quarta-feira, 26 de setembro de 2018

A vida é precária




Quando o semáforo acende a luz vermelha, e o fluxo de carros para, em aguardo, a mulher rapidamente começa a dependurar no espelho retrovisor de cada um deles um pacote de balas refrescantes, com um cartãozinho que fica na direção do olhar do motorista. Nele, está escrito o pedido de ajuda em dinheiro. Ela calcula aproximadamente o tempo de que dispõe para distribuir um pacote para cada carro, em uma fileira, depois recolher um a um, eventualmente recebendo o dinheiro de alguém, antes que o sinal acenda a luz verde. Nunca vi ninguém entregando dinheiro a ela...

Hoje ela passou por mim, acomodando as balas nos retrovisores. Não demorou para que passasse correndo de volta até o início da fila de carros, e rapidamente recolhesse os pacotes, quase correndo. Imaginei a aflição dela ante a possibilidade de perder a mercadoria. Ainda teve tempo para voltar ao ponto de partida, antes que o sinal ficasse verde para o fluxo de automóveis.

Perguntei-me quantas vezes ela repetia aquele percurso, durante o tempo que fica ali, tentando amealhar alguns trocados. A roupa é escura, sob o sol intenso de quase 35ºC. Usa um chapéu também escuro, com um pano traseiro que lhe protege a nuca e as costas. A blusa tem mangas compridas, para proteger os braços. Completam o vestuário dela uma calça jeans justa, e uma sandália de plástico que insiste em lhe escapar dos pés. É o calçado com que ela alterna corridas e caminhadas rápidas nas idas e vindas, no cruzamento.

O sinal verde acendeu, e eu segui, com o fluxo dos carros. Adiante, outro cruzamento, em obras. No trânsito muito lento e confuso, as pessoas ficam ainda mais nervosas, e insistem em avançar mesmo quando isso resulta na insegurança sua e dos demais. Há poeira, terra solta, desníveis na rua, buracos no asfalto, desvio de fluxo. Em meio ao tumulto que já se vai tornando rotina, dois rapazes tentavam fazer o percurso a pé, empurrando um pesado e carregado carro para coleta de sucata. Eles foram atravessando à frente dos carros, que pararam com impaciência. O carro de mão caiu num dos buracos do desvio. Os rapazes tiveram que erguê-lo com a força braçal. Seguiram, precariamente, até sair do outro lado, quase em segurança. Na lona azul de um dos lados do carro de mão estava escrito, em letras brancas: “Deus é fiel. Tudo pode quem nele crê”.

Eles enveredaram por uma rua à direita. Eu segui o fluxo à frente e os perdi de vista.

A vida é precária... e passa que a gente nem vê...









sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Obrigado, professora!



Na cidade, multiplicam-se os cruzamentos, cheios de carros conduzidos por motoristas nervosos, inquietos a cada espera. Há fuligem no ar. Tensão.

Em muitos desses cruzamentos, nalguns horários do dia, ou da noite, artistas de rua quebram a aspereza da paisagem, com gestualidades, habilidades, bailados, artimanhas que, em breves segundos, capturam o olhar, algum suspense, algum riso, encantamentos fugazes.

Uns fazem malabarismos com facões, bolas, garrafas... Outros tocam violino. Há os que sobem em escadas sem apoio. Outros brincam com fogo, noite adentro...

Hoje pela manhã, um rapaz muito jovem trajado e maquiado para um espetáculo posturou-se, diante dos carros, dentre os quais o meu, que aguardavam o sinal verde para avançar. Ninguém estava ali ver apresentações de arte: todos tinham urgências, queriam seguir. Mas ele ignorou tal impaciência: tomou uma bola de vidro, transparente, e a colocou para bailar sobre seus braços, equilibrar-se entre as mãos, rodar sobre seu rosto. Pareciam flutuar: ele e a pequena bola, entre seus gestos ágeis, leves, precisos. 

Por um instante, esqueci-me dos automóveis, e deixei-me enlevar pela visão do rapaz com sua bola. Depois percebi que o tempo do semáforo já estava acabando, e ele prosseguia com o número, talvez também encantado com a própria dança. Busquei algum trocado na bolsa e, finda a apresentação, agitei os braços, para que ele me visse, e viesse pegar o dinheiro. 

Quando ele chegou, com um sorriso largo, eu lhe disse: “Cara, isso, da bola, é foda!” Então sua voz me soou familiar, e ele respondeu: “Obrigado, professora”, e saiu correndo. Os carros já avançavam.

Fui pega de surpresa. Professora! Sua voz, familiar, continuou reverberando nos meus ouvidos: “Obrigado, professora”, e eu comecei a chorar. Chorei como criança. Pensava no meu papel, como professora, na vida dessas pessoas. Pensava no quanto precisamos ter em vista a dimensão humana, a poesia, entre o trabalho árduo, em nossos ofícios. Pensando nisso, e entre lágrimas, segui, na velocidade do fluxo, cada vez mais distante daquele encontro.

À tarde, quando voltei, já não mais havia artistas no cruzamento. Ele concluíra a jornada do dia (do mesmo modo que a vendedora de águas de outro cruzamento, e a vendedora de docinhos num terceiro...). Sua missão fora cumprida: seu gesto e sua voz vibravam ainda em meu coração.