sábado, 7 de novembro de 2015

Coisas que se pode perguntar com a chegada de um vizinho inusitado



Foto: Ruth dos Santos Martins


Os fluxos da cidade parecem caóticos, suas dinâmicas parecem escapar a maiores sistematizações. Enganam-se os que acreditem nisso. A cidade observa regras e critérios rígidos, que sistematizam a vida muito além das leis e normas explicitadas pelas jurisdições vigentes. Quando algum indivíduo ocupa lugar não previsto em sua malha, causa espanto e desconforto. Desorganiza o quotidiano. Desloca percursos...

Nas cidades, as pessoas habitam apartamentos, casas e barracos. Há os que habitam as calçadas, nas ruas, ou recantos em viadutos e pontes. A cidade prevê, em sua própria estrutura, a existência dos moradores de rua. Por isso mesmo, eles permanecem invisíveis aos demais, na maior parte do tempo, como se houvesse paredes em torno deles.

Passemos, pois, à cena central deste relato: uma quadra residencial, com edifícios de apartamentos, jardins entre os edifícios, e vias internas de acesso, para carros, aos estacionamentos locais. Numa lateral, prédios comerciais, com alguns apartamentos minúsculos nas sobrelojas, habitados por alguns comerciantes locais. Pelas calçadas, transitam passantes que chegam para suas jornadas de trabalho, ou retornam ao final delas. Seguem, também, moradores que levam seus cães a passear, ou fazem caminhadas para sair da letargia sedentária à qual a maior parte das pessoas está submetida. Alguns ambulantes, eventualmente, vendem frutas e verduras, instalados provisoriamente à beira de alguma das vias internas. Muitos pássaros habitam as muitas árvores que dão sombra generosa, e passeiam entre as plantas floridas, em busca de alimento. Eventualmente, algum morador de rua se instala à beira dos edifícios comerciais. Logo a administração pública providencia seu deslocamento para um centro de atendimento social.

Esse pode ser considerado um quadro protocolar dentro dos padrões de normalidade para o fragmento da cidade trazido ao foco, neste texto.

Mas houve um dia quando uma personagem que não se enquadra em nenhum desses perfis passou a habitar um espaço nem um pouco usual. Um rapaz de porte saudável instalou uma barraca bem equipada sob os galhos de um pé de buganvília florido, próximo à calçada entre o último edifício residencial da quadra e a comercial local. Chegou, assim, vindo ninguém sabe de onde, escolheu o espaço bucólico, e fixou morada. Montou a barraca, organizou uma tenda um pouco mais ampla, para proteger seus pertences instalados num carrinho desses usados em supermercado, com rodas adaptadas e amortecedor, o que facilitava seu deslocamento. Na varanda improvisada, colocou uma banquetinha dobrável.

Os moradores ficaram surpresos com a novidade. Não se tratava de um morador de rua. Nem ambulante, nem passante, nem trabalhador contratado para alguma empreitada na área pública. Inicialmente, acharam que fosse passageiro, mas os dias foram passando, e o morador foi ficando por ali.

Os olhos curiosos começaram a tentar decifrar a estrutura montada pelo novo vizinho, além do que estava mais explícito. Parecia haver uma bateria alimentada por energia solar. Assim, o morador operava vários aparatos, como televisão de pequeno porte, computador, telefone. Todos respiravam aliviados pelo fato de se tratar de alguém extremamente civilizado, que não fazia barulho, não emitia qualquer sinal que causasse desconforto, além de limpar suas instalações, depositando, diariamente, o lixo no lugar adequado para a recolha pelo sistema público de limpeza. Nos dias que ali permaneceu, não fumou, não bebeu.

Mas, ao mesmo tempo, os moradores se inquietavam, perguntando-se o que estaria fazendo ali uma pessoa com tal perfil: portador de equipamentos, com postura virtuosa, civilizada. Tratava-se de uma situação toda fora do lugar. Indecifrável. Além disso, sentiam certo receio, pois de onde ele se instalara era possível observar a movimentação nas unidades residenciais do prédio. Daí a sensação de insegurança.

Apesar de tudo, ninguém foi ter com o novo morador. Nem para dar as boas vindas, nem para arguir sua identidade, nem para pedir que saísse dali. Apenas um membro de uma igreja neopentecostal das proximidades resolveu oferecer-lhe a oportunidade de entregar-se ao Cristo, como única e talvez última chance de ser salvo. À noite, pela primeira vez, o morador puxou conversa com o porteiro do prédio contíguo à sua morada. Estava irritado com a tentativa de conversão. Contou que, em resposta, teria oferecido ao crente uma caixa de fósforos para queimar as páginas da sua Bíblia. Entre curioso e cioso de seu ofício, o porteiro decidiu manter-se reservado, e não avançar muito naquela conversa. No que não foi importunado pelo morador extra protocolar.

Poucos dias depois do episódio, ninguém sabe por qual razão, o rapaz desmontou a barraca, organizou todos os seus pertences dentro do tal carrinho de supermercado adaptado, e seguiu, pela calçada. Primeiro desceu, na direção leste. Pouco depois retornou, voltando rumo oeste. E foi-se. Dele não se teve mais notícia.

Aquele fragmento da cidade retomou sua normalidade. Mas ao se olhar para a área próxima ao pé de buganvília, os moradores do edifício contíguo imaginam a barraca montada. Ecos da perplexidade que tomou a todos ainda reverberam nessa lembrança. Ecos de um viver disciplinado pela cidade, a ponto de não se ter consciência sobre as grades que o cercam, e os limites que privam seus movimentos.






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