sábado, 21 de novembro de 2015

Sobre ler e sobre escrever, num sistema marcadamente produtivista

Para a Koyziña, 
também conhecida como Alzira, minha querida,
 que fica cansada só de ver tanta letrinha...
 prá que tanta?


Não vou tratar das dores e mal-estares da sociedade marcadamente produtivista na qual vivemos, e de cujo princípio nos tornamos reféns. Isso ainda me transborda, e não consigo alinhavar muitas linhas de raciocínio a respeito. Neste momento, apenas ouso chamar ao foco um pequeno e insignificante recorte desse contexto, uma das traduções desse princípio produtivista na vida acadêmica, seja de docentes, seja de discentes.

No Sistema Nacional de Pós-Graduação há uma pressão, em contínuo crescente, sobre professores e estudantes, para que produzam(os). Desenvolvem-se sistemas de avaliação que, de um lado, criam as condições coercitivas para que a produção aconteça. Os mesmos sistemas, de outro lado, verificam a idoneidade e qualidade dos meios pelos quais essas produções são veiculadas. Ou seja: não basta escrever artigos, é preciso tê-los avaliados e aprovados nos meios qualificados pelos sistemas de avaliação geridos pelas agências reguladoras e financiadoras dos sistemas.

Há uma corrida por publicações. Acumulam-se periódicos nominados como científicos, em versões impressa e online, lutando por um lugar ao sol, de preferência, lugar ao sol A1 ou A2... talvez admita-se, provisoriamente, B1...[1].  Acumulam-se artigos, e mais artigos, cujos dados são lançados nos relatórios de produção. Acumulam-se livros que reúnem capítulos assinados por autores diversos, nem sempre em interlocução, mas irmanados na urgência de publicar. Acumulam-se trabalhos de conclusão de curso, dissertações, teses, todas disponibilizadas online, quase nunca lidas.

Textos e mais textos... Quase nunca lidos...

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(Pausa para um trecho do conto Fim do mundo do fim, de Julio Cortázar...)

Como os escribas continuarão, os poucos leitores que no mundo havia vão mudar de profissão e adotar também a de escriba. Cada vez mais os países serão compostos por escribas e por fábricas de papel e de tinta, os escribas de dia e as máquinas de noite para imprimir o trabalho dos escribas. Primeiro, as bibliotecas transbordarão para fora das casas; então, as prefeituras resolvem (já estamos vendo tudo) sacrificar as áreas de recreação infantil para ampliar as bibliotecas. Depois sucumbem os teatros, as maternidades, os matadouros, as cantinas, os hospitais. Os pobres aproveitam os livros como tijolos, grudam-nos com cimento e constroem paredes de livros e moram em casebres de livros. Então acontece que os livros transbordam das cidades e entram nos campos, vão esmagando os trigais e os campos de girassóis, o Ministério da Viação mal consegue que os caminhos fiquem desimpedidos entre duas paredes altíssimas de livros. Às vezes uma parede cede e há espantosas catástrofes automobilísticas. Os escribas trabalham sem trégua porque a humanidade respeita as vocações e os impressos já chegam à beira do mar. O Presidente da República telefona para os presidentes das outras repúblicas e propõe inteligentemente jogar no mar o excedente de livros, o que se faz ao mesmo tempo em todas as costas do mundo. Assim os escribas siberianos vêem seus impressos jogados no oceano glacial e os escribas indonésios etc. Isto permite aos escribas aumentarem sua produção, porque volta a haver espaço na terra para armazenar livros. Não pensam que o mar tem fundo, e que no fundo do mar começam a amontoar-se os impressos, primeiro em forma de pasta aglutinante, depois em forma de pasta consolidante e, finalmente, como um chão resistente embora viscoso, que sobe diariamente alguns metros e acabará por chegar à superfície. Então, muitas águas invadem muitas terras, produz-se uma nova distribuição de continentes e oceanos, e diversas repúblicas são substituídas por lagos e penínsulas, presidentes de outras repúblicas vêem abrir-se imensos territórios a suas ambições, etc. 
(...)

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(finda a pausa, retomando o fio da meada...) 

Assusta-me o fato de que não haja nenhuma expectativa quanto à leitura (não é possível ler tudo quanto seja publicado, nem há interesse: a maior parte se repete, diz do mesmo e da mesma maneira...). É claro, há um pressuposto: para escrever um texto, seu autor terá lido outros autores, tanto que ao final, nas referências, fará uma relação daqueles cujo pensamento contribuiu para apoiar sua linha de raciocínio. No entanto, eu contesto esse pressuposto. Desconfio, quase sempre, que essas leituras sejam aligeiradas, sob pressão, para atender o ritmo de produção exigido, para não perder o espaço de visibilidade, para ganhar melhores posições no cenário das publicações... para, quem sabe, passar de B1 para A2...

Foi assim que me surpreendi quando, fazendo um despretensioso curso de licenciatura a distância (sem maiores expectativas no quesito qualidade das discussões...), descobri que, na lista das atividades complementares a serem cumpridas (atividades culturais em geral, cursos de extensão, eventos, etc.), eu poderia incluir relatos de livros que li no período (bem como de filmes que tenha visto, além de espetáculos). De livros que tenha lido? Na dúvida, retomei o item, e solicitei à tutoria orientação a respeito. Sim: minha interpretação estava correta. Eu poderia relatar o conteúdo de livros que tenha lido no período, estabelecendo relações com o conteúdo do curso, e isto me valem horas para o cumprimento semestral das atividades complementares.

Feliz surpresa. Terá valido o curso saber que momentos de pausa, de livre leitura, nalguma instituição, tem atribuído valor no processo de formação.

Enquanto isso, sob a pressão dos sistemas de avaliação de produtividade das graduações e pós-graduações, escrevem-se inumeráveis textos para ninguém... apenas para constar nos relatórios de produção...






[1] Escala de avaliação à qual periódicos de artigos científicos são submetidos, gerida pelo sistema WebQualis Periódicos, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A escala vai de A1 a C, sendo que A1 é a avaliação máxima, e C a avaliação mínima, além das produções e periódicos sem qualificação, que sequer entram nessa escala (em outras palavras, é como se não existissem...). Livros, eventos e produção artística também têm sistemas próprios de avaliação, chamados Qualis Livros, Qualis Eventos, e Qualis Artístico, todos pautados pela mesma lógica.








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