Para a Koyziña,
também conhecida como Alzira, minha querida,
que fica cansada só de ver tanta letrinha...
prá que tanta?
Não vou tratar das dores e mal-estares da sociedade
marcadamente produtivista na qual vivemos, e de cujo princípio nos tornamos reféns. Isso ainda me transborda, e não consigo alinhavar muitas linhas de raciocínio a respeito. Neste momento, apenas ouso chamar ao foco um pequeno e insignificante
recorte desse contexto, uma das traduções desse princípio produtivista na vida
acadêmica, seja de docentes, seja de discentes.
No Sistema Nacional de Pós-Graduação há uma pressão, em contínuo crescente, sobre
professores e estudantes, para que produzam(os). Desenvolvem-se sistemas de
avaliação que, de um lado, criam as condições coercitivas para que a produção aconteça. Os mesmos sistemas, de outro lado, verificam a idoneidade e qualidade dos meios pelos quais essas produções são veiculadas. Ou seja: não
basta escrever artigos, é preciso tê-los avaliados e aprovados nos meios
qualificados pelos sistemas de avaliação geridos pelas agências reguladoras e
financiadoras dos sistemas.
Há uma corrida por publicações. Acumulam-se periódicos nominados como científicos, em
versões impressa e online, lutando por um lugar ao sol, de preferência,
lugar ao sol A1 ou A2... talvez admita-se, provisoriamente, B1...[1]. Acumulam-se artigos, e mais artigos, cujos dados são lançados nos relatórios de
produção. Acumulam-se livros que reúnem capítulos assinados por autores
diversos, nem sempre em interlocução, mas irmanados na urgência de publicar. Acumulam-se trabalhos de conclusão de curso, dissertações, teses, todas disponibilizadas
online, quase nunca lidas.
Textos e mais textos... Quase nunca lidos...
(Pausa para um trecho do conto Fim do mundo do fim, de Julio Cortázar...)
Como
os escribas continuarão, os poucos leitores que no mundo havia vão mudar de
profissão e adotar também a de escriba. Cada vez mais os países serão compostos
por escribas e por fábricas de papel e de tinta, os escribas de dia e as
máquinas de noite para imprimir o trabalho dos escribas. Primeiro, as
bibliotecas transbordarão para fora das casas; então, as prefeituras resolvem
(já estamos vendo tudo) sacrificar as áreas de recreação infantil para ampliar
as bibliotecas. Depois sucumbem os teatros, as maternidades, os matadouros, as
cantinas, os hospitais. Os pobres aproveitam os livros como tijolos, grudam-nos
com cimento e constroem paredes de livros e moram em casebres de livros. Então
acontece que os livros transbordam das cidades e entram nos campos, vão
esmagando os trigais e os campos de girassóis, o Ministério da Viação mal
consegue que os caminhos fiquem desimpedidos entre duas paredes altíssimas de
livros. Às vezes uma parede cede e há espantosas catástrofes automobilísticas.
Os escribas trabalham sem trégua porque a humanidade respeita as vocações e os
impressos já chegam à beira do mar. O Presidente da República telefona para os
presidentes das outras repúblicas e propõe inteligentemente jogar no mar o excedente
de livros, o que se faz ao mesmo tempo em todas as costas do mundo. Assim os
escribas siberianos vêem seus impressos jogados no oceano glacial e os escribas
indonésios etc. Isto permite aos escribas aumentarem sua produção, porque volta
a haver espaço na terra para armazenar livros. Não pensam que o mar tem fundo,
e que no fundo do mar começam a amontoar-se os impressos, primeiro em forma de
pasta aglutinante, depois em forma de
pasta consolidante e, finalmente, como um chão resistente embora viscoso, que
sobe diariamente alguns metros e acabará por chegar à superfície. Então, muitas
águas invadem muitas terras, produz-se uma nova distribuição de continentes e
oceanos, e diversas repúblicas são substituídas por lagos e
penínsulas, presidentes de outras repúblicas vêem abrir-se imensos territórios
a suas ambições, etc.
(...)
(finda a pausa, retomando o fio da meada...)
Assusta-me o fato de que não haja nenhuma expectativa quanto
à leitura (não é possível ler tudo quanto seja publicado, nem há interesse: a maior parte se repete, diz do mesmo e da mesma maneira...). É claro, há um pressuposto: para escrever um texto, seu autor terá
lido outros autores, tanto que ao final, nas referências, fará uma relação
daqueles cujo pensamento contribuiu para apoiar sua linha de raciocínio. No
entanto, eu contesto esse pressuposto. Desconfio, quase sempre, que essas
leituras sejam aligeiradas, sob pressão, para atender o ritmo de produção exigido,
para não perder o espaço de visibilidade, para ganhar melhores posições no
cenário das publicações... para, quem sabe, passar de B1 para A2...
Foi assim que me surpreendi quando, fazendo um despretensioso curso de licenciatura
a distância (sem maiores expectativas no quesito qualidade das discussões...),
descobri que, na lista das atividades complementares a serem cumpridas (atividades culturais em
geral, cursos de extensão, eventos, etc.), eu poderia incluir relatos de livros
que li no período (bem como de filmes que tenha visto, além de espetáculos). De livros que tenha lido? Na dúvida, retomei o item, e solicitei à tutoria orientação a respeito. Sim: minha interpretação estava correta. Eu poderia relatar o
conteúdo de livros que tenha lido no período, estabelecendo relações com o conteúdo do curso, e isto
me valem horas para o cumprimento semestral das atividades complementares.
Feliz surpresa. Terá valido o curso saber que momentos de
pausa, de livre leitura, nalguma instituição, tem atribuído valor no processo de
formação.
Enquanto isso, sob a pressão dos sistemas de avaliação de produtividade das graduações e pós-graduações,
escrevem-se inumeráveis textos para ninguém... apenas para constar nos
relatórios de produção...
[1]
Escala de avaliação à qual periódicos de artigos científicos são submetidos, gerida
pelo sistema WebQualis Periódicos, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES). A escala vai de A1 a C, sendo que A1 é a avaliação
máxima, e C a avaliação mínima, além das produções e periódicos sem
qualificação, que sequer entram nessa escala (em outras palavras, é como se não existissem...). Livros, eventos e produção artística também têm sistemas próprios
de avaliação, chamados Qualis Livros, Qualis Eventos, e Qualis Artístico, todos pautados pela mesma lógica.
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