Nasci na fronteira. A
fronteira é parte constituinte do que sou. Eu não glamourizo a fronteira: ela é
sempre tensa, prenhe de conflitos, mas também nos ensina a transitar entre as
diferenças, na diversidade. Na fronteira se formam trincheiras, em tempos de
guerra. Mas também se constroem as feiras de compras e vendas, as trilhas que
levam a encontros, a falares de muitas línguas.
A fronteira, de onde eu vim, é
marcada pela guerra. A guerra mais perversa impetrada na América do Sul, que
resultou num genocídio do qual não se pode olvidar. As memórias da guerra
pulsam em territórios insuspeitados. Mas sobre ela constroem-se, ou buscam-se
construir relações outras, capazes de cultivar esperanças e alegrias.
Na minha infância, uma das
alegrias tinha o nome de coquito: um biscoito redondo, crocante, comprado no
Paraguai, numa padaria que ficava muito próxima da nossa casa, do lado
brasilense.
Muitos anos mais tarde, já na
adolescência, habitante do Planalto Central, caminhava pela Esplanada dos
Ministérios, com a sensação de mergulho nos verdes e azuis daquela paisagem
imensa. Avistar os edifícios logo ali adiante, e descobrir que tinham enganado
minha visão no tocante às lonjuras dava uma sensação de liberdade embriagante.
De deslimite. Não por acaso a capital federal também foi escola de encontro com
o outro: todos não éramos dali, e experimentávamos esses deslimites, em nossas
diferenças.
De algum tempo para cá, isso
tudo ficou fraturado. A dor que sinto hoje, provocada por essa fratura,
sequestra qualquer esperança de que, em algum momento, se possa recuperar a
possibilidade do encontro na diversidade pautado pela ética, pelo respeito,
pela civilidade.
Visualmente, posso localizar
essa fratura em dois momentos.
O primeiro, ocorrido em 2016,
quando, em razão das manifestações populares durante as votações para o
afastamento da Presidenta da República, foi erguida uma parede longitudinal ao
meio da Esplanada dos Ministérios. Tinha o objetivo de evitar o enfrentamento
corporal de manifestantes enraivecidos, já incapazes de encontrar o outro.
Ainda sem essa
informação, passava distraída pelo lugar, quando me deparei com a parede. A
parede fraturou a sensação de lonjuras, de deslimite, de possibilidades múltiplas.
A parede fraturou minha relação com aquele lugar. Desde então, entendi que
éramos gentes cindidas, e que talvez sequer tivéssemos uma ideia de como
resolver esta cisão. Talvez muitas gentes prefiram mesmo continuar cindidas...
Quatro anos depois, nos
encontramos em meio a uma guerra que vai muito além de fronteiras geopolíticas,
e da qual depende nossa sobrevivência. Uma pandemia provocada por um vírus
sobre o qual quase nada se sabe. E voltamos ao cenário político local, em que
nos deparamos com uma política nacional construída a partir da cisão. Assim, em
estado de guerra em razão da pandemia, precisamos nos salvar, mas nos
encontramos num cenário com aprofundamento das fraturas visualizadas desde a
construção daquela parede em plena Esplanada nos Ministérios.
Assustamo-nos diante da
publicação de cada novo relatório do número de mortos. "No hay muerto que no me duela", cantarola Jorge Drexler, "No hay un bando ganador... No hay nada más que dolor, y otra vida que se vuela..." Superamos já todos os
países em número de mortes diárias. Subimos ao podium. Nossas feições são de
medo, desalento, desamparo. Recebo mensagens de amigos de outros países. Querem
nos fortalecer. Querem dizer que vamos superar. Que somos fortes. E eu já não
estou certa disso.
Então me deparo o segundo
momento, também traduzido em imagem para compor a narrativa da fratura. O
governo paraguaio fechou as fronteiras. Entre as duas cidades de onde eu venho,
foi aberta uma vala, foram estendidos fios de arames farpados e colocados pneus
nas passagens. Guardas armados garantem a preservação da integridade de seus
cidadãos, evitando que brasilenses os contaminem com o novo vírus, tendo em
conta, sobretudo, o modo caótico com que a questão tem sido tratado do lado de
cá das fronteiras.
Vale notar que boa parte dos
meus conterrâneos costumava buscar atendimento de saúde do lado paraguaio, dada
a precariedade do atendimento público brasilense, e o caráter mercantil das
instituições médicas e hospitalares de natureza privada. Dentre os inumeráveis
exemplos, estão os quantos brasilensezinhos trazidos à luz em hospitais
paraguaios.
Eu não poderia imaginar, no
pior dos pesadelos, ou na mais imaginativa distopia, uma cena assim traçada.
Nela, já não me seria dado comprar coquitos do outro lado da rua.
Em tempo 1: a palavra diabo chegou ao português contemporâneo por via do
latim diabolus, do grego clássico διάβολος (diábolos), vocábulo constituído
pelo prefixo διά (diá) e por βάλλω (bállō), «atirar». O referido prefixo
exprime separação, divisão, pelo que diabo, literalmente, indica aquele que
desune, que inspira ódio ou inveja. (informações buscadas em Ciberdúvidas
da Língua Portuguesa)
Em tempo 2: a palavra brasilense resulta do topônimo Brasil+ense, significando a nacionalidade de quem nasce no Brasil. É uma opção intencional em substituição à palavra brasileiro, ou brasileira, usada amplamente e tomada, quase sempre, como única possibilidade. A respeito dessa escolha na escrita, você pode buscar esta postagem: Sobre ser brasilense
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