terça-feira, 26 de novembro de 2019

Ontem eu bati de frente com a falta de cidadania. Não foi a primeira, nem será a última vez...



Pensei em iniciar este texto afirmando: “Ontem eu bati de frente com o Brasil”. Mas, ao iniciar a escrita, percebi que estava sendo injusta com muitos outros brasileiros cujas condutas são irreparáveis. Seria injusta, por exemplo, com o motoqueiro que, também ontem, além de parar na faixa de pedestre enquanto uma senhora idosa atravessava a rua, tratou de sinalizar com os braços para que os demais motoristas a vissem, cuidando da segurança da pedestre. Em pensamento, agradeci, novamente, ao cuidado solidário do motoqueiro, e apaguei a primeira frase, para reiniciar a escrita:

Ontem eu bati de frente com a desonestidade e a falta de cidadania. Ontem eu bati de frente com um comportamento que tem se expandido nos últimos tempos. Saí um pouco esfolada. O protagonista do episódio acredita ter levado vantagem. Perdemos, a comunidade como um todo. Explico-me.

Precisei ir ao cartório, reconhecer minha firma num documento. Cartórios integram uma rede de instituições que dão fé e certificam a legitimidade de documentos os mais diversos. Concentram poder econômico, político e negociações inimagináveis. Funcionam de modo muito alheio à compreensão da maioria das pessoas.

Fui caminhando. Chovia um pouco, e a sombrinha cumpria a função muito mais de proteger o documento do que me proteger do frescor das poucas gotas que umedeciam a brisa. O cartório estava cheio de pessoas que aguardavam ser atendidas. Peguei minha senha e observei na tela onde se viam as chamadas. Havia 10 senhas à minha frente. Sentei-me e também aguardei. Não demorou muito para que eu fosse chamada. Tudo muito simples e rápido, para um valor tão alto a ser cobrado. 

Enquanto a moça atualizava meus dados cadastrais, um homem chegou, logo atrás de mim, querendo falar com a atendente no balcão onde eu me encontrava. Interrompeu meu atendimento, mostrando um documento, e indagando por um sinal público solicitado. Alegava ser aquela a terceira vez que ele ia buscar. A moça explicou que já tinham em mãos o sinal, e indicou para ele pegar a senha e aguardar, que seria chamado.

Eu já estava um pouco irritada pelo fato de ele ter interrompido meu atendimento sem sequer pedir licença. Mesmo assim, assisti a tudo com paciência quase professoral. No entanto, àquela altura da conversa, ele piscou o olho direito para a moça e perguntou, com voz macia e quase sussurrada, se ela não poderia atende-lo sem que precisasse entrar na fila. "Dá um jeitinho?" Eu olhei para a moça, que me olhou e não respondeu. Olhei para o homem e aguardei. Ele insistiu no pedido, de modo determinado. Não arredaria do intento. A moça me olhou, não respondeu. Na terceira investida do homem, eu lhe disse, também com voz macia, como se falasse com um estudante indisciplinado: “Meu irmão, pegue a senha, entre na fila, faça o certo!” Então ele resolveu convencer a mim quanto ao fato de que ele teria o tal direito. Afinal, era a terceira vez que ele ia ao cartório em busca do sinal público! Eu repeti: “Meu irmão, aqui tem gente que já veio não sei quantas vezes, tem pessoas de idade, tem gente com criança, tá todo mundo na fila. Pegue a senha, entre na fila, meu irmão!” Quando ele insistiu novamente, eu perdi a paciência e soltei a voz, de modo que todos ali à volta pudessem ouvir. Ela reverberou pela sala lotada. Senti um silêncio no cartório. Perguntei se ele queria mesmo furar a fila, se ele achava que tinha o direito de passar à frente de todas aquelas pessoas. Dirigi-me aos presentes: “Ele quer passar na frente de vocês! É isso mesmo?” E lembrei a ele que aquela prática era corrupção. "Pegue a senha, meu irmão!" Então ele disse: “Eu já peguei a senha” e sorriu, vitorioso, acreditando ter me enganado.

A moça finalizou o atendimento. Eu precisava pagar pelo serviço, e segui para a fila do caixa. Um senhor chegou ao meu lado, sorrindo. “Sua voz é forte, heim? E você é brava!” Buscava minha cumplicidade. Mas eu sabia que, em última instância, ele estava mesmo ao lado do homem-fura-fila. Dali, avistei o homem em pé, convencendo outro atendente para dar prioridade a ele. Ele percebeu que eu o observava, exatamente no momento quando ganhou a conivência do funcionário, que o atendeu. Ocorreu-me então que, provavelmente, não fosse a minha reação, a moça o tivesse atendido, como prática comum ali. 

Depois de atendido, o homem veio para a fila do caixa, logo atrás de mim. Movia-se, vitorioso. Debochado, começou a falar que não gostava de gente do PT, que era Bolsonaro mesmo. Para que searas se encaminha o discurso de uma pessoa que fura filas? Respondi que não, ele estava enganado, ele era cara de pau.

Voltei à rua. Já tinha parado de chover. Segui caminhando até a agência dos correios mais próxima, onde fui atendida por uma senhora gentil e ágil. Agradeci por seu atendimento, desejei-lhe uma boa semana.

Sinto vergonha de comportamentos como o daquele homem. Mas também do comportamento de funcionários que passam à frente uns em detrimento de outros. Sobretudo sinto vergonha pelo comportamento de todos os demais clientes ali, sentados, passivos ante o que se passava. Quantas pessoas passariam à sua frente, por ter decidido suas prioridades podiam se sobrepor a todas as demais. Sinto vergonha também do cinismo do senhor que veio conversar comigo, como a mostrar coragem em se aproximar de alguém tão indômita quanto eu...

Mas me sinto agraciada por encontrar, pelos caminhos, pessoas como o motoqueiro que não só pára na faixa de pedestres, como ajuda a preservar a segurança da transeunte, alertando os demais motoristas para pararem também. Ou a senhora gentil dos correios, agilizando o atendimento dos clientes, na postagem de cartas, encomendas, documentos.

Os esfolados pelo corpo cicatrizam-se, embora deixem marcas na pele, no caminho, nos sonhos... No decurso do tempo, são muitas as histórias cartografadas pelas marcas no corpo. Por vezes temo perder as forças. Por enquanto, ainda não. Só uma tristeza me toma de repente, em alguns momentos inesperados. Ou eventualmente o sono cai sobre meus olhos e pensamento de modo indefensável... Mas, por enquanto, ainda estou na arena... e ainda tenho fôlego para fazer reverberar minha voz em salas, salões e outros espaços públicos.





2 comentários:

  1. Puxa, amei o teu texto! Quantas vezes senti o mesmo e passei pela mesma situaçao mas nem sempre consegui ter essa tua força e coragem para fazer o certo...e voltava pra casa brava porque tinha me calado ou sentido medo ante uma injustiça. Este texto é um calor no coração e uma forte inspiração pra mim...obrigada!!!

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  2. Enquanto houver voz para se indignar e gestos gentis, o mundo continua tendo esperança. <3

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