Quando era professora no ensino fundamental, e também em
contexto hospitalar, trabalhei com várias crianças e jovens surdos. Nunca
aprendi a linguagem de sinais, mas também não tive grandes problemas de
comunicação. As dificuldades são superadas quando há disposição, de parte a
parte, para o encontro.
Lembro-me de um pequeno, no ensino fundamental, que também
não dominava LIBRAS, mas fazia leitura labial, e falava. Era uma criança ativa,
divertida, integrada. Por isso mesmo, dado a fazer estripulias. Quando alguma
coisa dava errada, e ele sabia que levaria uma bronca, desviava o olhar: essa
era sua maneira de romper meios de se comunicar comigo, de me dizer “não quero
conversa com você”.
Talvez tenha sido a partir do que aprendi com ele, que fortaleci
a ideia de que o olhar está diretamente vinculado à atitude de quem ouve, de
quem presta atenção no outro, de quem não quer se desviar do assunto em pauta. Mas
também ali havia vínculo, comunicação, por meio do revés, da negação.
Tenho saudades de suas invenções, e do modo sem
discriminação com que as crianças se relacionavam. Na mesma turma, havia uma
menina com tetraplegia. Ele gostava de brincar com a cadeira de rodas dela. Não
raro, nos deparávamos com ela, apoiada de qualquer jeito nalgum banco, ou carteira,
enquanto ele fazia manobras com a cadeira, para os risos dela.
Parcerias, companheirismos que tiram proveito das diferenças
para nos fazer maiores como pessoas. Foi mais ou menos isso que me chamou a
atenção no diálogo entre a moça que vinha pela calçada, puxando um cão branco,
grandão. Ele insistia em ficar para trás, farejando plantas e troncos de
árvore. Ela queria seguir. Puxava, reclamava com ele, que olhava para todos os
lados, menos para ela. Ri-me com a cena. Perguntei pelo nome dele. Ela me disse "é Jack, mas ele é surdo, não adianta você chamar; é surdo desde que nasceu!"
Então eu soube que o Jack é conhecido por todos na
vizinhança, referido pelo humor e estripulias que protagoniza. Chama a atenção o modo
como ele se comunica com a moça com quem convive. Ele a compreende, não se sabe
como. Ele sente os humores dela, reage a eles. E quando não quer, desvia o
olhar. Por vezes, olha fixo nalguma direção por muito tempo, enquanto ela fala
com ele. Eventualmente, olha para ela com o rabo dos olhos, rapidamente, e
retoma o olhar fixo para longe dela. Noutras vezes, olha em todas as direções,
menos na direção dela. Até que decide, voltando-se para o seu lado, e seguem,
juntos, caminhando e brincando. Ela, feliz, com seu amigo. Ele, grandalhão,
parceiro, divertido. Amigos no que há de semelhança, nas diferenças e nas
divergências. Simples assim.
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