segunda-feira, 30 de novembro de 2015

papel para carta...

Para minha mãe que hoje completa 88 anos,
e se ressente por não mais receber cartas...

Cheguei à papelaria, me aproximei do balcão. A moça, solícita, ofereceu-se para me atender. Você tem bloco de cartas? Ela me olhou de um modo estranho, como se eu tivesse pedido um quilo de carne assada, talvez. Envelope para cartas? perguntou-me, com uma entonação na voz que parecia mais querer corrigir um possível erro que eu teria cometido. Não, bloco para escrever cartas. Eu já começava a sorrir por dentro, tendo compreendido a situação. Ela me trouxe um bloco de anotações, com folhas quadradas, pequenas. Insisti: um bloco com folhas de papel para escrever cartas. Já viu algum? Ela parou, pensou. Buscou na memória alguma referência ao que eu lhe solicitava. Sentiu-se impotente. Há muito tempo não se vende papel para escrever carta... sentenciou.

Saí dali com uma certeza: voltarei a escrever cartas para postar via correios. E o primeiro desafio será encontrar blocos com papel de cartas.






domingo, 22 de novembro de 2015

O olhar daquele que vem de longe


Assim que embarquei e me acomodei na poltrona, ao lado esquerdo do corredor, o meu companheiro de viagem chegou, com uma mochila. Meio tímido, cumprimentou-me, e se acomodou. Chamou-me a atenção seu modo discreto, e o cuidado que teve em organizar-se sem invadir o espaço da minha poltrona. Perguntou-me a que horas chegaríamos a Goiânia. Constatei, ali, sua pouca familiaridade com o percurso da viagem.

Seguimos: eu, tentando cochilar um pouco, ele, atento à paisagem visível pela janela. Depois pegou um caderno de capa amarela, com um lápis desses que têm uma borracha embutida na ponta oposta à com a qual se escreve ou desenha, e começou a escrever. Confesso que fiquei curiosa, ante comportamento tão pouco usual.

Já fora da cidade, perguntei-lhe se era a primeira vez que iria a Goiânia. Sem nenhum sotaque, respondeu Sim, estou no Brasil há três dias, sou dos Estados Unidos. Talvez ante minha expressão de surpresa pela desenvoltura com que falava o português brasileiro, completou a informação Minha família é de Goiânia. Fizemos uma breve pausa no diálogo. Ele tomou a iniciativa Você sabe onde fica o Setor Pedro Ludovico? Pela primeira vez percebi o sotaque norte-americano. Sorri em silêncio: pronunciar o nome Pedro Ludovico não é mesmo exercício muito fácil para estrangeiros, mesmo os bem treinados, como ele. Respondi que sim, e tentei situá-lo em relação à rodoviária, onde desembarcaríamos. Alguém virá esperar por você? Sim, já o estavam aguardando.

Por vezes, fotografava alguma cena que lhe chamasse mais a atenção. Anotava coisas no caderno de capa amarela. Achei que ele gostaria de saber que em Anápolis havia uma réplica da Estátua da Liberdade. Ele riu Como a de Nova York? Confirmei. Já no viaduto, fotografou a réplica, achando divertido: Legal!

Seu olhar era inaugural: via, pela primeira vez, as coisas sobre as quais provavelmente ouvira falar desde sempre. Via, pela primeira vez, as paisagens das quais sua família original provavelmente sentisse saudades. Talvez sentisse saudades, ele, daquilo que não conhecera, mas soubera por outrem. Reconhecia a si e ao lugar ao qual pertencia sem antes ter estado ali.

Já desembarcados, desejei-lhe boa estadia. Ele ficou aguardando a liberação da bagagem. Segui, me perguntando se é possível restaurar o encantamento do primeiro olhar.





sábado, 21 de novembro de 2015

Sobre ler e sobre escrever, num sistema marcadamente produtivista

Para a Koyziña, 
também conhecida como Alzira, minha querida,
 que fica cansada só de ver tanta letrinha...
 prá que tanta?


Não vou tratar das dores e mal-estares da sociedade marcadamente produtivista na qual vivemos, e de cujo princípio nos tornamos reféns. Isso ainda me transborda, e não consigo alinhavar muitas linhas de raciocínio a respeito. Neste momento, apenas ouso chamar ao foco um pequeno e insignificante recorte desse contexto, uma das traduções desse princípio produtivista na vida acadêmica, seja de docentes, seja de discentes.

No Sistema Nacional de Pós-Graduação há uma pressão, em contínuo crescente, sobre professores e estudantes, para que produzam(os). Desenvolvem-se sistemas de avaliação que, de um lado, criam as condições coercitivas para que a produção aconteça. Os mesmos sistemas, de outro lado, verificam a idoneidade e qualidade dos meios pelos quais essas produções são veiculadas. Ou seja: não basta escrever artigos, é preciso tê-los avaliados e aprovados nos meios qualificados pelos sistemas de avaliação geridos pelas agências reguladoras e financiadoras dos sistemas.

Há uma corrida por publicações. Acumulam-se periódicos nominados como científicos, em versões impressa e online, lutando por um lugar ao sol, de preferência, lugar ao sol A1 ou A2... talvez admita-se, provisoriamente, B1...[1].  Acumulam-se artigos, e mais artigos, cujos dados são lançados nos relatórios de produção. Acumulam-se livros que reúnem capítulos assinados por autores diversos, nem sempre em interlocução, mas irmanados na urgência de publicar. Acumulam-se trabalhos de conclusão de curso, dissertações, teses, todas disponibilizadas online, quase nunca lidas.

Textos e mais textos... Quase nunca lidos...

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(Pausa para um trecho do conto Fim do mundo do fim, de Julio Cortázar...)

Como os escribas continuarão, os poucos leitores que no mundo havia vão mudar de profissão e adotar também a de escriba. Cada vez mais os países serão compostos por escribas e por fábricas de papel e de tinta, os escribas de dia e as máquinas de noite para imprimir o trabalho dos escribas. Primeiro, as bibliotecas transbordarão para fora das casas; então, as prefeituras resolvem (já estamos vendo tudo) sacrificar as áreas de recreação infantil para ampliar as bibliotecas. Depois sucumbem os teatros, as maternidades, os matadouros, as cantinas, os hospitais. Os pobres aproveitam os livros como tijolos, grudam-nos com cimento e constroem paredes de livros e moram em casebres de livros. Então acontece que os livros transbordam das cidades e entram nos campos, vão esmagando os trigais e os campos de girassóis, o Ministério da Viação mal consegue que os caminhos fiquem desimpedidos entre duas paredes altíssimas de livros. Às vezes uma parede cede e há espantosas catástrofes automobilísticas. Os escribas trabalham sem trégua porque a humanidade respeita as vocações e os impressos já chegam à beira do mar. O Presidente da República telefona para os presidentes das outras repúblicas e propõe inteligentemente jogar no mar o excedente de livros, o que se faz ao mesmo tempo em todas as costas do mundo. Assim os escribas siberianos vêem seus impressos jogados no oceano glacial e os escribas indonésios etc. Isto permite aos escribas aumentarem sua produção, porque volta a haver espaço na terra para armazenar livros. Não pensam que o mar tem fundo, e que no fundo do mar começam a amontoar-se os impressos, primeiro em forma de pasta aglutinante, depois em forma de pasta consolidante e, finalmente, como um chão resistente embora viscoso, que sobe diariamente alguns metros e acabará por chegar à superfície. Então, muitas águas invadem muitas terras, produz-se uma nova distribuição de continentes e oceanos, e diversas repúblicas são substituídas por lagos e penínsulas, presidentes de outras repúblicas vêem abrir-se imensos territórios a suas ambições, etc. 
(...)

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(finda a pausa, retomando o fio da meada...) 

Assusta-me o fato de que não haja nenhuma expectativa quanto à leitura (não é possível ler tudo quanto seja publicado, nem há interesse: a maior parte se repete, diz do mesmo e da mesma maneira...). É claro, há um pressuposto: para escrever um texto, seu autor terá lido outros autores, tanto que ao final, nas referências, fará uma relação daqueles cujo pensamento contribuiu para apoiar sua linha de raciocínio. No entanto, eu contesto esse pressuposto. Desconfio, quase sempre, que essas leituras sejam aligeiradas, sob pressão, para atender o ritmo de produção exigido, para não perder o espaço de visibilidade, para ganhar melhores posições no cenário das publicações... para, quem sabe, passar de B1 para A2...

Foi assim que me surpreendi quando, fazendo um despretensioso curso de licenciatura a distância (sem maiores expectativas no quesito qualidade das discussões...), descobri que, na lista das atividades complementares a serem cumpridas (atividades culturais em geral, cursos de extensão, eventos, etc.), eu poderia incluir relatos de livros que li no período (bem como de filmes que tenha visto, além de espetáculos). De livros que tenha lido? Na dúvida, retomei o item, e solicitei à tutoria orientação a respeito. Sim: minha interpretação estava correta. Eu poderia relatar o conteúdo de livros que tenha lido no período, estabelecendo relações com o conteúdo do curso, e isto me valem horas para o cumprimento semestral das atividades complementares.

Feliz surpresa. Terá valido o curso saber que momentos de pausa, de livre leitura, nalguma instituição, tem atribuído valor no processo de formação.

Enquanto isso, sob a pressão dos sistemas de avaliação de produtividade das graduações e pós-graduações, escrevem-se inumeráveis textos para ninguém... apenas para constar nos relatórios de produção...






[1] Escala de avaliação à qual periódicos de artigos científicos são submetidos, gerida pelo sistema WebQualis Periódicos, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A escala vai de A1 a C, sendo que A1 é a avaliação máxima, e C a avaliação mínima, além das produções e periódicos sem qualificação, que sequer entram nessa escala (em outras palavras, é como se não existissem...). Livros, eventos e produção artística também têm sistemas próprios de avaliação, chamados Qualis Livros, Qualis Eventos, e Qualis Artístico, todos pautados pela mesma lógica.








a tarde cai, a chuva cai...












sábado, 7 de novembro de 2015

Coisas que se pode perguntar com a chegada de um vizinho inusitado



Foto: Ruth dos Santos Martins


Os fluxos da cidade parecem caóticos, suas dinâmicas parecem escapar a maiores sistematizações. Enganam-se os que acreditem nisso. A cidade observa regras e critérios rígidos, que sistematizam a vida muito além das leis e normas explicitadas pelas jurisdições vigentes. Quando algum indivíduo ocupa lugar não previsto em sua malha, causa espanto e desconforto. Desorganiza o quotidiano. Desloca percursos...

Nas cidades, as pessoas habitam apartamentos, casas e barracos. Há os que habitam as calçadas, nas ruas, ou recantos em viadutos e pontes. A cidade prevê, em sua própria estrutura, a existência dos moradores de rua. Por isso mesmo, eles permanecem invisíveis aos demais, na maior parte do tempo, como se houvesse paredes em torno deles.

Passemos, pois, à cena central deste relato: uma quadra residencial, com edifícios de apartamentos, jardins entre os edifícios, e vias internas de acesso, para carros, aos estacionamentos locais. Numa lateral, prédios comerciais, com alguns apartamentos minúsculos nas sobrelojas, habitados por alguns comerciantes locais. Pelas calçadas, transitam passantes que chegam para suas jornadas de trabalho, ou retornam ao final delas. Seguem, também, moradores que levam seus cães a passear, ou fazem caminhadas para sair da letargia sedentária à qual a maior parte das pessoas está submetida. Alguns ambulantes, eventualmente, vendem frutas e verduras, instalados provisoriamente à beira de alguma das vias internas. Muitos pássaros habitam as muitas árvores que dão sombra generosa, e passeiam entre as plantas floridas, em busca de alimento. Eventualmente, algum morador de rua se instala à beira dos edifícios comerciais. Logo a administração pública providencia seu deslocamento para um centro de atendimento social.

Esse pode ser considerado um quadro protocolar dentro dos padrões de normalidade para o fragmento da cidade trazido ao foco, neste texto.

Mas houve um dia quando uma personagem que não se enquadra em nenhum desses perfis passou a habitar um espaço nem um pouco usual. Um rapaz de porte saudável instalou uma barraca bem equipada sob os galhos de um pé de buganvília florido, próximo à calçada entre o último edifício residencial da quadra e a comercial local. Chegou, assim, vindo ninguém sabe de onde, escolheu o espaço bucólico, e fixou morada. Montou a barraca, organizou uma tenda um pouco mais ampla, para proteger seus pertences instalados num carrinho desses usados em supermercado, com rodas adaptadas e amortecedor, o que facilitava seu deslocamento. Na varanda improvisada, colocou uma banquetinha dobrável.

Os moradores ficaram surpresos com a novidade. Não se tratava de um morador de rua. Nem ambulante, nem passante, nem trabalhador contratado para alguma empreitada na área pública. Inicialmente, acharam que fosse passageiro, mas os dias foram passando, e o morador foi ficando por ali.

Os olhos curiosos começaram a tentar decifrar a estrutura montada pelo novo vizinho, além do que estava mais explícito. Parecia haver uma bateria alimentada por energia solar. Assim, o morador operava vários aparatos, como televisão de pequeno porte, computador, telefone. Todos respiravam aliviados pelo fato de se tratar de alguém extremamente civilizado, que não fazia barulho, não emitia qualquer sinal que causasse desconforto, além de limpar suas instalações, depositando, diariamente, o lixo no lugar adequado para a recolha pelo sistema público de limpeza. Nos dias que ali permaneceu, não fumou, não bebeu.

Mas, ao mesmo tempo, os moradores se inquietavam, perguntando-se o que estaria fazendo ali uma pessoa com tal perfil: portador de equipamentos, com postura virtuosa, civilizada. Tratava-se de uma situação toda fora do lugar. Indecifrável. Além disso, sentiam certo receio, pois de onde ele se instalara era possível observar a movimentação nas unidades residenciais do prédio. Daí a sensação de insegurança.

Apesar de tudo, ninguém foi ter com o novo morador. Nem para dar as boas vindas, nem para arguir sua identidade, nem para pedir que saísse dali. Apenas um membro de uma igreja neopentecostal das proximidades resolveu oferecer-lhe a oportunidade de entregar-se ao Cristo, como única e talvez última chance de ser salvo. À noite, pela primeira vez, o morador puxou conversa com o porteiro do prédio contíguo à sua morada. Estava irritado com a tentativa de conversão. Contou que, em resposta, teria oferecido ao crente uma caixa de fósforos para queimar as páginas da sua Bíblia. Entre curioso e cioso de seu ofício, o porteiro decidiu manter-se reservado, e não avançar muito naquela conversa. No que não foi importunado pelo morador extra protocolar.

Poucos dias depois do episódio, ninguém sabe por qual razão, o rapaz desmontou a barraca, organizou todos os seus pertences dentro do tal carrinho de supermercado adaptado, e seguiu, pela calçada. Primeiro desceu, na direção leste. Pouco depois retornou, voltando rumo oeste. E foi-se. Dele não se teve mais notícia.

Aquele fragmento da cidade retomou sua normalidade. Mas ao se olhar para a área próxima ao pé de buganvília, os moradores do edifício contíguo imaginam a barraca montada. Ecos da perplexidade que tomou a todos ainda reverberam nessa lembrança. Ecos de um viver disciplinado pela cidade, a ponto de não se ter consciência sobre as grades que o cercam, e os limites que privam seus movimentos.






quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Trânsito em Goiânia ou corrida de obstáculos


Abro a porta da garagem. À saída, deparo-me, obstruindo a saída, com uma senhora fazendo manobra com seu carro ao meio da rua, para entrar na loja de carros usados, bem à frente. Bloqueio o portão automático, para que não bata no meu carro, e aguardo, pacientemente, que ela termine sua operação. Vários carros acumulam-se, na rua, nos dois sentidos. Uma tensão se instala. Ela me olha com raiva. Depois aguardo ainda mais algum tempo, até o fluxo da rua se normalizar, e também entro no fluxo. Em seguida, deparo-me com uma camioneta parada, em fila dupla, em frente à distribuidora de bebidas. Como a via tem apenas uma faixa de rolamento para cada sentido, preciso entrar na contramão para avançar. A operação encerra algum risco, pois está à altura de uma curva para quem sai da praça, sempre em velocidade mais ou menos acelerada. Consigo escapar. Vou entrando no anel da praça. Como o semáforo que antecede o ponto de entrada acabou de abrir, um fluxo intenso de veículos começa a se aproximar. Antecipo-me a eles, para entrar. Mas preciso alcançar a faixa de rolamento do centro, pois as duas, do meio e externa, estão ocupadas por carros parados em fila dupla e tripla. Encontro, de frente, um rapaz que caminha tranquilamente pela faixa interna, a única livre. Respiro fundo. Sinalizo para que ele não fique ali. Ele me olha com raiva. E segue, calmamente, em meio aos demais carros parados nas faixas duplas e triplas. Consigo ultrapassar mais esse obstáculo. Um semáforo vermelho. Espero, sob a pressão dos demais carros cujos motoristas não veem razão para parar. Motociclistas seguem, antes do sinal verde acender. Sigo. E me encaminho para passar por baixo do viaduto. Também temos ali duas faixas de rolamento, uma para cada sentido, sem acostamento. Um ciclista segue no mesmo sentido meu, próximo à parede do túnel. Vai em alta velocidade, considerando-se ser um ciclista, numa via perigosa, sem espaço seguro para seu veículo. Passo por ele tentando manter distância que garanta preservar sua integridade física. Quando ficamos lado a lado, percebo que ele está falando ao aparelho celular. Deixo-o para trás. Ao final da curva, deparo-me com um senhor que atravessa a rua sem olhar o fluxo de veículos. Quando ouve a buzina de um dos mais nervosos, olha com raiva, e segue. Próximo semáforo. Espera paciente. Quando o sinal verde indica que podemos avançar, sigo. Adiante, um senhor de cabelos brancos decide que pode atravessar a via com o sinal vermelho para ele, e passa, com sua camionete, bem à minha frente. Susto. Logo depois, na mesma faixa de rolamento pela qual estou seguindo, um motoqueiro conduz uma criança de uns 8 anos, na garupa. Segue a uma baixa velocidade, numa via em que os veículos seguem mais velozmente. Talvez suponha que assim protege a criança. Assumo o papel de escudo por alguns poucos quilômetros, até que ele entra por outra via, e eu posso continuar. Mais à frente, um pouco, há obras no canteiro central da via, e as máquinas ocupam a faixa de rolamento central. À direita, uma senhora parou o carro para conversar com alguém na calçada. Todo o fluxo da via em pleno movimento vai se ajeitando na faixa de rolamento central. Os motoqueiros teimam em driblar todos os carros, tentando furar os vãos para passar à frente. Buzinas, mais irritação. Depois da curva, um motoqueiro se aproxima do carro, por trás. Pelo retrovisor o observo. Parece galopar um animal selvagem campo afora. Parece encarnar o espírito de algum bravo herói com uma missão outorgada pelos deuses, o que o impele a superar todos os demais. Por isso mesmo, ele corta meu carro pela direita, contra uma calçada e carros estacionados. Faz rapidamente uma diagonal à esquerda, e, ato contínuo, atravessa a via à frente sem parar, entre um carro que sobe e um caminhão que desce. Já está distante, do outro lado do fluxo. Vários outros motoqueiros passam por mim, membros da mesma legião, com o mesmo comportamento. Quando chego ao meu destino, tenho sempre a impressão de ter acumulado alguns pontos na corrida de obstáculos, e fico feliz por não ter me deparado com uma placa: “Game over”.