Sempre gostei de ouvir histórias. E de contá-las. Desde
muito cedo devorei livros: romances de José de Alencar, gibis, histórias sem
fim de Malba Tahan, enciclopédias com verbetes que davam conta da história dita
universal, revistas, fotonovelas... havia tanto a saber e a imaginar sobre o mundo!
Quando comecei a estudar numa escola regular, me encantava a
possibilidade de saber ainda mais coisas. Então a professora pediu que
escrevêssemos um trabalho sobre a vida de Tiradentes. Eu li as informações no
livro. Ouvi, nalguns programas de rádio, histórias sobre ele, e deixei minha
imaginação trilhar caminhos possíveis pelos quais o herói pudesse ter também
transitado. Foi assim que, com dez anos, escrevi umas quantas páginas de
caderno, contando uma história possível sobre Tiradentes: dados biográficos
corretamente buscados no livro didático, o restante da vida, e mais
interessante, recheei com visitas à namorada, passeios em praças, e quitutes de
feiras tão típicas dos territórios mineiros.
Enquanto meus colegas tinham apenas copiado os dados que
constavam no livro, preenchendo no máximo meia página, eu escrevera várias
páginas de uma história que todos queriam ler. Eu estava feliz. Mas logo
descobri que não deveria: a professora não só não gostou do que eu fizera, como
deu-me uma bronca pública, diante de toda a turma. Aprendi, ali, que não
poderia sair uma linha sequer das informações que constavam do livro didático
de história adotado pela escola. Um texto chato, informações que não tinham
qualquer relação com a minha vida. Descobri, muito cedo, que Madame História
com Agá Maiúsculo era muito chata. E passei a cumprir o mínimo necessário para
passar de ano, dali até concluir o ensino médio.
Na universidade, tive aulas de história da arte. Também eram
muito chatas. Numa sala escura, com as paredes pintadas de preto, a professora,
com voz monocórdica, ia passando slides de obras de arte dos diversos períodos
históricos europeus, e ia descrevendo cada slide: este pavão significa... esta
cor azul representa... a composição assimétrica... o contraste de luz... Era
difícil manter a concentração. Muitos dos meus colegas dormiam tanto que
eventualmente até roncavam. Eu não conseguia dormir. Mas achava que aquelas
aulas não precisavam ser tão distantes da nossa vida, daquilo que era palpável
para nós. Mas também fui sendo aprovada,
porquanto respondesse o necessário para tanto.
Foi no mestrado que voltei a me bater de frente com Madame
História com Agá Maiúsculo. Dessa vez, de modo mais contundente e arriscado. Minha dissertação tratou do uso de desenhos
reproduzidos nos processos de alfabetização. A pesquisa foi longa e complexa,
envolvendo quase um ano de acompanhamento quase diário de uma turma de
alfabetização numa escola pública da periferia da cidade, entrevistas nas
escolas de formação das professoras dessa turma, e pesquisa sobre a história da
educação, com recorte nas relações entre imagens e aprendizagens,
particularmente nos processos de letramento. Então, havia um capítulo em que eu
fazia alguns recortes desse uso de imagens nos projetos educativos, desde a
Grécia antiga até aquele final do século XX, dando alguns saltos pela Idade
Média, nas guildas, passando por algumas abordagens propostas por Comenius do
século XVII, e chegando ao contexto brasileiro, num trânsito entre questões
relativas ao ensino de arte e formação de professores para o início de
escolarização.
Durante a defesa da dissertação, uma professora que
integrava a banca examinadora (e era rival da minha orientadora, coisa que só
fui descobrir depois) questionou minha suposta “abordagem histórica”, dizendo
que eu tinha feito uma bagunça do ponto de vista das categorias adotadas bem
como da orientação epistemológica. Os saltos em diversos períodos temporais e
em diversos contextos pareceu-lhe uma heresia. E, para sustentar seus
argumentos, ela evocou o fato de ter sido aluna de Demerval Saviani. Estaria,
portanto, autorizada a fazer tais críticas: esse era o pressuposto.
Eu sabia que, em parte, ela tinha razão. Mas minha
dissertação não tinha abordagem histórica. Naquele capítulo, eu tão somente
tinha buscado algumas referências, fragmentos, para identificar as bases do
ideário para uma orientação pedagógica que eu observara em sala de aula. Parece
que eu não me entendia, mesmo, com Madame História com Agá Maiúsculo. Minha
irritação ficou maior quando, em lugar de argumentar, a professora evocou a
chancela de Demerval Saviani, para me questionar. Ora, se ela era discípula
dele, eu também tinha lá minhas mestras e, em minha resposta, decidi evoca-las
também. Então, iniciei dizendo que, infelizmente eu não tivera o privilégio de
ser aluna de Demerval Saviani, mas tinha aprendido a contar histórias com as
bordadeiras e as tecedeiras, que misturam os fios, as texturas, que trabalham
com diagonais, transversais, além da urdidura, que brincam com as tramas para
criar tessituras diversas. Aquele capítulo fora escrito dessa maneira, esclareci.
Meu erro foi me sentir vitoriosa no embate pelo fato de ter
sido aplaudida em cena aberta. Eu não estava atuando numa peça de teatro,
embora o ritual de passagem também tenha seus componentes de espetáculo. O
aplauso em cena aberta sangrou o orgulho da pedagoga que se pretendia
historiadora. Na reunião fechada, ela resistiu bravamente no propósito de me reprovar.
O que estava em jogo não era exatamente minha resposta, mas o fato de que minha
postura poderia servir como exemplo para os demais pós-graduandos. E isso seria
inadmissível. Mas fui defendida por duas outras mulheres também fortes, que não
deixaram vingar o projeto de reprovação.
Enquanto isso, eu, que não supunha o que pudesse estar se
passando na reunião fechada, celebrava em festa com colegas e amigos, enquanto
esperava o resultado final. Mal poderia imaginar que Madame História com Agá Maiúsculo
tramava contra mim, naquele instante.
Anos mais tarde, fui salva por Vilém Flusser, o filósofo que,
para os demais filósofos é considerado um bom poeta, e que, em suas discussões
problematiza a própria noção de história, provocando a ira de historiadores
também. Com ele, aprendi duas coisas fundamentais: Madame História com Agá
Maiúsculo produz uma narrativa que exclui mais de 95% da humanidade. Sua
narrativa é limitada, e opera com alguns parâmetros que interessa a contextos
muito específicos. Madame História com Agá Maiúsculo tem seus méritos, que
devem ser respeitados. Mas não tem a palavra final sobre as sagas da
humanidade, muito menos sobre as sagas da vida neste planeta. A natureza
“universal” de sua narrativa está restrita a uma faixa territorial estreita, e a
um modo de pensar o mundo muito específico. Não é, portanto, universal.
Mais recentemente, assistindo ao filme “God exists, her name
is Petrunya” (direção: Teona Strugar Mitevska, 2019), que no Brasil foi chamado
“Deus é mulher e seu nome é Petúnia”, essas questões foram reavivadas em minha
memória. As histórias que são contadas, com assinatura masculina, precisam ser
confrontadas. Não negadas, nem apagadas, mas questionadas. Respeito muito historiadores
e suas investigações. Madame História com Agá Maiúsculo tem todo meu respeito, mesmo considerando que, embora substantivo feminino, seja concebida a partir de pontos de vista majoritariamente masculinos... (e só essa questão já dá muito o que pensar!). Ressalto, contudo, que sua narrativa não é exclusiva. Há tantas outras tão
legítimas quanto, mesmo quando divergentes das suas. Tão potentes até mesmo porque
divergentes!
Respiro com alívio e alguma alegria. Pressinto que, mesmo intuitivamente,
desde o princípio venho estabelecendo uma relação crítica e necessária em
relação aos discursos dogmáticos relativos a essa senhora. E a outras senhoras da High Society também, tais
como Madame Arte com A Maiúsculo, Madame Filosofia com Éfe Maiúsculo, e todas
as demais socialáites da cultura, das ciências e do mundo do conhecimento.
Que essa brisa nunca me deixe!
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