No início do século XX, Max Weber escreveu um pequeno e
instigante livro que, em português, se chama Ciência
e política: duas vocações. Na primeira parte, Ciência como vocação, o autor defende, veementemente, a necessidade
de se manter o trabalho científico – do qual a docência faz parte – preservado dos
arroubos do ativismo político. Na segunda parte, Política como vocação, ele ressalta a necessidade, sim, de que se
façam intervenções na sociedade, no sentido de promover sua transformação, mas
destaca ser esse o papel do político, e não do cientista. Dito de outra forma, ao
cientista cabe a tarefa de observar, analisar, compreender, interpretar,
conhecer, de modo isento, sem imiscuir-se com bandeiras, crenças, ideologias. A
intervenção deve ficar ao cargo do político, e que este, preferencialmente,
busque estar embasado no conhecimento produzido pelo cientista.
Weber advertia, inclusive, que a cátedra deveria ser
preservada de qualquer discurso de natureza política. A cátedra é o espaço vocacionado
ao conhecimento. A política deve ser exercida no palanque dos comícios, nos
congressos, nas casas de negociações do poder.
Quando o texto foi escrito, o mundo já experimentara os
horrores da Primeira Guerra Mundial. Já experimentara, também, o sabor amargo
da constatação de que, mesmo quando à revelia do cientista, o conhecimento científico
e seus produtos não podem ser mantidos isentos da política, nem do exercício do
poder, seja o econômico, seja o bélico – irmãos siameses esses dois poderes,
afinal. Mas não experimentara, ainda, os estertores da Segunda Guerra, o limite
da bomba atômica, quando essa aprendizagem seria definitiva.
As discussões a respeito da neutralidade ou não do
conhecimento científico geram debates intensos ainda hoje, século XXI adentro. Há
bandeiras que defendam uma ciência confessadamente engajada. Outras discorrem
sobre a impossibilidade de se produzir conhecimento neutro, apresentando
argumentos fundados em experiências históricas recentes. E há os que cultivem,
ainda, a crença na isenção da ciência, distanciada das disputas de poder,
econômicas, das estruturas hierárquicas.
Todo conhecimento tem as marcas do seu tempo, as marcas
do contexto sociocultural no qual é produzido, e está contaminado pelas
posições e escolhas do cientista que o produza. Mesmo no âmbito das ciências
duras, em cujos campos o objeto de conhecimento parece ter autonomia em relação
ao sujeito que o investigue, mesmo ali, o conhecimento produzido (que é
diferente do objeto a respeito do qual o conhecimento versa) é portador de tais
marcas.
Ou seja, não há conhecimento isento. Há fendas nas
fronteiras dos campos nos quais a ciência é articulada, e por essas fendas,
tanto entram elementos externos, quanto o conhecimento vaza para outros campos.
Contudo, mesmo reconhecendo a porosidade das fronteiras, e o entrelaçamento dos
campos, é preciso exercer o esforço no sentido de preservação das especificidades
de cada um. Sobretudo, não se perca de vista que o conhecimento
produzido a serviço de determinados projetos de poder, ou econômicos, ou
políticos, é ferramenta de opressão, dominação, é antônimo de qualquer princípio democrático.
Para avançar nesta questão, é preciso fazer a ressalva a
respeito da diferença, fundante, entre política como exercício de cidadania de um lado, e política partidária de outro. Quando tomadas de posição, no âmbito científico, possam
ser entendidas como posicionamentos políticos, é indispensável resguardar essa
potencialidade da sanha das políticas partidárias.
Na noite de 28 de agosto de 2014, quando a SBPC/Goiás
promoveu a solenidade de entrega do 1º Prêmio de Popularização da Ciência,
ocorreram dois fatos que evocaram esta reflexão. Realizada em pleno período de
campanha eleitoral para cargos estaduais e federais, foi aberto espaço para
alguns candidatos se manifestarem, em discursos que tratavam de suas bandeiras
e do lugar da ciência em seus planos de trabalho. O concurso promovido dela SBPC/Goiás,
cujo mérito é indiscutível, e cujos resultados têm um teor político cidadão, ao
visar a popularização da ciência, imiscuiu-se, naquele palco, com as bandeiras
partidárias, conclamando eleitores a confiarem votos neste ou naquele
candidato.
Curiosamente, durante o primeiro discurso
político-partidário, ocorreu uma queda de energia, que atingiu apenas a ala da
qual o auditório da solenidade tomava parte. Sem disponibilidade de outro
espaço ao momento, e sem a possibilidade de solução do problema que ocasionara o
apagão, decidiu-se continuar a solenidade às escuras, com o auxílio das luzes
dos aparelhos telefônicos – os candeeiros do século XXI. Dessa forma, a
cerimônia teve prosseguimento, cumprindo o protocolo plenamente: entrega dos
prêmios alternada com discursos de candidatos. Tudo às escuras. Do lado de fora
do auditório, a luz correspondia ao calor em intensidade. À maneira da alegoria da caverna, descrita por Platão...
Foi inevitável pensar em Agamben, quando aborda o
contemporâneo:
(...)
contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as
luzes, mas o escuro. (...) o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu
tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interprelá-lo, algo que, mais
do que todas as luzes, se volta diretamente e singularmente para ele.
Contemporâneo é aquele que recebe em plena face o feixe de treva que provém de
seu tempo.
Giorgio
Agamben. O que é o contemporâneo? e
outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
Na solenidade de ontem, as sombras presidiram a
associação entre ciência e política partidária. O que podemos aprender com
isso?
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