quinta-feira, 28 de maio de 2020

Cindidos















imagem de arquivo pessoal



 imagem encontrada aqui


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Nasci na fronteira. A fronteira é parte constituinte do que sou. Eu não glamourizo a fronteira: ela é sempre tensa, prenhe de conflitos, mas também nos ensina a transitar entre as diferenças, na diversidade. Na fronteira se formam trincheiras, em tempos de guerra. Mas também se constroem as feiras de compras e vendas, as trilhas que levam a encontros, a falares de muitas línguas.

A fronteira, de onde eu vim, é marcada pela guerra. A guerra mais perversa impetrada na América do Sul, que resultou num genocídio do qual não se pode olvidar. As memórias da guerra pulsam em territórios insuspeitados. Mas sobre ela constroem-se, ou buscam-se construir relações outras, capazes de cultivar esperanças e alegrias.

Na minha infância, uma das alegrias tinha o nome de coquito: um biscoito redondo, crocante, comprado no Paraguai, numa padaria que ficava muito próxima da nossa casa, do lado brasileiro.

Muitos anos mais tarde, já na adolescência, habitante do Planalto Central, caminhava pela Esplanada dos Ministérios, com a sensação de mergulho nos verdes e azuis daquela paisagem imensa. Avistar os edifícios logo ali adiante, e descobrir que tinham enganado minha visão no tocante às lonjuras dava uma sensação de liberdade embriagante. De deslimite. Não por acaso a capital federal também foi escola de encontro com o outro: todos não éramos dali, e experimentávamos esses deslimites, em nossas diferenças.

De algum tempo para cá, isso tudo ficou fraturado. A dor que sinto hoje, provocada por essa fratura, sequestra qualquer esperança de que, em algum momento, se possa recuperar a possibilidade do encontro na diversidade pautado pela ética, pelo respeito, pela civilidade.

Visualmente, posso localizar essa fratura em dois momentos.

O primeiro, ocorrido em 2016, quando, em razão das manifestações populares durante as votações para o afastamento da Presidenta da República, foi erguida uma parede longitudinal ao meio da Esplanada dos Ministérios. Tinha o objetivo de evitar o enfrentamento corporal de manifestantes enraivecidos, já incapazes de encontrar o outro.

Ainda sem essa informação, passava distraída pelo lugar, quando me deparei com a parede. A parede fraturou a sensação de lonjuras, de deslimite, de possibilidades múltiplas. A parede fraturou minha relação com aquele lugar. Desde então, entendi que éramos gentes cindidas, e que talvez sequer tivéssemos uma ideia de como resolver esta cisão. Talvez muitas gentes prefiram mesmo continuar cindidas...

Quatro anos depois, nos encontramos em meio a uma guerra que vai muito além de fronteiras geopolíticas, e da qual depende nossa sobrevivência. Uma pandemia provocada por um vírus sobre o qual quase nada se sabe. E voltamos ao cenário político local, em que nos deparamos com uma política nacional construída a partir da cisão. Assim, em estado de guerra em razão da pandemia, precisamos nos salvar, mas nos encontramos num cenário com aprofundamento das fraturas visualizadas desde a construção daquela parede em plena Esplanada nos Ministérios.

Assustamo-nos diante da publicação de cada novo relatório do número de mortos. "No hay muerto que no me duela", cantarola Jorge Drexler, "No hay un bando ganador... No hay nada más que dolor, y otra vida que se vuela..." Superamos já todos os países em número de mortes diárias. Subimos ao podium. Nossas feições são de medo, desalento, desamparo. Recebo mensagens de amigos de outros países. Querem nos fortalecer. Querem dizer que vamos superar. Que somos fortes. E eu já não estou certa disso.

Então me deparo o segundo momento, também traduzido em imagem para compor a narrativa da fratura. O governo paraguaio fechou as fronteiras. Entre as duas cidades de onde eu venho, foi aberta uma vala, foram estendidos fios de arames farpados e colocados pneus nas passagens. Guardas armados garantem a preservação da integridade de seus cidadãos, evitando que brasileiros os contaminem com o novo vírus, tendo em conta, sobretudo, o modo caótico com que a questão tem sido tratado do lado de cá das fronteiras.

Vale notar que boa parte dos meus conterrâneos costumava buscar atendimento de saúde do lado paraguaio, dada a precariedade do atendimento público brasileiro, e o caráter mercantil das instituições médicas e hospitalares de natureza privada. Dentre os inumeráveis exemplos, estão os quantos brasileirinhos que foram trazidos à luz em hospitais paraguaios.

Eu não poderia imaginar, no pior dos pesadelos, ou na mais imaginativa distopia, uma cena assim traçada. Nela, já não me seria dado comprar coquitos do outro lado da rua.

Em tempo: a palavra diabo chegou ao português contemporâneo por via do latim diabolus, do grego clássico διάβολος ‎(diábolos), vocábulo constituído pelo prefixo διά ‎(diá) e por βάλλω ‎(bállō), «atirar». O referido prefixo exprime separação, divisão, pelo que diabo, literalmente, indica aquele que desune, que inspira ódio ou inveja. (informações buscadas em Ciberdúvidas da Língua Portuguesa)







terça-feira, 12 de maio de 2020

De pitahayas, mimos e afetos (para o Bruno, meu sempre querido Bruno)



Tempos estranhos, estes. Lembro-me de ter ido à universidade numa quinta-feira. Dei aulas a manhã toda, almocei, e à tarde encontrei com alguns orientandos, resolvi questões administrativas de rotina, preenchi relatórios. Acabei desmarcando um encontro agendado para a sexta-feira. Havia outro agendado para a segunda-feira seguinte, mas confirmaríamos durante o final da semana. Voltei para casa no final da tarde. E não retornei mais à universidade, há mais de 70 dias, mês de maio adentro. 

Tampouco saí da universidade: docentes, estudantes, técnicos e gestores, todos continuamos a trabalhar, desde nossas casas, pelas vias digitais. E já vamos ficando exaustos nesse exercício de compressão de todas as nossas atividades acadêmicas nas janelas dos aparatos tecnológicos das redes digitais de comunicação...

Saudades de encontrar as pessoas queridas pelos corredores, dos debates em sala de aula, dos abraços fraternos... Ah, os abraços!

Dia desses recebi uma mensagem por uma das redes digitais de relacionamento social: tem uma coisa para você na portaria do seu prédio. Seu Walmir, o porteiro, confirmou: um rapaz deixou uma coisa aqui para a senhora.

Coloquei a roupa e o calçado destinados para as breves saídas (cada vez mais raras), deixei o álcool próximo à porta para a desinfecção no retorno, coloquei a máscara de algodão duplo, e desci. Numa sacola, uma pitahaya rosa, enorme. Sorri. Pitahaya é a outra palavra com que, agora, posso nominar o gesto do abraço. Abraço grande, adocicado, que aquece o coração.

Demorei para decidir saboreá-la. Queria que a pitahaya permanecesse ali, no tempo. Afeto que fica.

Para quem ainda não experimentou seu sabor: pitahaya, ou pitaya, ou ainda pitaia, velha conhecida da cultura asteca, é o fruto de algumas espécies de cactos nativos da América Latina. A palavra pitahaya significa “fruta escamosa”, e pertence à língua taína, da família linguística macroarahuacana, que se estende desde a América do Sul, até o Caribe. Sua flor, branca e intensamente perfumada, abre-se apenas durante a noite. Por isso é chamada de rainha da noite.





sexta-feira, 8 de maio de 2020

Dos que habitam esta casa, e sobre um filhote de lagartixa, mais especificamente.




Em fala comum, recorrente, eu diria que sou dona desta casa. "A minha casa" é uma expressão que traduz bem esse sentimento de posse e pertencimento. Ela foi adquirida há pouco mais de 13 anos, desde quando eu a habito. Sou portanto, sua proprietária...

Quanto engano, o meu!

Uma miríade de vidas habita estes aposentos. Algumas passíveis de serem percebidas pela minha visão, quantas outras não! Podemos pensar sobre essas vidas por escalas. Comecemos pelas plantas, muitas das quais eu sou a responsável pelo plantio, mas várias outras vieram sem serem trazidas por mim. Embora, em escala de percepção imediata ao olhar eu possa dizer que são facilmente constatáveis, seu comportamento não, conquanto observem outras escalas temporais. Ou seja, seus movimentos, suas reações seus avanços e recuos não são facilmente observáveis na medida em que exijam outra noção de ciclos temporais. Estão ali, e eu as vejo. Só que não...

Já entre elas, miríades de pequenos seres coabitam, entre os galhos, as terras, os vasos, as flores: desde formigas e pequenos seres voejantes, até os micro-organismos inalcançáveis à minha visão. E eu nem saí da varanda...

Pela casa adentro, mais minúsculas formigas coabitam a casa, mesmo quando eu julgue tê-las extinguido. Pequenos besouros, borboletinhas, insetos de toda sorte, além de mais miríades de micro-organismos... tão ou mais proprietários destes territórios do que eu...

E as lagartixas domésticas constituem um caso à parte. Desde que aqui cheguei, já nem sei com quantas gerações delas terei compartilhado os aposentos, principalmente da sala e biblioteca. Vez ou outra, em períodos razoavelmente espaçados para a minha escala de tempo, deparo-me com uma delas, que foge, assustada. Em tempos de pandemia e distanciamento social, suponho que estejam incomodadas com nossa presença ininterrupta na casa. Perderam, em muito, a possibilidade de circular sem maiores riscos.

Sim, sempre há riscos... O convívio nem sempre é amigável, com consequências diversas, seja para as demais formas de vida, seja para as formas de vida da espécie humana...

Ainda ontem, entrei no sanitário, à noite. Quando acendi a luz, percebi o pequenino ser próximo à porta. Era um filhotinho de lagartixa. Como não fugia à minha presença, cheguei mais perto para observar. Eu esmagara seu rabo, e ela estava colada ao chão. Acho mesmo que não vou esquecer de seus olhos muito negros a saltar do pequeno corpo, fixos em mim. Exercitando, na medida do possível, alguma empatia, me imaginei em seu lugar, e pensei no pânico que estaria sentindo. Com cuidado, fui descolando do chão o rabo esmagado, enquanto a lagartixinha agitava as patinhas, tentando se desvencilhar de mim. Escapou, meio desequilibrada, saiu arrastando a cauda destruída. Parou entre a cesta de roupas e a parede. Ficou ali, paradinha, sem se mover. E eu parada a observá-la, querendo muito que ela sobrevivesse ao desastre provocado por mim.

Algum tempo depois, quando retornei para ver como estava a minha vítima, já não a encontrei. As lagartixas comportam-se assim: muitas vezes fazem-se de mortas, até passar o perigo. Depois fogem, para cuidar de si. Espero, sinceramente, que ela possa restaurar o rabo o mais prontamente! E possamos nos reencontrar em situações menos desastrosas, para ela e para mim...