domingo, 20 de setembro de 2015

Sobre borboletas e baratas

Para Afonso Medeiros

Meu querido Prof. Afonso Medeiros compartilhou, recentemente, uma frase com a seguinte provocação: “Se você esmagar uma barata, você é um herói. Se você esmagar uma borboleta, você é um vilão. A moral tem critério estético.” Para colocar a provocação em negrito, acrescentou: "Um exemplo bem banal do porque, para alguns filósofos, a estética precede a ética..." 

Como as baratas têm ocupado uma parte importante dessas reflexões que vão me tomando quando o pensamento vaga, aparentemente à toa (mas só aparentemente, pois ao fazê-lo vai tecendo possibilidades outras no exercício de indagar sobre o mundo), a provocação me arrebatou. Por acaso, à noite, na sala da minha casa, lá vinha, desde a varanda, uma barata adulta, ligeira, ágil, fazendo uma curva, indo se esconder por baixo de uma prateleira. Todos essas passos foram executados de modo mais rápido que o meu reflexo, antes de eu constatar que eu estava descalço e não tinha nada à mão para enfrentá-la. Iniciaria-se, então, uma atividade divertida na noite: o duelo entre mim e a barata.

Definitivamente, baratas não são rudes, monstruosas, grotescas. Ao contrário, são inteligentes, atentas, montam estratégias. Além disso, pesquisadores (sim, há quem se interesse por pesquisar a vida das baratas!) têm constatado que são gregárias não num sentido caótico como possa nos parecer (estupidamente antropocêntricos que somos), mas organizadas em núcleos familiares. E não suportam ficar sozinhas. Se alguém quiser torturar uma barata até à morte, coloque-a numa solitária. Ela não resistirá à tristeza da solidão. Pois bem: todas essas coisas me ocorrem sempre que eu sigo para algum duelo com uma barata.

Essa, especificamente, depois de me ter escaneado, ficou debaixo do móvel, na espreita. Se eu me distraísse, iniciava uma fuga, fazendo corridas até certa distância. Avaliando o insucesso de sua tentativa, voltava ao abrigo, mais rápida que da primeira vez. Por vezes, eu a percebia à sombra, imóvel, me olhando. Qualquer movimento, e de novo desaparecia num vão qualquer. Sempre à espreita. Ela, escondida, e eu, à luz, já munida de um par de chinelas à mão.

Agora, às minhas ponderações sobre a vida das baratas, veio se somar a outra pergunta: e se fosse uma borboleta? Talvez eu me olvidasse do mundo a observá-la, sem querer que ela deixasse o ambiente... talvez eu até me lembrasse da lagarta feia, sem muito encantamento... mesmo assim, poucas seriam as chances de eu me dispor a um duelo com ela.

Por que? Pensei que, na borboleta, as cores estão separadas, organizadas, simétricas, vívidas, enquanto que, na barata, as cores se misturaram, resultando naquilo que minha avó chamava de cor de burro quando foge. Na borboleta, a dança das cores nos hipnotiza, enquanto que, na barata, o tom marrom da mistura nos afasta, lembrando caos, sujeira, mistura descontrolada...

Buscando a etimologia da palavra estética, chegamos à noção de experiência profunda, ou impactante sobre os sentidos. Ora, uma e outra proporcionam experiências significativas aos nossos sentidos: encantamento e repulsa. O belo e o feio. 

Então o velho filósofo Flusser me vem em auxílio, com suas não menos inquietantes provocações. No livro que compila as últimas aulas ministradas na Alemanha pouco antes de sua morte, ele indaga sobre o sentido e o lugar da arte no cenário contemporâneo. Constrói, então, o fio de seu raciocínio, a partir da ideia de que a arte seja uma experiência capaz mudar nossa percepção do mundo, e de nós mesmos, a partir do modo como impacta os nossos sentidos, ou seja, pela experiência estética. Nesse ponto, ele indaga qual teria sido a obra humana que mais fortemente teria afetado os nossos sentidos, no século XX, de modo a alterar nossa percepção do mundo. E responde: a bomba atômica. Desafiando artistas e estetas, ele constata que a obra de arte mais potente produzida pela humanidade nesse século teria sido a bomba atômica.


imagem encontrada aqui

A visão do cogumelo resultante da bomba é recorrente em nosso imaginário. Aterroriza e seduz ao mesmo tempo. Lembra o quanto somos cruéis, perversos, mesmo quando não admitimos. É a prova cabal da ausência de neutralidade do conhecimento científico. E no artístico também. Escancara a nossa finitude da pior e mais bela forma.

Ao pensar na bomba e nos corpos humanos que se desfazem pelo efeito da radiação, volto à barata, à espreita, debaixo do móvel da sala. Se a bomba pode eliminar a espécie humana, e também as borboletas, no bolo dos 90% das espécies viventes da face do planeta, elas, as baratas, ao menos a maioria delas, teriam mais chances de sobreviver, exatamente pelos hábitos que nos causam repulsa: habitar esgotos, andar por frestas, espreitar às escondidas. E por sua enorme e invejável capacidade de adaptação.

imagem encontrada aqui

A possibilidade de que elas sobrevivam a nós reforçaria o desejo de extingui-las, numa espécie de raiva movida pela inveja, mesmo que de modo não consciente?

Aquela barata, a minha visitante noturna, em particular, poderia até sobreviver à bomba. Mas não sobreviveu ao impacto da minha chinela, depois de uma longa dança de idas e vindas, tentativas frustradas de fugas, e pacientes observações mútuas. Não me sinto heroína. Apenas acrescentei um ponto a mais nos duelos travados com sua espécie, à qual destino profundo respeito. A propósito, nesse duelo, tenho bem menos pontos que elas, vencedoras na maior parte das vezes. Aliás: vencedoras hors concours, pois sobreviverão à nossa espécie!

Nenhuma borboleta veio visitar as flores da minha varanda, ultimamente.

PS.: deliberadamente, esta postagem não tem imagem de borboletas...