Passados 80 anos da morte de Walter Benjamin (26 de setembro de 1940), enquanto tentava cruzar a fronteira entre a França e a Espanha, também são cumpridos 80 anos da migração de Vilém Flusser para o Brasil, tendo saído de Praga no ano anterior. E, neste mesmo ano de 2020, Vilém Flusser completaria 100 anos (ele nasceu em 20 de outubro de 1920, 5 anos depois de meu pai, que nascera em 20 de outubro de 1915).
Não por acaso, há tantos elementos que se entrecruzam na vida e na obra desses dois pensadores tão instigantes, Benjamin e Flusser. Ambos de origem judia, transitaram entre os horrores do nazismo. Vilém Flusser sobreviveu graças à fuga com a família de seu amor de infância, Edith Barth, que se tornaria sua esposa. Saíram de Praga em 1939, passaram pela Inglaterra e França. Deixaram uma Europa em escombros para trás, e chegaram ao Brasil, onde constituiu família, trabalhando com o sogro numa empresa de importações e exportações. Sem deixar a atividade intelectual, dedicou-se a indagar sobre a vida, se ela mereceria ou não ser vivida. Isso porque, já em terras brasileiras, teve informações sobre a morte dos pais, irmã e avós, que fariam parte da trágica história de Auschwitz.
Algum tempo depois, deixou as atividades comerciais para atuar como professor de filosofia da linguagem e da ciência, e teoria da comunicação. Entre o final dos anos 50, a década de 1960 e o início dos anos 70, produziu a primeira etapa de sua obra densa e múltipla. No trato com a palavra encontrara a estratégia na qual investiria todos os seus esforços, buscando compreender o incompreensível: os caminhos pelos quais a cultura ocidental resultou em Auschwitz, tendo o campo de concentração como uma de suas obras máximas, ao lado da bomba atômica e dos computadores.
É de se notar que, se Vilém Flusser considerou sua condição de estrangeiro uma das bases existenciais e de articulação de seu pensamento, ele também foi um outsider em relação à sua formação intelectual. Tendo estudado filosofia na Universidade Carolina, em Praga, entre 1938 e 1939, seu percurso transcorreu, sobretudo, refratário aos rituais protocolares das instituições acadêmicas.
Entre os anos 1960, 1970 e 1980, o Brasil também atravessou territórios de horrores. E, constatando que a esperança se encolhia à sua volta, bem como sua expectativa em torno do “novo homem” possível, Vilém Flusser decidiu migrar de volta para a Europa, instalando-se na França. Contudo, manteve os vínculos com o Brasil, para onde continuou vindo com regularidade. Esse período foi marcado por sua produção mais profícua, e também passou a ganhar maior repercussão. O tema das imagens técnicas passou a figurar em seus escritos, de modo que ganhou a alcunha de filósofo das mídias (o que acaba por ser um reducionismo em relação à complexidade e abrangência de sua produção).
Walter Benjamin nasceu em 1892, em Berlin. E, no ano do nascimento de Flusser, ele já defendera seu doutorado havia um ano, na Universidade de Berna. Em meados da década de 1920, aproximou-se da Escola de Frankfurt. Contudo, sua produção também se caracterizou por uma certa autonomia em relação às instituições acadêmicas e seus protocolos. Talvez autonomia não seja a melhor palavra atribuída ao seu trabalho, considerando-se que a universidade e demais instituições acadêmicas não acolheram a produção de Benjamin. Um desses indicadores pode ser constatado na rejeição de sua tese de livre docência pela Universidade de Frankfurt. Talvez possamos também notar que suas relações com o grupo de intelectuais da Escola de Frankfurt, do mesmo modo, frequentemente deparavam-se com dissenções (o que, ressalte-se, não alterou a estreita relação entre ele e Theodor Adorno).
No início dos anos 1930, com a ascensão do regime nazista, Walter Benjamin migrou para a França, onde viveu e produziu parte importante de sua obra. No entanto, não demorou para que jornais e revistas alemãs começassem a se recusar a publicar seus escritos. Como a maioria dos judeus, perdeu a cidadania alemã. Na tentativa de fuga para a Espanha, de onde supostamente poderia seguir para os Estados Unidos da América do Norte, foi barrado na fronteira, morrendo em 26 de setembro de 1940.
Há quem diga que a morte o poupou de testemunhar os campos de concentração (ou talvez de sucumbir a eles), bem como a bomba atômica, e também a derrocada da modernidade. Vilém Flusser não só testemunhou isso tudo como sofreu com a perda dos seus. E esforçou-se por inventar modos de digerir cada fragmento dessa experiência, em seus escritos. Talvez em razão da tragédia, mesmo tendo retornado para a Europa no início dos anos 1970, e viajado por vários países para ministrar palestras e cursos, demorou-se muito para voltar à sua cidade natal. Em novembro de 1991, foi convidado para proferir uma palestra no Goethe-Institut de Praga. Ao lado de Edith, só então foi reencontrar-se com as ruas, os prédios, os lugares de sua infância e juventude. Esse relato está em seus últimos escritos. Na viagem de volta, ambos sofreram um acidente, fatal para ele. Foi enterrado no Novo Cemitério Judeu de Praga. Em 2014, o corpo de Edith foi sepultado no mesmo túmulo. Na lápide consta a seguinte inscrição: “Não morreremos conjugados. “Nós” nunca morreremos, porque apenas eu e tu, a solidão é para a morte”.
No alto de uma colina, no cemitério de Portbou, na Espanha, de frente para o oceano e para as ruinas do bunker alemão, há um túmulo com a inscrição do nome de Walter Benjamin. No entanto, seu corpo não está enterrado ali. Quando ele morreu, foi enterrado naquele cemitério, num jazigo pago para um período de 5 anos. Ao final desse desse prazo, seus restos mortais foram jogados numa vala comum. O túmulo, construído pela prefeitura de Portbou, é simbólico.
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