Na casa de minha infância, todas as coisas deveriam ser tratadas de modo a durarem para sempre. Ou então para terem seu tempo de utilidade estendido ao máximo. Qualquer ação em contrário era motivo de censura e reprovação. Por isso havia objetos que pareciam existir desde o início, e certamente sobreviveriam a todos nós. É fato que alguns deles se deixavam vencer pelo desgaste do uso. Esses eram logo consertados para retornar à ativa. Machados, baldes, cordas diversas, arreios, panelas, talheres, roupas, brinquedos, sabonetes, agasalhos, espelhos... Ao lado das coisas, os dinheiros, poucos, deveriam ser economizados para durar até a próxima safra – do feijão, de erva-mate, de gado. E os vínculos de afeto, as relações entre as pessoas, essas deveriam ser de natureza inabalável, regida pela correção, pela ética, pelo zelo.
Cheguei à capital, para estudar, com pouco mais que 14 anos. Meu coração estremecia com a possibilidade de conhecer novas gentes e seus modos de viver, de me cercar com outras coisas, para serem usadas com cuidado e durarem para sempre. Em certa ocasião, num gesto desajeitado quebrei uma bijuteria. Aquilo me pareceu um desastre, resultando em choro interminável, só interrompido pela intervenção de minha irmã, que me dera o presente. Firmemente ela me pediu para não chorar mais, afinal poderíamos comprar outra. Tudo me parecia tão definitivo: ganhar o presente, danificá-lo. Então ela argumentou que as pessoas trabalhavam para ter dinheiro e comprar o que precisassem, ou quisessem. E se as coisas estragassem, poderiam ser substituídas. Não havia razão para tanto choro.
Confesso que sua fala me assombrou, pois ressoou cambiando o sentido de tudo em torno de mim. As coisas não precisavam mais durar para sempre: poderiam ser trocadas por outras a qualquer momento. Trabalhava-se para isso. Desejava-se isso. De fato, sua declaração me introduziu, de modo inequívoco, à lógica da sociedade de consumo, onde as coisas não só podem ser descartadas, como é necessário que o sejam, para darem lugar a outras mais novas, mais interessantes, em sintonia com os modismos.
Naquele dia, transpus a fronteira que separa a lógica da economia de subsistência - em que prevalecia a tradição, regida pelo legado de uma geração à outra, pela preservação - adentrando o território das dinâmicas instáveis do consumo, em que prevalece a novidade, a brevidade das relações, dos vínculos, em que pese a capacidade de rápida adaptação ao imprevisível, e mesmo de antecipação em relação às probabilidades do devir.
O armário de cozinha da mãe mais velho do que eu, a travessa onde a bisavó colocava o angu pra esfriar, a máquina de lavar comprada para as fraldas do irmão caçula que já passa dos 50, a coleira do cachorro da infância, etc etc...
ResponderExcluirGladstone, querido, ainda bem que nem tudo cedeu às pressões, e há zonas de resistência! Preparo as refeições usando uma panela de ferro que minha mãe ganhou de casamento; minha geladeira, em Brasília, tem 25 anos; minha boneca Daisy Mary - que anda, dorme e tem cabelo :) - é uma senhora de 44; e você entrou em minha vida no comecinho dos anos 80! :)
ResponderExcluirAi Alice, e eu, como fico, pois vendi uma porção de coisas para vir para Campinas, guardei todos livros e objetos na casa da Ana Rita, e estou aqui, nesta kitnet sem nenhuma das coisas que motivaram a pesquisa do doutoramento, rsrsrs, e agora?
ResponderExcluirEstou igualzinho aos professores de artes visuais que não desejo pesquisar, neste momento, os que habitam casas nas quais as paredes e estantes estão brancas, amareles, verdes, sucessivamente, ou seja, sem nenhuma imagem ou objeto que suscita memórias, histórias, posições identitárias... enfim!
As imagens mais importantes, você as leva consigo, em sua própria história. A preservação dos vínculos, essa sim, é importante.
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