Foto: Ruth dos Santos Martins
Os fluxos da cidade parecem caóticos, suas dinâmicas parecem
escapar a maiores sistematizações. Enganam-se os que acreditem nisso. A cidade
observa regras e critérios rígidos, que sistematizam a vida muito além das leis
e normas explicitadas pelas jurisdições vigentes. Quando algum indivíduo ocupa
lugar não previsto em sua malha, causa espanto e desconforto. Desorganiza o
quotidiano. Desloca percursos...
Nas cidades, as pessoas habitam apartamentos, casas e
barracos. Há os que habitam as calçadas, nas ruas, ou recantos em viadutos e
pontes. A cidade prevê, em sua própria estrutura, a existência dos moradores de
rua. Por isso mesmo, eles permanecem invisíveis aos demais, na maior parte do
tempo, como se houvesse paredes em torno deles.
Passemos, pois, à cena central deste relato: uma quadra
residencial, com edifícios de apartamentos, jardins entre os edifícios, e vias
internas de acesso, para carros, aos estacionamentos locais. Numa lateral,
prédios comerciais, com alguns apartamentos minúsculos nas sobrelojas, habitados
por alguns comerciantes locais. Pelas calçadas, transitam passantes que chegam para
suas jornadas de trabalho, ou retornam ao final delas. Seguem, também,
moradores que levam seus cães a passear, ou fazem caminhadas para sair da
letargia sedentária à qual a maior parte das pessoas está submetida. Alguns ambulantes,
eventualmente, vendem frutas e verduras, instalados provisoriamente à beira de
alguma das vias internas. Muitos pássaros habitam as muitas árvores que dão sombra
generosa, e passeiam entre as plantas floridas, em busca de alimento. Eventualmente,
algum morador de rua se instala à beira dos edifícios comerciais. Logo a administração
pública providencia seu deslocamento para um centro de atendimento social.
Esse pode ser considerado um quadro protocolar dentro dos
padrões de normalidade para o fragmento da cidade trazido ao foco, neste texto.
Mas houve um dia quando uma personagem que não se enquadra
em nenhum desses perfis passou a habitar um espaço nem um pouco usual. Um rapaz
de porte saudável instalou uma barraca bem equipada sob os galhos de um pé de buganvília
florido, próximo à calçada entre o último edifício residencial da quadra e a
comercial local. Chegou, assim, vindo ninguém sabe de onde, escolheu o espaço
bucólico, e fixou morada. Montou a barraca, organizou uma tenda um pouco mais
ampla, para proteger seus pertences instalados num carrinho desses usados em
supermercado, com rodas adaptadas e amortecedor, o que facilitava seu
deslocamento. Na varanda improvisada, colocou uma banquetinha dobrável.
Os moradores ficaram surpresos com a novidade. Não se
tratava de um morador de rua. Nem ambulante, nem passante, nem trabalhador
contratado para alguma empreitada na área pública. Inicialmente, acharam que
fosse passageiro, mas os dias foram passando, e o morador foi ficando por ali.
Os olhos curiosos começaram a tentar decifrar a estrutura
montada pelo novo vizinho, além do que estava mais explícito. Parecia haver uma
bateria alimentada por energia solar. Assim, o morador operava vários aparatos,
como televisão de pequeno porte, computador, telefone. Todos respiravam
aliviados pelo fato de se tratar de alguém extremamente civilizado, que não
fazia barulho, não emitia qualquer sinal que causasse desconforto, além de
limpar suas instalações, depositando, diariamente, o lixo no lugar adequado
para a recolha pelo sistema público de limpeza. Nos dias que ali permaneceu,
não fumou, não bebeu.
Mas, ao mesmo tempo, os moradores se inquietavam, perguntando-se o que
estaria fazendo ali uma pessoa com tal perfil: portador de equipamentos, com
postura virtuosa, civilizada. Tratava-se de uma situação toda fora do lugar. Indecifrável. Além disso, sentiam certo receio, pois de
onde ele se instalara era possível observar a movimentação nas unidades residenciais do prédio.
Daí a sensação de insegurança.
Apesar de tudo, ninguém foi ter com o novo morador. Nem para dar as boas vindas, nem para arguir sua identidade, nem para pedir que saísse dali. Apenas um membro de uma igreja neopentecostal das proximidades resolveu oferecer-lhe
a oportunidade de entregar-se ao Cristo, como única e talvez última chance de
ser salvo. À noite, pela primeira vez, o morador puxou conversa com o porteiro
do prédio contíguo à sua morada. Estava irritado com a tentativa de conversão. Contou
que, em resposta, teria oferecido ao crente uma caixa de fósforos para queimar
as páginas da sua Bíblia. Entre curioso e cioso de seu ofício, o porteiro
decidiu manter-se reservado, e não avançar muito naquela conversa. No que não
foi importunado pelo morador extra protocolar.
Poucos dias depois do episódio, ninguém sabe por qual razão,
o rapaz desmontou a barraca, organizou todos os seus pertences dentro do tal
carrinho de supermercado adaptado, e seguiu, pela calçada. Primeiro desceu, na
direção leste. Pouco depois retornou, voltando rumo oeste. E foi-se. Dele não
se teve mais notícia.
Aquele fragmento da cidade retomou sua normalidade. Mas ao
se olhar para a área próxima ao pé de buganvília, os moradores do edifício contíguo
imaginam a barraca montada. Ecos da perplexidade que tomou a todos ainda
reverberam nessa lembrança. Ecos de um viver disciplinado pela cidade, a ponto
de não se ter consciência sobre as grades que o cercam, e os limites que privam
seus movimentos.
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