o presente já me sinto feliz. Penso muito que presentear é um presente pra quem dá mesmo quando sabe que oferece mais do que se poderia receber.

    ResponderExcluir
  2. Degustando essas palavras como um presente. Um espanto bom em um domingo que carecia de alguma poesia a mais <3

    ResponderExcluir