Para Afonso Medeiros
Meu querido Prof. Afonso Medeiros compartilhou,
recentemente, uma frase com a seguinte provocação: “Se você esmagar uma barata,
você é um herói. Se você esmagar uma borboleta, você é um vilão. A moral tem
critério estético.” Para colocar a provocação em negrito, acrescentou: "Um exemplo bem banal do porque, para alguns filósofos, a estética precede a ética..."
Como as baratas têm ocupado uma parte importante dessas
reflexões que vão me tomando quando o pensamento vaga, aparentemente à toa (mas
só aparentemente, pois ao fazê-lo vai tecendo possibilidades outras no
exercício de indagar sobre o mundo), a provocação me arrebatou. Por acaso, à
noite, na sala da minha casa, lá vinha, desde a varanda, uma barata adulta,
ligeira, ágil, fazendo uma curva, indo se esconder por baixo de uma prateleira. Todos essas passos foram executados de modo mais rápido que o meu reflexo, antes de eu constatar que eu estava descalço e não
tinha nada à mão para enfrentá-la. Iniciaria-se, então, uma atividade divertida na
noite: o duelo entre mim e a barata.
Definitivamente, baratas não são rudes, monstruosas,
grotescas. Ao contrário, são inteligentes, atentas, montam estratégias. Além disso,
pesquisadores (sim, há quem se interesse por pesquisar a vida das baratas!) têm
constatado que são gregárias não num sentido caótico como possa nos parecer (estupidamente antropocêntricos que somos), mas organizadas em núcleos familiares. E não suportam
ficar sozinhas. Se alguém quiser torturar uma barata até à morte, coloque-a
numa solitária. Ela não resistirá à tristeza da solidão. Pois bem: todas essas
coisas me ocorrem sempre que eu sigo para algum duelo com uma barata.
Essa, especificamente, depois de me ter escaneado, ficou
debaixo do móvel, na espreita. Se eu me distraísse, iniciava uma fuga, fazendo
corridas até certa distância. Avaliando o insucesso de sua tentativa, voltava
ao abrigo, mais rápida que da primeira vez. Por vezes, eu a percebia à sombra,
imóvel, me olhando. Qualquer movimento, e de novo desaparecia num vão qualquer.
Sempre à espreita. Ela, escondida, e eu, à luz, já munida de um par de chinelas à mão.
Agora, às minhas ponderações sobre a vida das baratas, veio
se somar a outra pergunta: e se fosse uma borboleta? Talvez eu me olvidasse do
mundo a observá-la, sem querer que ela deixasse o ambiente... talvez eu até me
lembrasse da lagarta feia, sem muito encantamento... mesmo assim, poucas seriam as chances
de eu me dispor a um duelo com ela.
Por que? Pensei que, na borboleta, as cores estão separadas,
organizadas, simétricas, vívidas, enquanto que, na barata, as cores se
misturaram, resultando naquilo que minha avó chamava de cor de burro quando
foge. Na borboleta, a dança das cores nos hipnotiza, enquanto que, na barata, o
tom marrom da mistura nos afasta, lembrando caos, sujeira, mistura
descontrolada...
Buscando a etimologia da palavra estética, chegamos à noção
de experiência profunda, ou impactante sobre os sentidos. Ora, uma e outra
proporcionam experiências significativas aos nossos sentidos: encantamento e
repulsa. O belo e o feio.
Então o velho filósofo Flusser me vem em auxílio, com suas não menos inquietantes provocações. No livro que compila as últimas aulas ministradas na Alemanha pouco antes de sua morte, ele indaga sobre o sentido e o lugar da arte no cenário contemporâneo. Constrói, então, o fio de seu raciocínio, a partir da ideia de que a arte seja uma experiência capaz mudar nossa percepção do mundo, e de nós mesmos, a partir do modo como impacta os nossos sentidos, ou seja, pela experiência estética. Nesse ponto, ele indaga qual teria sido a obra humana que mais fortemente teria afetado os nossos sentidos, no século XX, de modo a alterar nossa percepção do mundo. E responde: a bomba atômica. Desafiando artistas e estetas, ele constata que a obra de arte mais potente produzida pela humanidade nesse século teria sido a bomba atômica.
Então o velho filósofo Flusser me vem em auxílio, com suas não menos inquietantes provocações. No livro que compila as últimas aulas ministradas na Alemanha pouco antes de sua morte, ele indaga sobre o sentido e o lugar da arte no cenário contemporâneo. Constrói, então, o fio de seu raciocínio, a partir da ideia de que a arte seja uma experiência capaz mudar nossa percepção do mundo, e de nós mesmos, a partir do modo como impacta os nossos sentidos, ou seja, pela experiência estética. Nesse ponto, ele indaga qual teria sido a obra humana que mais fortemente teria afetado os nossos sentidos, no século XX, de modo a alterar nossa percepção do mundo. E responde: a bomba atômica. Desafiando artistas e estetas, ele constata que a obra de arte mais potente produzida pela humanidade nesse século teria sido a bomba atômica.
A visão do cogumelo resultante da bomba é recorrente em
nosso imaginário. Aterroriza e seduz ao mesmo tempo. Lembra o quanto somos
cruéis, perversos, mesmo quando não admitimos. É a prova cabal da ausência de neutralidade do conhecimento científico. E no artístico também. Escancara a nossa
finitude da pior e mais bela forma.
Ao pensar na bomba e nos corpos humanos que se desfazem pelo
efeito da radiação, volto à barata, à espreita, debaixo do móvel da sala. Se a
bomba pode eliminar a espécie humana, e também as borboletas, no bolo dos 90%
das espécies viventes da face do planeta, elas, as baratas, ao menos a maioria
delas, teriam mais chances de sobreviver, exatamente pelos hábitos que nos causam
repulsa: habitar esgotos, andar por frestas, espreitar às escondidas. E por sua enorme e invejável capacidade de
adaptação.
A possibilidade de que elas sobrevivam a nós reforçaria o desejo
de extingui-las, numa espécie de raiva movida pela inveja, mesmo que de modo
não consciente?
Aquela barata, a minha visitante noturna, em particular,
poderia até sobreviver à bomba. Mas não sobreviveu ao impacto da minha chinela,
depois de uma longa dança de idas e vindas, tentativas frustradas de fugas, e
pacientes observações mútuas. Não me sinto heroína. Apenas acrescentei um ponto
a mais nos duelos travados com sua espécie, à qual destino profundo respeito. A propósito, nesse duelo, tenho bem menos pontos que elas, vencedoras na maior parte das vezes. Aliás: vencedoras hors concours, pois sobreviverão à nossa espécie!
Nenhuma borboleta veio visitar as flores da
minha varanda, ultimamente.
Alfredo Teixeira Antonio, por um gesto desastrado, apaguei seu comentário, e não consegui recuperá-lo. Me desculpe.
ExcluirAs últimas palestras de Vilém Flusser estão publicadas no livro intitulado "Comunicologia: reflexões sobre o futuro", já publicado no Brasil.