Pensei em iniciar este texto afirmando: “Ontem eu bati
de frente com o Brasil”. Mas, ao iniciar a escrita, percebi que estava sendo
injusta com muitos outros brasileiros cujas condutas são irreparáveis. Seria injusta, por exemplo, com o motoqueiro que, também ontem, além de parar na faixa de pedestre
enquanto uma senhora idosa atravessava a rua, tratou de sinalizar com os braços para que os demais
motoristas a vissem, cuidando da segurança da pedestre. Em pensamento,
agradeci, novamente, ao cuidado solidário do motoqueiro, e apaguei a primeira
frase, para reiniciar a escrita:
Ontem eu bati de frente com a desonestidade e a falta de
cidadania. Ontem eu bati de frente com um comportamento que tem se expandido nos
últimos tempos. Saí um pouco esfolada. O protagonista do episódio acredita ter levado vantagem. Perdemos, a comunidade como um todo. Explico-me.
Precisei ir ao cartório, reconhecer minha firma num
documento. Cartórios integram uma rede de instituições que dão fé e certificam
a legitimidade de documentos os mais diversos. Concentram poder econômico, político e negociações inimagináveis. Funcionam de
modo muito alheio à compreensão da maioria das pessoas.
Fui caminhando. Chovia um pouco, e a sombrinha cumpria a
função muito mais de proteger o documento do que me proteger do frescor das
poucas gotas que umedeciam a brisa. O cartório estava cheio de pessoas que aguardavam ser atendidas. Peguei
minha senha e observei na tela onde se viam as chamadas. Havia 10 senhas à
minha frente. Sentei-me e também aguardei. Não demorou muito para que eu fosse
chamada. Tudo muito simples e rápido, para um valor tão alto a ser cobrado.
Enquanto a moça
atualizava meus dados cadastrais, um homem chegou, logo atrás de mim, querendo
falar com a atendente no balcão onde eu me encontrava. Interrompeu meu atendimento, mostrando
um documento, e indagando por um sinal público solicitado. Alegava ser aquela a
terceira vez que ele ia buscar. A moça explicou que já tinham em mãos o sinal, e
indicou para ele pegar a senha e aguardar, que seria chamado.
Eu já estava um pouco irritada pelo fato de ele ter
interrompido meu atendimento sem sequer pedir licença. Mesmo assim, assisti a tudo com
paciência quase professoral. No entanto, àquela altura da conversa, ele piscou o olho
direito para a moça e perguntou, com voz macia e quase sussurrada, se ela não poderia
atende-lo sem que precisasse entrar na fila. "Dá um jeitinho?" Eu olhei para a moça, que me olhou e não
respondeu. Olhei para o homem e aguardei. Ele insistiu no pedido, de modo
determinado. Não arredaria do intento. A moça me olhou, não respondeu. Na terceira
investida do homem, eu lhe disse, também com voz macia, como se falasse com um
estudante indisciplinado: “Meu irmão, pegue a senha, entre na fila, faça o certo!” Então
ele resolveu convencer a mim quanto ao fato de que ele teria o tal direito. Afinal, era a terceira vez
que ele ia ao cartório em busca do sinal público! Eu repeti: “Meu irmão, aqui
tem gente que já veio não sei quantas vezes, tem pessoas de idade, tem gente
com criança, tá todo mundo na fila. Pegue a senha, entre na fila, meu irmão!” Quando ele insistiu novamente, eu perdi a paciência e soltei a voz, de modo que todos ali à volta
pudessem ouvir. Ela reverberou pela sala lotada. Senti um silêncio no cartório. Perguntei se ele queria mesmo furar a
fila, se ele achava que tinha o direito de passar à frente de todas aquelas
pessoas. Dirigi-me aos presentes: “Ele quer passar na frente de vocês! É isso
mesmo?” E lembrei a ele que aquela prática era corrupção. "Pegue a senha, meu
irmão!" Então ele disse: “Eu já peguei a senha” e sorriu, vitorioso, acreditando ter me enganado.
A moça finalizou o atendimento. Eu precisava pagar pelo
serviço, e segui para a fila do caixa. Um senhor chegou ao meu lado, sorrindo. “Sua
voz é forte, heim? E você é brava!” Buscava minha cumplicidade. Mas eu sabia
que, em última instância, ele estava mesmo ao lado do homem-fura-fila. Dali, avistei
o homem em pé, convencendo outro atendente para dar prioridade a ele. Ele percebeu que eu o observava, exatamente no momento quando ganhou a conivência do funcionário, que o atendeu. Ocorreu-me então que, provavelmente, não fosse a
minha reação, a moça o tivesse atendido, como prática comum ali.
Depois de atendido, o homem veio para
a fila do caixa, logo atrás de mim. Movia-se, vitorioso. Debochado, começou a falar que
não gostava de gente do PT, que era Bolsonaro mesmo. Para que searas se encaminha o discurso de uma pessoa que fura filas? Respondi que não, ele
estava enganado, ele era cara de pau.
Voltei à rua. Já tinha parado de chover. Segui caminhando até
a agência dos correios mais próxima, onde fui atendida por uma senhora gentil e
ágil. Agradeci por seu atendimento, desejei-lhe uma boa semana.
Sinto vergonha de comportamentos como o daquele homem. Mas também
do comportamento de funcionários que passam à frente uns em detrimento de
outros. Sobretudo sinto vergonha pelo comportamento de todos os demais clientes
ali, sentados, passivos ante o que se passava. Quantas pessoas passariam à sua
frente, por ter decidido suas prioridades podiam se sobrepor a todas as demais.
Sinto vergonha também do cinismo do senhor que veio conversar comigo, como a
mostrar coragem em se aproximar de alguém tão indômita quanto eu...
Os esfolados pelo corpo cicatrizam-se, embora deixem marcas
na pele, no caminho, nos sonhos... No decurso do tempo, são muitas as histórias cartografadas pelas marcas no corpo. Por vezes temo perder as forças. Por enquanto,
ainda não. Só uma tristeza me toma de repente, em alguns momentos inesperados. Ou eventualmente o sono cai sobre meus olhos e pensamento de modo indefensável... Mas, por enquanto,
ainda estou na arena... e ainda tenho fôlego para fazer reverberar minha voz em salas, salões e outros espaços públicos.
Puxa, amei o teu texto! Quantas vezes senti o mesmo e passei pela mesma situaçao mas nem sempre consegui ter essa tua força e coragem para fazer o certo...e voltava pra casa brava porque tinha me calado ou sentido medo ante uma injustiça. Este texto é um calor no coração e uma forte inspiração pra mim...obrigada!!!
ResponderExcluirEnquanto houver voz para se indignar e gestos gentis, o mundo continua tendo esperança. <3
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