segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Em boa companhia



Comprei a passagem de volta. Poltrona 1. Pretendia dormir durante a viagem. Mas quando embarquei, encontrei-a já bem acomodada ali. Quase uma gatinha mansa aninhada no canto. Sorriu e perguntou se eu me importaria de trocar de lugar com ela. Queria muito ir na janela, para tentar dormir um pouco, solicitou-me, com certo dengo na voz. Disse-lhe que também precisava dormir, mas que não havia problema, ela ficasse ali, eu me sentaria no corredor. Prontificou-se a ajudar na minha instalação: sugeriu que eu colocasse minha valise sob seus pés, para liberar os meus, disse-lhe que não era necessário; e recomendou que eu não esquecesse de colocar o sinto de segurança. Fiz umas duas ligações ao telefone, em seguida ela emplacou uma conversa bem divertida. Contou de sua luta para criar os filhos, de seu trabalho, da vida que levava agora. Falou mal do marido, de quem era viúva há 33 anos. Disse que o casamento fora difícil, mas ela persistira, cumprindo sua missão: levara a cruz até o calvário. E depois ficara mais leve para viver a vida. Era feliz, aos seus 90 anos. Até há pouco tempo caminhava um kilômetro por dia em torno de um parque próximo de seu apartamento. Mais recentemente, por medo do trânsito, tem preferido caminhar em volta do próprio quarteirão. Gabou-se de sua saúde, e explicou que há mais viúvas do que viúvos no mundo: "Sabe por que? Deus fez o organismo feminino mais forte e mais consistente do que o do homem, para poder gerar outra vida. Homem é mais fraco, qualquer ataque do coração, cai morto". A certa altura, lembrou-se que eu manifestara o desejo de dormir durante a viagem, e decidiu que já passava da hora de eu tirar meu cochilo: "Durma, minha filha, agora durma um pouco". Ri-me. Consegui dormir, até sonhei. Quando despertei, ela olhava a paisagem molhada de chuva por um vão da cortina - que ela manteve fechada para não fazer claridade e perturbar meu sono. Os olhos miúdos, as mãos grandes, descarnadas, a pele marcada pela idade. Na entrada da cidade, repetiu-me o roteiro que orientaria o motorista de taxi para chegar em casa. "É para eles não quererem me enganar, minha filha". Ajudei-a no desembarque, levei-a até o táxi. Despediu-se alegremente. Pela janela, acenou: "Depois nos falamos pelo telefone!"

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