quarta-feira, 22 de junho de 2016

caças e caçadores


Mimi fica por ali, esticada ao sol, macia e atenta. Por vezes, sai à caça, atendendo ao chamado do espírito predador. Amiúde traz uma lagartixa para brincar até a morte do pequeno réptil. Mordisca, dá pequenos tapas, saltita em torno, até que decide devorá-la. Mas, entre as lagartixas há aquelas que não se deixam abater facilmente. Estrategas, executam eficientes planos de sobrevivência à impiedosa fêmea felina. Algumas lançam mão de recursos da performance. Abandonam-se, com a barriga voltada para cima, como se mortas. À menor distração de Mimi, escapam velozmente em direção ao primeiro vão, e dali para outras searas mais seguras. Deixam Mimi a ver navios...





Ao meu amigo menino que já se fez moço


Era seu primeiro semestre no curso de Licenciatura em Artes Visuais. Por vezes, para participar da aula de desenho, ela precisava trazer seu filho, por não ter com quem deixar naquele período. Não estou muito certa, mas imagino que ele tivesse por volta de 7 anos. Confesso que eu gostava muito da presença do pequenino, pois sempre era quem mais desenhava nas aulas. Atento às orientações, as interpretava como conseguia, e executava os desenhos de modo sempre entusiasmado. Eu o incluía entre os estudantes nos processos de discussão, nos comentários, nas avaliações. E sentia falta quando se demorava a comparecer às minhas aulas.

Nos semestres seguintes, ministrei disciplinas teóricas para a sua mãe. E por vezes ele reivindicava participar das aulas, mesmo advertido de que não seriam aulas práticas. Durante as atividades, observava com atenção as discussões. Eventualmente, eu inventava alguma forma de propiciar que ele se manifestasse. O que ele fazia prontamente.

A mãe dele se formou. Numa tarde, de surpresa, ele foi me visitar na universidade. Já estava se colocando pré-adolescente. Deixei meus afazeres, e nos colocamos a conversar sobre muitas coisas. Inclusive sobre cinema: uma paixão em comum entre nós dois. Acabei descobrindo que ele não lera o livro Alice no país das maravilhas. Providenciei um volume para ele, e tratei de fazer chegar às suas mãos.

Depois disso, não tive mais notícias do meu amigo querido.

Mas ontem, recebi uma mensagem dele, por e-mail. Nela, ele me contou que fora à universidade, numa programação quando as escolas de ensino médio levam seus estudantes para conhecer os cursos de graduação oferecidos ali. É uma maneira de motivá-los a se preparar para o acesso ao ensino superior. Meu amigo já está se preparando para seguir carreira universitária. E, tendo ido à universidade, aproveitou para me procurar. Queria me contar o que tem feito. Queria lembrar o livro que lhe dei. Mas eu não estava lá. Por isso, decidiu me enviar a mensagem. Queria marcar um horário para fazer uma visita.

Fiquei muito emocionada. Quantas frustrações, quantos embates, quantas tensões terão valido a pena. 



Um caminho é só um caminho, e não há  desrespeito a si ou aos outros em abandoná-lo, se é isto que o coração nos diz...
Examine cada caminho com muito cuidado e deliberação.
Tente-o muitas vezes, tanto quanto julgar necessário.
Só então pergunte a você mesmo, sozinho, uma coisa...
Este caminho tem coração?
Se tem, o caminho é bom,
se não tem, ele não lhe serve.
Um caminho é só um caminho.
Carlos Castañeda



sábado, 18 de junho de 2016

De censuras e outros medos


Corria o ano de 1987. Já se vão quase 30 anos. Eu estava montando o espetáculo Estórias da Carochinha, que resultou do ajuntado de exercícios cênicos de estudantes adolescentes, matriculados na escola de ensino médio da rede pública, onde eu trabalhava. O texto, divertido e debochado, misturava personagens das histórias infantis clássicas, modificava-lhes as identidades, atualizava os diálogos e discussões. O Lobo era gay, a Rapunzel era interpretada por uma travesti, o gênio da lâmpada era uma menina chamada Eugênia que estava em greve por melhores salários, a lâmpada era uma chaleira, a Cinderela e a Branca de Neve foram transformadas em personagens masculinos, e havia uma noiva que procurava, durante todo o espetáculo, o noivo desaparecido, até que, ao final, decidia se livrar do vestido branco e cair na festa.

No elenco, quase 20 adolescentes entusiasmados que vinham, de ônibus, desde a periferia da capital federal até o Plano Piloto, para atuar no palco do Teatro Garagem.

Na antevéspera da estreia, fizemos a apresentação para os censores. Sim, em 1987, ainda estava em vigência a estrutura de censura, e qualquer espetáculo não podia estrear sem ter a apresentação prévia para receber a autorização documental assinada pelos censores.

Nosso espetáculo recebeu a autorização com um pequeno corte. Proibia a fala da Fada Madrinha, no breve diálogo com o Cinderelo, quando reclamavam da carestia de tudo e atribuíam a responsabilidade ao governo e sua incompetência. Fomos censurados. (Talvez eu devesse inserir esse fato no meu currículum vitae...). Mesmo com a proibição, assumimos correr o risco, e mantivemos a fala. Éramos adolescentes, afinal.

A temporada de duas semanas foi um sucesso. Voltamos a apresentar o espetáculo em outros espaços.

Para amanhecer hoje, sonhei que meu livro, Brevidades, não tinha sido impresso em razão de um poema que fazia referência à revolução e a mentiras. No sonho, reagi indignada, denunciando a volta da censura política, e do sistema de repressão covarde e amedrontador.

Ao acordar, pensei que as gerações com 30 anos ou menos não têm a menor ideia do que seja isso. Tenho receios...





segunda-feira, 6 de junho de 2016

Hortas e pomares no centro da capital da República



Bem no meio de uma superquadra
Longe da Esplanada dos Ministérios
E da Praça dos Três poderes
Viceja uma horta
Tratada por mãos cuidadosas
Gesto gentil
É de Seu José Neto a iniciativa
Pés de couve, pimentão, cheiro verde
Melão de São Caetano, jiló
Citronela, capim cidreira

Um pouco adiante,
Dona Francisca observa crescerem
Pés de seriguela, pitanga, acerola
Mamoeiros, e outros chás
À beira do caminho

Dessa Brasília que frutifica verdes e flores, tomo parte
Essa Brasília me habita