quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Ontem conheci Jack, um cachorro surdo




Quando era professora no ensino fundamental, e também em contexto hospitalar, trabalhei com várias crianças e jovens surdos. Nunca aprendi a linguagem de sinais, mas também não tive grandes problemas de comunicação. As dificuldades são superadas quando há disposição, de parte a parte, para o encontro.

Lembro-me de um pequeno, no ensino fundamental, que também não dominava LIBRAS, mas fazia leitura labial, e falava. Era uma criança ativa, divertida, integrada. Por isso mesmo, dado a fazer estripulias. Quando alguma coisa dava errada, e ele sabia que levaria uma bronca, desviava o olhar: essa era sua maneira de romper meios de se comunicar comigo, de me dizer “não quero conversa com você”.

Talvez tenha sido a partir do que aprendi com ele, que fortaleci a ideia de que o olhar está diretamente vinculado à atitude de quem ouve, de quem presta atenção no outro, de quem não quer se desviar do assunto em pauta. Mas também ali havia vínculo, comunicação, por meio do revés, da negação.

Tenho saudades de suas invenções, e do modo sem discriminação com que as crianças se relacionavam. Na mesma turma, havia uma menina com tetraplegia. Ele gostava de brincar com a cadeira de rodas dela. Não raro, nos deparávamos com ela, apoiada de qualquer jeito nalgum banco, ou carteira, enquanto ele fazia manobras com a cadeira, para os risos dela.

Parcerias, companheirismos que tiram proveito das diferenças para nos fazer maiores como pessoas. Foi mais ou menos isso que me chamou a atenção no diálogo entre a moça que vinha pela calçada, puxando um cão branco, grandão. Ele insistia em ficar para trás, farejando plantas e troncos de árvore. Ela queria seguir. Puxava, reclamava com ele, que olhava para todos os lados, menos para ela. Ri-me com a cena. Perguntei pelo nome dele. Ela me disse "é Jack, mas ele é surdo, não adianta você chamar; é surdo desde que nasceu!"

Então eu soube que o Jack é conhecido por todos na vizinhança, referido pelo humor e estripulias que protagoniza. Chama a atenção o modo como ele se comunica com a moça com quem convive. Ele a compreende, não se sabe como. Ele sente os humores dela, reage a eles. E quando não quer, desvia o olhar. Por vezes, olha fixo nalguma direção por muito tempo, enquanto ela fala com ele. Eventualmente, olha para ela com o rabo dos olhos, rapidamente, e retoma o olhar fixo para longe dela. Noutras vezes, olha em todas as direções, menos na direção dela. Até que decide, voltando-se para o seu lado, e seguem, juntos, caminhando e brincando. Ela, feliz, com seu amigo. Ele, grandalhão, parceiro, divertido. Amigos no que há de semelhança, nas diferenças e nas divergências. Simples assim.





quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Das insignificâncias. Ou: Presente de Natal

p/ Néia






Já quase à hora de ir embora, ela lembrou que tinha trazido “uma coisa” para mim. E mostrou um copinho descartável de café embrulhado num pedaço de plástico branco, meio rasgado. Segurava com cuidado aquela fragilidade. Tinha vindo de ônibus, transportando aquilo. Eu olhei, sem entender do que se tratava. Ela começou a explicar que o marido tinha limpado umas lâmpadas, e ela se lembrou de mim. Aí pensou que eu poderia fotografar. Enquanto ia falando, tirou o plástico do copinho, e derramou o conteúdo sobre uma folha branca. Os insetos secos se acomodaram ali, uns por cima dos outros. Tinham morrido nos embates com as lâmpadas de sua casa. Retirados de lá por seu marido, ela os recolheu. Sob sua tutela, nenhum se quebrara, ou fora danificado. Seus olhos brilharam, me olhando, à espera da minha reação. Eu fiquei ali, com a respiração em suspenso. Não tenho dúvidas: ela bebeu água da mesma fonte que Manuel de Barros. Então ela foi me mostrando cada um, dos maiores aos mais pequeninos, quase indecifráveis. Olha a cor deste! Olha a asinha deste outro! Ela foi olhando cada um como se visse pelos meus olhos. Ela pensou que eu poderia fotografar cada um, com aquela câmera que fotografa as coisas pequenas. As insignificâncias... Mas a poesia estava era ali, no seu olhar, no seu gesto, no seu encantamento. Depois ela se riu: Olha só, o presente que eu trago para você!

Eu não poderia estar mais grata.







domingo, 9 de dezembro de 2018

Por mais aniversários errados, pela diversidade de pensamento, pela inquietude.


p/ a sempre querida menina Helô

Tenho a honra de ter conhecido pessoalmente Heloísa Helena Oliveira Buarque de Hollanda, a professora Heloísa Buarque de Hollanda, ou apenas e afetivamente Helô, num percurso que se iniciou há pouco mais de duas décadas. Eu tinha iniciado meu mestrado, quando fui participar do Encontro da ANPEd, em Caxambu. Ela era a conferencista principal, responsável pela abertura do evento. Aqueles dias foram marcantes, para mim. Minha orientadora de mestrado, uma mulher também inesquecível, a professora Iria Brzezinski, apresentou-me, então, Mariazinha Fusari, que veio a ser minha coorientadora. Uma mulher forte e doce, bela, de quem não me esquecerei. Mas, antes de ser apresentada a ela, conheci as palavras e a força da Helô, numa palestra pronunciada a um auditório lotado. E depois pude fazer uma fotocópia do texto no qual se baseou sua fala. Não me lembro mais dos detalhes de seus argumentos, mas me lembro do impacto, das reverberações em meu pensamento. Também ela era forte, desafiadora, ao mesmo tempo que bela, sedutora. Descaradamente dada a transgressões da língua, do pensamento, das epistemologias. Encantadora.

Pouco mais de uma década depois, já na condição de professora numa universidade federal, e num programa de pós-graduação, fui fazer meu primeiro estágio pós-doutoral no Programa Avançado de Cultura Contemporânea, o PACC, na UFRJ. Tratava-se de um programa criado e coordenado por ela, voltado para os Estudos Culturais. No ambiente universitário, esse foi um dos espaços mais radicalmente abertos à diversidade, à pluralidade de pensamento de que tomei conhecimento. Um espaço díspar, capaz de sobreviver às crises, porque construído para viver as crises, e produzir pensamento e aprendizagens a partir delas.

Naquele período, ela estava entusiasmada com a criação de um projeto de extensão, o Universidade das Quebradas, voltado para a formação de lideranças culturais vindas das comunidades pobres, de grupos sociais que dificilmente teriam acesso à universidade pública. Lembro-me dela, radiante, brincando com a ideia de quebrar os muros da universidade, trazendo essas pessoas para compartilharem conhecimentos e fazeres e saberes nos palácios da cultura. No Palácio Universitário da Praia Vermelha, mais especificamente, onde, à época, funcionava o PACC.

Desde então, sou tomada de admiração, respeito e afeto pela inquietação, pela capacidade de lidar com os embates, pela força da curiosidade e das perguntas de Helô menina, mulher, intelectual ímpar.

Em abril deste ano, 2018, estive em sua casa. Tive o privilégio de participar da comemoração de um aniversário errado celebrado entre ela e os netos. O aniversário errado é de ninguém, e por isso mesmo é de todas as pessoas. É disposição para celebrar a vida. Depois da festa, os pais e as mães foram chegando, para buscar as crias. Algumas das crianças ficariam para dormir com a avó. Filhos, filhas, noras genros e agregados conversavam sobre vários assuntos, enquanto os netos e as netas corriam pela casa. Uma nora delongou-se um pouco mais, com ela, ouvindo-a falar sobre seu projeto: as escritoras feministas. Lembro-me do brilho em seus olhos. Helô estava imersa num sem número de livros, lendo, apaixonada pela diversidade e força da nova geração de feministas. Aprendia com elas, como uma criança vai desbravando o mundo. Estava, então, em plena função de estudo e escrita do trabalho que resultaria no livro “Explosão feminista”, publicado pela Companhia das Letras.

Fui surpreendida, nesta semana, por uma mensagem dela, na plataforma do Facebook, manifestando-se, de modo sempre elegante, sensível e sábio, sobre alguma tomada de posição supostamente “errada” dela, em relação ao conteúdo de seu livro. Não entendi muito ao certo do que se tratava, mas chamou-me a atenção o teor do texto, e o fato de ser, aquela plataforma, um espaço no qual ela pouco se manifesta. Se ela vinha, a público, posicionar-se daquela maneira, o que teria ocorrido? Não demorou para que eu começasse a receber mais mensagens, algumas de apoio, outras com críticas muito duras a ela.

Não vou alimentar os rumos que a discussão tem tomado nas redes sociais. Não vou me colocar a serviço de quem esteja aproveitando esse trabalho de Helô para ganhar espaço no palco. Se há algum traço que marque as lutas feministas nesta década (como de resto as demais lutas) é a baixa capacidade para lidar com as divergências, com as discordâncias (apesar de se pronunciarem, recorrentemente, palavras e expressões tais como "diversidade", "direito à diferença", etc.). Parece-me que os recortes com ênfases em especificidades de grupos acabam gerando perspectivas menos capazes de lidar com pontos de vista diversos. Talvez o que tenhamos que aprender com o livro de Helô tenha início em seu conteúdo, mas esteja principalmente nos desdobramentos decorrentes, no que ele está provocando depois de sua publicação. Sim, talvez as reações a ele tenham a potência de desvelar a face, ou as faces dos feminismos em curso, neste momento.

Já tratei de adquirir meu exemplar, sem errata, sem correções. 

Quero celebrar mais aniversários errados. Você me chama, Helô? Obrigada, minha querida, por ter propiciado vivenciar a beleza e a intensidade de espaços tão radicalmente abertos à diversidade e à divergência!



Em tempo 1: se você, leitor, leitora, está pensando na possibilidade de algum vínculo familiar entre ela e Chico Buarque de Holanda, engana-se. O Hollanda dela é com dois éles (LL), o do Chico é só com um. A irmã dele, cantora e compositora, é Miúcha. A propósito, ela não é descendente da família real, como andaram dizendo por aí... (affff!)

Em tempo 2: eu acho que você deveria ler o livro dela, “Explosão feminista”, antes que seja tarde! Pronto, falei.

Em tempo 3: o link para página da Helô: https://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/









domingo, 2 de dezembro de 2018

1511, Aymaco: Becerrillo (Eduardo Galeano. Memoria del fuego I Los nacimientos)




La insurrección de los caciques Agüeynaba y Mabodamaca ha sido aplastada y todos los prisioneros han marchado al muere.

El capitán Diego de Salazar descubre a la vieja, escondida en los matorrales, y no la ensarta con la espada.

– Anda – le dice–. Lleva esta carta al gobernado, que está en Caparra.

La vieja abre los ojos de a poco. Temblando, tiene los dedos.

Y se echa a caminar. Camina como niño chico, con bamboleos de osito, y lleva el sobre a modo de estandarte o bandera.

Cuando la vieja está a distancia de un tiro de ballena, el capitán suelta a Becerrillo.

El gobernador Ponce de León ha ordenado que Becerrillo reciba el doble de paga que un soldado ballestero, por descubridor de emboscadas y cazador de indios. No tienen peor enemigo los indios de Puerto Rico.

La ráfaga voltea a la vieja. Becerrillo, duras las orejas, desorbitados los ojos, la devorará de un bocado.

– Señor perro – le suplica–, yo voy a llevar esta carta al señor gobernador.

Becerrillo no entiende la lengua del lugar, pero la vieja le muestra el sobre vacío.

– No me hagas mal, señor perro.

Becerrillo husmea el sobre. Da unas vueltas en torno a esa bolsa de huesitos trémulos que gime palabras, alza una pata y la mea.