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segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Sobre linguagem neutra e outras considerações

Ah, a língua que falamos, quantos mistérios guarda, de quantas histórias é entrelaçada, de que modos sistematiza nossos valores e nosso imaginário!

O modo como uma língua se organiza sistematiza as formas de pensamento da comunidade que dela faz uso para se comunicar. Mais do que se comunicar: para sistematizar o pensamento, para organizar aquilo que conhece, que sabe sobre o mundo, e para estruturar o mundo em que cada qual se encontra. As relações entre a língua, os modos como se faz uso dela e a comunidade falante são dinâmicas, em transformações mútuas e contínuas. Uma mesma língua falada num determinado momento histórico, por uma comunidade, estará modificada duas décadas depois, assim como também estará sua comunidade.

Pensar numa cultura, numa comunidade ou numa língua fixadas no tempo, sem modificações, é pensá-las mortas.

Como soe ser com as culturas de um modo geral, as dinâmicas de transformações se dão nas tensões estabelecidas entre forças que tendam à conservação do que já está posto e as forças que busquem instaurar o novo. A instauração do novo, sem resistência, causa tantos danos quanto a manutenção do já posto sem renovação. Em meio a tais tensões, a vida em sociedade se institui, em efervescência.

As diferentes línguas propiciam diferentes percepções e concepções de realidade, que não são passíveis de tradução entre si. Ou seja, cada língua oferece ferramentas específicas para organizar o pensamento e a percepção do mundo de modos específicos.

Tendo isso em conta, e considerando a língua portuguesa falada no Brasil, podemos buscar algumas especificidades e forças transformadoras observadas nas últimas décadas. Por exemplo, o fato de que o modo subjuntivo da conjugação verbal vai caindo em desuso na mesma medida em que avançamos no aprofundamento das tecnologias para a organização das informações, do pensamento e, mais recentemente, dos textos. O modo subjuntivo apresenta uma possibilidade em grande medida inacessível para máquinas que operam na linguagem binária. Por exemplo, entre o que foi e o que não foi, o subjuntivo apresenta possibilidades, naquilo que poderia ter sido, ou teria sido, ou seria...

Fico sempre impressionada como não há quem se levante em defesa do subjuntivo. Não raro, percebo expressões de estranhamento ante a própria terminologia: de que trata o subjuntivo? Avançamos, afinal, para um mundo sem as nuances temporais que essa modalidade verbal permite. Quem sente falta, a propósito?

Curiosamente, se, no tocante aos modos e tempos verbais, o uso da língua portuguesa no Brasil tende a essa simplificação, traduzida no desuso do subjuntivo, que resulta na redução às escolhas entre a afirmação e a negação diretas, por outro lado, ultimamente se tem testemunhado o debate a respeito da definição de gênero, delimitado na perspectiva binária, conforme as referências normativas dominantes em nossa sociedade: ele ou ela, homem ou mulher, macho ou fêmea.

Algumas línguas contemporâneas abrem algumas brechas para o eventual uso de pronomes neutros, muitos desses, contudo, destinados à referência de objetos e outras formas substantivas que não pessoas: it, no inglês, por exemplo. Ao mesmo tempo, ganham força as discussões sobre as orientações de gênero na sociedade contemporânea ocidental, abrindo flancos para a manifestação de orientações outras que se situam fora da clássica orientação homem-mulher, masculino-feminino, atrelada às formas biológicas de formação.

As pressões e as demandas sociais tomam a frente. Logo atrás encontram-se as normas sociais, seguida da legislação, que tentam dar respostas às demandas. A língua vem depois, se reordenando continuamente, para traduzir em palavras e estruturação frasal esses modos de viver. Nesses processos todos, forças divergentes de debatem, entre conservar e transformar, entre manter e mudar.

É nesse contexto que, há algum tempo, começou-se a questionar, em primeiro lugar, o fato de a língua portuguesa (não só a portuguesa, mas essa é a minha língua materna, por isso penso a partir dela) fazer uso do masculino para incluir todos os gêneros, e a palavra homem como termo universal que inclui homens, mulheres, crianças, velhos e todos quantos mais. Tal regra persiste, mas tem sido contestada em quase todas as frentes, restando poucos usuários que insistem em sua manutenção. 

Junto aos questionamentos e à constatação da necessidade de se rever essa questão, começou-se a buscar formas alternativas de representação dessas demandas nos textos escritos. Assim, houve quem fizesse uso dos indicativos dos gêneros feminino e masculino para a escrita de substantivos, adjetivos, pronomes etc., em referências sempre a homens e mulheres, professores e professoras, pais e mães, meninos e meninas, entre outros. Apareceram também escritas com frases tais como: Ele/a é bonito/a. Um pouco além, houve quem utilizasse o sinal @ em lugar da indicação de gênero: El@ é bonit@. Estas estratégias representam projetos de inclusão, mas com algumas limitações. As duas primeiras são estritamente binárias do ponto de vista de gênero. O uso do sinal @, embora pareça mais aberta, é excludente em outras instâncias, especialmente no tocante às pessoas surdas e cegas, por apresentar obstáculos à tradução e à compreensão seja na língua de sinais, seja no braile. Além disso, o uso do @ resolve, parcialmente, a escrita, mas não resolve a fala. Do mesmo modo, o uso da barra é um problema para a língua falada.

Como desdobramento dessas tentativas, alguns segmentos sociais passaram a inserir uma terceira forma de articulação de gênero na escrita e fala, esta, referente às orientações não binárias. Ao lado de ela e ele, acrescentou-se a forma elo. A frase então passou a poder ter as seguintes construções: ela é bonita, em referência a uma pessoa de orientação feminina; ele é bonito, referindo uma pessoa de orientação masculina; elo é bonite, que inclui pessoas de orientação não binária. É importante ressaltar que a forma neutra não inclui todas as orientações, como seria o caso de @, mas refere-se à orientação não binária. Ou seja, ao cumprimentar a todes aqui presentes, não cumprimento todas as pessoas presentes, mas as pessoas de orientação não binária.

A adoção dessa terceira referência de gênero na língua não é consensual, e estabelece territórios de disputa entre as mais diferentes bandeiras.

Pessoalmente, tenho me proposto o exercício de forçar a ampliação dos recursos já disponíveis pela língua na direção do seu uso de modo neutro. Por exemplo, em lugar de escrever: Você, leitor, leitora, leitore deste texto sobre linguagem neutra, escolho escrever: Você que lê este texto sobre linguagem neutra. Assim, pretendo manter a interlocução com qualquer substância viva que, de alguma forma, e a seu modo, se aproxime do texto em pauta. Tal exercício não é simples, e tem apresentado desafios na estruturação do pensamento, a cada linha escrita, a cada argumento construído. Por outro lado, apesar do rigor no tocante à construção de uma perspectiva includente radical, no mais das vezes, em sua leitura, esse demarcador passa despercebido por quem faça a leitura. Ou seja, recorrentemente, quem o leia não se dá conta da indistinção não só de gênero, mas de qualquer outro marcador social, cultural, de gênero, biológico, enfim.

Nesses termos, entendo que, muitas vezes, o uso da terceira forma, na definição da orientação não binária, cumpre sobretudo a função de ressaltar, inevitavelmente, tal necessidade. Trata-se de uma bandeira erguida.

Por isso mesmo, sem abrir mão do exercício continuado de uso da língua de modo includente radical, quando solicitada, não me recuso a fazer o uso da linguagem neutra, especialmente naquelas situações que concorram à defesa de direitos legítimos, da ética, do respeito à pluralidade, por mais desafiador que isso seja.

Mas continuo exercitando as possibilidades da língua conforme posta, empurrando seus limites para mais além, traçando outros mapas, tentando redesenhar horizontes, para, dentro dela, fazer outros usos, disponível para as possibilidades de transformar os meus modos de pensar, de ser e de estar no mundo.

 

 

 

 

 


domingo, 2 de janeiro de 2011

Presidente ou presidenta...

Não posso concordar com a posição de Pilar del Rio, que qualifica como néscio quem prefira atribuir o termo presidente tanto para homens quanto para mulheres. Começo por chamar a atenção para o grande número de palavras, na língua portuguesa, que atendem tanto o gênero masculino, quanto o feminino, ou quaisquer outros. São unissex. O que faz delas palavras atualíssimas, em total sintonia com as demandas contemporâneas: adéquam-se a todos os gêneros, sem discriminações. Ela me veio, sorridente. A paciente teve alta. A força insurgente não se dispersou pela atuação competente das lideranças... Dilma Rousseff, a primeira mulher brasileira a se tornar presidente do país.

Definitivamente, não é néscio quem conhece as potencialidades e sutilezas de sua língua, e faz uso delas em suas possibilidades – esse, o maior equívoco da Sra. Pilar del Rio.

A adoção do termo presidenta tem, sobretudo, sustentação política, na reivindicação do respeito à atuação de mulheres admiráveis no decurso da história, muitas delas olvidadas ou escondidas à sombra dos poderios masculinos. Essa adoção é uma possibilidade absolutamente procedente. Mais que isso: tem abrigo da língua, esta senhora que acolhe mudanças em seu largo colo. Presidenta é termo que integra os novos dicionários da língua portuguesa, trazido ao uso por aclamação.

Pronto: não há razão para contendas. Toda mulher que presida alguma instituição e prefira ser referida como presidenta, expresse seu desejo, e cumpra-se. O que não deve ser traduzido na sua imposição. Toda imposição é excludente e autoritária. Portanto, burra. 

A mim, parece-me muito mais interessante, instigante, divertido, usufruir das potencialidades da língua para o acolhimento de nuances sob o mesmo termo, o mesmo abraço, a mesma denominação.

Vida longa à Sra Pilar del Rio, Presidenta da Fundação José Saramago!

Vida longa à Exma. Sra. Dilma Rousseff, Presidente do Brasil!