domingo, 18 de outubro de 2020

Da dádiva e da gentileza


Nestes tempos tão obtusos (e me pergunto o que eu teria, de fato, contra os ângulos obtusos? O que seria, afinal, dos ângulos agudos não existissem os obtusos?...), o desalento muitas vezes nos toma de assalto, e permanece, sem querer nos deixar. Das questões macro às relações interpessoais quotidianas, não faltam sustos, inquietações e preocupações a desestabilizar quaisquer projetos de calma.

Mas também é nesses tempos tão obtusos que pequenos gestos ganham uma dimensão particular, assegurando a ancoragem de sentidos possíveis aos nossos dias. Foi assim quando a vizinha deixou uma abóbora no batente da porta de casa, e ligou avisando. Ou quando a outra vizinha deixou dependurada uma sacolinha com doces jabuticabas e, na semana seguinte, uma sacola com pequi. E o pão caseiro deixado por um casal de amigos queridos, que já haviam deixado, anteriormente, um bolo. E o outro bolo com sabor e cheiro de laranja trazido por um amigo e uma amiga, com um livro de poemas, e eu ainda não sei qual é mais doce: o bolo, o livro, o afeto, ou tudo junto... E o que falar da caixinha com torrõezinhos de chá de erva-cidreira? E da camiseta com o anjo da história? E do bolo de jatobá, feito a seis mãos, quatro das quais tão pequeninas e sábias? E o bolo de maçã, assado numa forma que mais parece uma mandala? E a azaleia cor de rosa florida, parceira da orquídea lilás? E as mudinhas de onze horas vicejando na chaleira que virou vaso de plantas sobre a mesa? E a pombinha que, na varanda, cuida já de sua segunda ninhada de filhotes? 

Pois ontem foi dia de mais um gesto de dádiva e gentileza: recebi, de presente, um CD com o encarte e uma máscara que integram um projeto belíssimo realizado pelo Frederico Carvalho. Com direito também a um sorriso fraterno, num fim de tarde com alguma chuva, e algum frescor.

Por vezes, tendo a me alinhar aos discursos que argumentam ter sido, este, um ano perdido. Mas quando me aninho com esses gestos de afeto tão especiais, porque são necessários tanto quanto água e ar, entendo que não tenho o direito de ser injusta. Nas travessias mais duras encontram-se também as manifestações mais potentes daquilo que nos dá ânimo para não desistir.

Se, a cada gesto de dádiva de que somos destinatários, nos cabe acolher e retribuir (na velha equação que diz: dar, receber, retribuir), neste ano tenho visto ampliar-se o rol das minhas responsabilidades de partilha, para corresponder à possibilidade de manifestações de afeto que dizem: estamos aqui, somos melhores se estivermos juntos, se formos capazes de multiplicar gestos de gentileza.

Obrigada Mary Elza, Ivones, Renato, Lorena, Juan, Bruno, Naras, Rafael, Mariana, Denilson, Julia, Marcelo, Alices, Maitê, Alzira, Iana, Leda, Bráulio, Fred, Cátia, Jossier, Carol, Carla, Bárbara, Aline, Matheus, Gabrielas, Adriane, Henrique, Zaldo, Emile, César, Anai, Nilo, Jota, Ruth, Marias, Néia, Yunna, António, Márcias, Maurício, Muniz, Vagna, Adalto, Iria, Helô, Josés, Anas, Adrianas, Esau, Sofía, Fernandos, Gonzalo, Diana, Rubén, Norberto, Wanderley, Mara, Tony, Reginaldo, Cleuzinha, Vi, Lara, Hélio, Antonella, Katia, Vanessas, Lauras, Gabriéis, Taísa, Luti, Paulo, Ro, Juliana, Márcio, Lu, Talita, Renata, Neila, Aristein, Dheniffer, Ayme, Valéria, Lilian, Noeli...

 


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