quinta-feira, 30 de março de 2023

Um inocente quilo de café

 

Dia de feira, fui até a barraca do seu Aloísio comprar o melhor pó de café que já conheci, moído na hora, com um aroma delicioso. Como faço sempre, cheguei por volta de quinze para as onze, um pouco antes de a feira fechar. Desta vez ele já não tinha nem meio quilo de café disponível. Professora, antes das dez eu já tinha vendido tudo, me falou, entre contente e sem graça por não ter o café para mim. Eu fico é muito alegre, pelo senhor, concluí. Coisa boa ter vendido tudo, não é? Eu é que fiquei só na vontade... rimos.

 

Então ele resolveu propor uma solução: Eu posso levar para a senhora em sua casa; onde a senhora mora? Aqui mesmo nesta rua, seu Aloísio, ali naquele prédio, mostrei a ele. Ele olhou, identificando o lugar como familiar: Ah, é o mesmo prédio do seu Bretas... Eu tenho um vizinho chamado Bretas, só não sei se é o mesmo que o senhor conhece, comentei. Ele é casado com a dona Nair? Acho que sim, me respondeu. Eu continuei tentando identificar o vizinho: Ele teve covid, ficou bem fraquinho depois... Aí seu Aloísio me corrigiu: Na verdade ele ficou bem ruinzinho depois que foi sequestrado, no ano passado; ele teve covid, depois sofreu o sequestro; isso é que acabou com ele. Eu levei um susto. Sequestrado? Como eu não soube disso? Fiquei impressionada com a informação e com o fato de eu não saber, sendo vizinha dele.

 

Combinamos, então, o dia e a hora que seu Aloísio entregaria o café lá em casa, já deixei pago, e voltei, pela calçada, encafifada com a notícia do sequestro. Na portaria, encontrei seu Francisco, aproveitei para conferir a informação. Seu Francisco foi solícito, explicando-me o ocorrido com muito cuidado e respeito à situação do seu Bretas e família: É que, depois que teve covid, ele ficou com uma alteração muito grande de comportamento... ficou agressivo, tinhas umas reações muito estranhas, às vezes ameaçadoras, com qualquer pessoa, a qualquer momento; então a filha, preocupada, resolveu internar num hospital psiquiátrico, onde ele ficou por mais de mês, em tratamento; quando teve alta, ele saiu contando que foi sequestrado, que foi torturado no lugar onde ficou preso... e quando as pessoas não conhecem ele, nem o que aconteceu, acreditam nessa história... é o que ele conta para todo mundo.

 

Eu, que já estava impressionada com a história do sequestro, fiquei ainda mais tocada com o desdobramento dos fatos, da internação no hospital psiquiátrico e da história criada por ele. Eu sabia que ele fora internado por longo período, por duas vezes, em razão da covid, mas não tinha noção da extensão do quadro.

 

Chegando em casa, contei o ocorrido para Ana, que trabalha comigo e conhece bem a família do seu Bretas e dona Nair. Ela ouviu com atenção e também ficou impressionada. Mas, um pouco depois, matutando sobre o relatado, chegou a uma outra possibilidade: Sabe que é capaz de a própria filha ter dito a ele que ele foi sequestrado e depois resgatado pela família, para ele não saber que estava num hospital psiquiátrico? Considerando o modo como a filha lida com os pais, é bem possível que ela tenha inventado essa história para ele, e a dona Nair tenha ajudado; pois eles são assim, inventam histórias para não ter que lidar com os fatos como são... as coisas acontecem, depois elas contam outra coisa que não é o que aconteceu...

 

Essa história toda já envolveu mais ação e suspense do que muitos filmes a que tenho assistido por aí. Por hoje, deu. Eu só queria um inocente e saboroso quilo de café moído na hora, da banca de seu Aloísio... e, por esse, terei de esperar até amanhã...

 


(Em tempo: os nomes das pessoas citadas foram inventados).

 

domingo, 26 de março de 2023

Razões para chorar numa colação de grau

 


Quando concluí minha primeira graduação, numa instituição pública, ainda em pleno regime militar, não participei da colação de grau. Não tinha motivações para tanto. O reitor era capitão de mar e de guerra, oficial da marinha. Minha geração na universidade tinha mantido o embate com ele em greves duradouras, a despeito das ameaças, e da presença policial no campus. Por isso, preferi viajar dentro da programação do Projeto Rondon. Quando retornei, segui direto para minha cidade natal. Mas desta vez, concluindo minha segunda graduação, quatro décadas depois, decidi que participaria da cerimônia, mesmo se tratando de mera formalidade, porquanto o diploma não tenha mais versão impressa, sendo apenas um arquivo digital.

Queria vestir a beca e colocar o capelo, sentar-me entre colegas concluintes, perceber, como participante, o ritual. Confirmei, assim, a participação e, no sábado, no horário indicado pelo cerimonial, compareci ao ginásio anexo ao teatro, para as orientações e providências que antecipavam o ritual. A gestão da formatura era responsabilidade de uma empresa especializada em eventos dessa natureza. É como procedem as instituições de ensino da iniciativa privada, terceirizando essas produções.

Depois de devidamente vestida e de muitas fotografias prévias (o que também merece um texto à parte), chegamos ao palco para as orientações e ensaio. A coordenadora, que trajava uma roupa preta e um par de mule de couro preto, sem salto, aparentemente um número menor, pois o pé ficava parcialmente para fora, caminhava para lá e para cá, explicando cada etapa do ritual. Portava autoridade no gesto, afirmava-se diante do grupo. Repetiu várias vezes que tinham preparado com muito carinho aquele momento, com cuidado para garantir que todos ali ficassem emocionados. A esse respeito, foi taxativa: “hoje, eu vou fazer vocês chorarem!” Aquilo me pareceu um tanto agressivo. Mas não dei muita importância. Já estava lidando com uma lógica muito distinta daquela à qual estou acostumada: ali, tratava-se de um espetáculo que se vende como mercadoria. Tudo ali resultaria em entradas de divisas para a empresa, inclusive cada fotografia tirada, que integrará um álbum nem um pouco barato a ser vendido a cada pessoa que tenha estado ali. O assunto também mereceu um aparte: Recebam bem nosso representante e comprem o álbum!.

Mas eu não consegui me desligar da ideia de que ela nos faria chorar, como projeto, com planejamento e, ao que tudo indicava, experiência no assunto.  

Quando, afinal, foi dado início ao evento e cada participante entrou, ocupando seu lugar no palco, um jogo de luzes multicolorido com movimentos velozes tomou conta do espaço do teatro e uma música estremeceu todas as superfícies. O volume ultrapassava em muito o nível máximo de decibéis apontado como minimamente recomendável. Os graves faziam vibrar minha caixa torácica. Eu comecei a sentir dor de cabeça e um pouco de tontura. Como ainda levaria algum tempo até que todas as pessoas ingressassem, pedi a alguém da equipe para baixar um pouco o volume, explicando que eu não me sentia bem. A pessoa me disse que não era possível atender ao meu pedido. Evidentemente que era possível, respondi, além do quê eu estava me sentindo mal. Ela afirmou ser aquele o protocolo. Reiterei que não me sentia bem. Que eu saísse então, ela me disse. Que não, era minha formatura, afinal, respondi, bastava que baixassem o volume do som. E acrescentei: vou ficar sentada, e taparei os ouvidos; mas vocês estão errados; esse volume do som é uma violência a qualquer organismo.

Sentei-me e, com os dedos, fechei a entrada dos ouvidos. O som chegou-me com um pouco mais de conforto. Algum tempo depois, a música foi retirada, dando-se início às várias etapas a serem cumpridas: hino nacional, discursos, juramento, homenagens. Como a trilha sonora era sempre intercalada com falas, o volume passou a um nível administrável.

Nesse ínterim, a coordenadora da produção, a tal moça com o par de mule preto menor que seus pés, passava entre as pessoas perguntando: “Tudo bem? Vocês estão bem?”. Procurava por quem estivesse chorando e distribuía lenços para que se enxugassem as lágrimas. Ela queria que as pessoas chorassem, estava preparada para esse resultado, não importava a que preço. Dei-me conta, então, que a música naquele volume fazia parte do projeto de “emocionar e fazer chorar”. O impacto físico do volume sonoro, sobretudo dos graves, fazia parte da indução ao choro. No meu caso, eu beirava o choro, mas não pela emoção com a formatura; ao contrário, eu quase chorava pela raiva que o mal-estar provocava e pela indiferença da produção à questão.

Mais ao final, passou-se à entrega dos canudos, quando cada pessoa foi chamada, individualmente. A música voltou ao volume ensurdecedor, com uma breve pausa para a chamada, ao microfone, de cada nome. E a moça veio perguntar se estávamos bem. Respondi que não e pedi para baixar um pouco o volume. Ela me olhou firmemente nos olhos, com uma expressão meio irônica. Talvez quisesse saber porque eu não estava chorando... Repeti-lhe o pedido para baixar. Ela perguntou: “É?” Já bem irritada, disse-lhe que sim, que se não baixassem o volume eu faria um escândalo, pois estava passando mal. Depois de uma pausa, mantendo o controle da situação consigo, ela se retirou. Já chamavam pelo meu nome. Segui para pegar o canudo. Do outro lado, profissionais da fotografia me aguardavam para registrar o momento. Eu estava contrariada e não considerei a possiblidade de mudar minha expressão. Voltei ao meu lugar, no palco, sentei-me, deixei o canudo no colo e tapei os ouvidos com as mãos. Algum tempo depois, percebi que o volume diminuiu um pouco. Contudo, sentia mais conforto com os ouvidos tapados. Assim permaneci até o final, quando se encerraram os trabalhos, as cortinas foram fechadas e as pessoas foram encaminhadas, com as famílias, para a última sessão de fotografias.

Muitas pessoas choravam. Era um momento, sem dúvida, de grandes alegrias. A música, finalmente, cessou. Levei comigo o canudo vazio. Ainda aguardo pela emissão do diploma digital devidamente registrado no Ministério da Educação, que me confere o título de bacharel em filosofia.