Para Tereza
Caniatti, Luiz Marques de Lima, e minha amada Rutinha, que me apresentou a
Brasília, e nela construiu um lar aconchegante, no qual há um cantinho guardado para mim, há mais de
três décadas.
Não demora muito e já se terão passado 40 anos da primeira
vez que estive em Brasília. Era grande a expectativa para conhecer a capital do
país, ainda cheirando a nova, anunciando o futuro, endereço certo dos sonhos de
quantos brasileiros... Mas, quando cheguei, custei a ver a cidade: casas e
prédios poucos, baixos, dispersos entre árvores do cerrado. Aquilo era a
cidade? Tinha até manchas de pasto jaraguá na área central!
Durante quase 30 anos, meu pés encardiram-se naquela
terra vermelha, e os olhos se queixaram da baixa umidade do ar, sobretudo entre
os meses de agosto e outubro. Da adolescência à vida adulta, a cidade cresceu,
a população multiplicou-se, muitos prédios foram construídos, as ruas passaram
a ser disputadas por um número cada vez maior de veículos (a bem da verdade, essas foram as feições que se imprimiram a todos os centros urbanos nas últimas décadas). Em seus
espaços públicos, aprendi a participar das mobilizações populares, a construir
cidadania, a integrar as cenas da arte e da cultura: grandes concertos abertos,
grupos de teatro minimalistas, cinema em praça aberta, exposições de gravuras
sobre o gramado. Tomando a rodoviária como ponto de partida, transitei pelo
país, indo e vindo: áreas indígenas, comunidades diferenciadas, o Brasil de
dentro, o Brasil do litoral. Atuando como professora, instalei-me numa de suas cidades
satélites mais distantes, e dali, usuária dos ônibus urbanos, cumpria o
percurso centro-periferia diariamente. O trânsito era garantia também de renovação,
respiração, transformação. Anos mais tarde, voltei a ser moradora do Plano
Piloto, mas continuei trabalhando na cidade satélite, invertendo os sentidos e
horários de trânsito, nos velhos ônibus urbanos de que continuava sendo usuária.
Uma coleção de histórias se acumula em minha memória, relativa a esse período:
inusitadas, assustadoras, dolorosas, alegres, engraçadas. Como é a vida, afinal.
Aos poucos, fui aprendendo as demais cidades satélites. A
interlocução com as escolas, seus professores e alunos, o encontro com as comunidades e suas produções artístico-culturais me davam a dimensão humana e sensível das gentes e seus viveres. As viagens de ida e de volta, cansativas quase sempre, impunham-me a condição de reflexão,
meditação... Como é possível meditar a bordo de ônibus lotados, que vão soluçando
pela estrada, de parada em parada? Como é
possível meditar, quando se está cansada, com sono, a ponto de, por força das condições, aprender a dormir em pé, mal e mal apoiada na barra de metal por trás do
banco mais próximo? Essa é das nossas,
sorri meu aluno quando ouve minhas histórias. Morador de periferia, gasta mais
de duas horas para chegar à universidade, todos os dias.
Foi assim, que eu aprendi a cidade. Cidades são como poemas, como
romances: a gente lê, estranha o jeito da escrita, insiste na leitura, aprende, e constrói afinidades, ou não. As cidades são construídas, quotidianamente, pelas pessoas que nelas vivem. E não é com tijolo e cimento: é com suas próprias vidas pulsantes. Nossos afetos pela cidade nutrem-se dos vínculos que estabelecemos com quem compartilhamos esse viver na cidade.
Quando me mudei para outra cidade, fui estabelecendo os novos
vínculos, necessários para que eu me encontrasse nela e com ela. Para aprendê-la,
foi necessário decifrar seus fluxos, suas escritas, seus tempos; conhecer suas
gentes, seus modos, seus acordes; atentar para as paletas de cores, as pausas,
as texturas. Inserir-me nela, a despeito de todo estranhamento inicial que ela
tenha provocado às minhas expectativas.
Moro quase no centro, trabalho quase fora da cidade. Os fluxos
de trânsitos cada vez mais me parecem insanos (em qual cidade com mais de um milhão de habitantes esses fluxos não são insanos?). Com as chuvas, as ruas
transformam-se em corredeiras ameaçadoras. Mas os finais de tarde quase sempre são
lenitivos para os dias cansativos. E os falares das gentes embalam os ouvidos, com
críticas humoradas, observações curiosas, olhares pausados.
Ao contrário de Brasília e seus traçados quase cartesianos, as escritas desta cidade seguem linhas curvas,
em arabescas redes de deslocamentos. Sinto vertigens, por vezes. Aprendo a me perder e me reencontrar. Aprendo a me divertir com isso. Vou plantando
vínculos na cidade, de modo que me surpreendo caminhando rapidamente, sem
pensar para onde vou, internalizado em meus passos o mapa dos percursos. E reconheço
a voz da vendedora antes de avistar-lhe as feições. Pertenço. Assim como pertenço
a Brasília, instalada em mim como espaço-tempo, vínculos, escrita, movimento. Porque
aprendi.
E estando fora, aprendi o que ainda não tinha aprendido
sobre Brasília, enquanto estive dentro: que a ela não são endereçados apenas os
sonhos do futuro, da terra prometida, mas dela são cobrados esses sonhos. E como
ela é não mais que uma metrópole a mais nos conturbados cenários metropolitanos
contemporâneos, a frustração dos sonhos custa-lhe mais cara do que às outras
cidades. Sobre ela sobrepesam, de um lado, o desconsolo que resultou da perda,
pelo Rio de Janeiro, do status de capital do país, de outro, o desamparo
ante a constatação de que Utopia é não-lugar, e seu endereço não está no
Planalto Central.
Nos últimos anos tenho intensificado trânsitos: Rio de
Janeiro, São Paulo, Vitória, Recife, Campo Grande, Brasília, Goiânia, Belo Horizonte, Salvador,
outras cidades de menor porte... Todas com escritas tão peculiares... Cada qual a articular complexos romances jamais escritos, entretecidos nas histórias sem fim de suas
gentes, que se encontram e desencontram nos olhares, nos falares, nos cantares,
nas salas e alcovas, nas ruas, nas calçadas descontínuas, nos passos
apressados, em pausas necessárias, em balcões e vitrines, no curso dos dias, no
sol posto, nas sombras das noites e seus mistérios...
Brasília é assim... As cidades são assim... Convites
vivos à leitura, e à participação ativa em seus enredos. As cidades são nossos
escritos em suas faces, por dentro de suas veias.
Afinidades se constroem, muito mais por escolha que por
contingência. O viver nas cidades se aprende, como se aprende a compor poemas,
melodias, tatuagens sobre a pele...
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