sábado, 19 de fevereiro de 2011

Rito de iniciação à sociedade de consumo


 
Na casa de minha infância, todas as coisas deveriam ser tratadas de modo a durarem para sempre. Ou então para terem seu tempo de utilidade estendido ao máximo. Qualquer ação em contrário era motivo de censura e reprovação. Por isso havia objetos que pareciam existir desde o início, e certamente sobreviveriam a todos nós. É fato que alguns deles se deixavam vencer pelo desgaste do uso. Esses eram logo consertados para retornar à ativa. Machados, baldes, cordas diversas, arreios, panelas, talheres, roupas, brinquedos, sabonetes, agasalhos, espelhos... Ao lado das coisas, os dinheiros, poucos, deveriam ser economizados para durar até a próxima safra – do feijão, de erva-mate, de gado. E os vínculos de afeto, as relações entre as pessoas, essas deveriam ser de natureza inabalável, regida pela correção, pela ética, pelo zelo.

Cheguei à capital, para estudar, com pouco mais que 14 anos. Meu coração estremecia com a possibilidade de conhecer novas gentes e seus modos de viver, de me cercar com outras coisas, para serem usadas com cuidado e durarem para sempre. Em certa ocasião, num gesto desajeitado quebrei uma bijuteria. Aquilo me pareceu um desastre, resultando em choro interminável, só interrompido pela intervenção de minha irmã, que me dera o presente. Firmemente ela me pediu para não chorar mais, afinal poderíamos comprar outra. Tudo me parecia tão definitivo: ganhar o presente, danificá-lo. Então ela argumentou que as pessoas trabalhavam para ter dinheiro e comprar o que precisassem, ou quisessem. E se as coisas estragassem, poderiam ser substituídas. Não havia razão para tanto choro.

Confesso que sua fala me assombrou, pois ressoou cambiando o sentido de tudo em torno de mim. As coisas não precisavam mais durar para sempre: poderiam ser trocadas por outras a qualquer momento. Trabalhava-se para isso. Desejava-se isso. De fato, sua declaração me introduziu, de modo inequívoco, à lógica da sociedade de consumo, onde as coisas não só podem ser descartadas, como é necessário que o sejam, para darem lugar a outras mais novas, mais interessantes, em sintonia com os modismos.

Naquele dia, transpus a fronteira que separa a lógica da economia de subsistência - em que prevalecia a tradição, regida pelo legado de uma geração à outra, pela preservação - adentrando o território das dinâmicas instáveis do consumo, em que prevalece a novidade, a brevidade das relações, dos vínculos, em que pese a capacidade de rápida adaptação ao imprevisível, e mesmo de antecipação em relação às probabilidades do devir.



segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Ratazanas

Para Manoela

Algumas vezes retornei sozinha à minha casa de infância, e me reencontrei com seus espaços repletos de memórias... ou ratos...

Numa dessas vezes, estava ocorrendo uma invasão de ratos do campo na casa fechada. Os caseiros, que moravam ao lado, mal davam conta de controlar a entrada das ratazanas em sua própria residência.

Informada do ocorrido, mas determinada em retornar, incluí na bagagem minha velha rede de algodão, pregos grandes, ganchos de rede. Desembarquei do ônibus no final da manhã, com tempo o suficiente para escolher o melhor lugar de instalar minha dormida. A rede ficou suspensa ao alto, de modo me alimentou a impressão de estar a salvo, quando a noite chegasse e os ratos começassem a invadir todos os aposentos.

Armei, também, algumas ratoeiras em lugares estratégicos.

Quando o sol se pôs, em direção ao Paraguai, vi os pequenos animais saltando dos galhos de goiabeiras próximas para o telhado, e dali passando ao forro, e do forro ao restante da casa.

A esposa do caseiro me explicou que os bichos comiam a cabeça das mariposas. Naqueles dias, elas estavam desovando na plantação de soja. Logo iniciaria o tempo das lagartas. Por isso, principalmente à noite, o chão ficava coberto pelas mariposas.

Não tardou para eu me recolher à rede. Do meu posto-porto de segurança, tentava compreender o que se passava no escuro absoluto em que eu mergulhara. Ouvia os animais caminharem pela casa, do forro ao chão, e pequenos estalos indicavam que, provavelmente, eles estivessem devorando cabeças das mariposas, pousadas em todos os lugares.

A certa altura, uma ratoeira se desarmou, e ouvi o chiado da ratazana agonizante. As demais ratazanas também ouviram, e nenhuma ratoeira mais foi desarmada.

Algum tempo depois, cedi ao sono, e dormi alheia ao que se passava em torno.

No dia seguinte, encontrei incontáveis corpos de mariposa decepados, sob a rede, nos demais aposentos, na varanda, e nas calçadas. A casa silenciosa em nada lembrava o movimento noturno incessante. À tarde, tomei o ônibus de volta para a cidade, antes que os ratos voltassem do campo, para mais uma sessão noturna...

Minha coragem, afinal, não chegava à condição de insanidade... Menos mal.



quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

'Quitinha



Conversadeira e sabida!
Chama os nomes das pessoas,
 assanha-se com o movimento dos cachorros e da gata,
 ri à toa, assobia, dá tchau...



domingo, 6 de fevereiro de 2011

Enterros do Lopez – memórias da guerra



Antes de morrer, durante a guerra, contavam os antigos que Solano Lopez teria enterrado seu tesouro de patacas de ouro em vários pontos da fronteira, para não entregá-lo aos inimigos que lutavam em nome da Tríplice Aliança. 


Muitas pessoas empenhavam suas vidas na busca desses enterros do Lopez. Houve quem tivesse sonhado com um enterro debaixo de casa, e, ao acordar, não tenha hesitado em derrubar paredes, arrancar piso, em busca do tesouro. Muitas pessoas, também, viam mulas-sem-cabeça ou fogos misteriosos na mata fechada, e interpretavam como sinais indicadores da fortuna, pondo-se na busca. 


Quando corriam boatos de que alguém teria encontrado um enterro do Lopez, a família passava a ser visada por gatunos, ladrões e malfeitores de toda espécie, motivados pela possibilidade de tomar para si o possível tesouro recém-acrescentado ao patrimônio. Há notícias de assassinatos terríveis cometidos dessa maneira. 


E quando havia suspeita de que houvesse enterro nalguma propriedade, ela agregava valor nas negociações de compra e venda.


O desenvolvimento tecnológico da lavoura e as extensas plantações de soja encerraram essa saga do imaginário da guerra. A terra, que guardava mistérios, esconderijos, segredos, foi desnudada, revolvida, exposta ao sol e ao vento. Não há mais enterros do Lopez para serem buscados.



terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Paradoxos do bem e do mal...



Quando tinha uns 11 anos, comecei a matutar sobre as noções de bondade e maldade. 
O ponto de partida estava na ideia de que quem faz o bem vai para o céu, e quem faz o mal vai para o inferno. A esse dado, acrescentava o outro, tão importante quanto, segundo o qual quem sofre vai para o céu, e quem nunca passa por nenhuma penúria vai para o inferno. Aí encontrava-se o paradoxo: ora, quem faz o bem age de modo egoísta, pois pensa em garantir para si as benesses celestiais, tirando do seu protegido a oportunidade de sofrer, e portanto ter acesso ao céu; por sua vez, quem faz o mal paga o preço de ser lançado ao inferno, levando sofrimento a outrem e garantindo-lhe o céu. Assim pensado, quem faz o bem, age de má fé, pensando em si mesmo, já quem faz o mal, em última instância, promove o bem...